O Clericalismo que habita em nós

 

O CLERICALISMO QUE HABITA EM NÓS

Por Toninho Kalunga

Francisco é o primeiro Papa a tocar em um tema de fundamental importância para a sobrevivência da Igreja Católica no meio dos pobres. É a chaga do clericalismo. Este mal nasce do entendimento de uma parcela dos padres, de que a fé que eles devotam a Deus, é uma fé mais importante do que a fé das pessoas que não são padres.

O clericalismo nasceu disso. O desenvolvimento desta perspectiva de fé trouxe uma tese de uma certa hierarquia na relação com Deus. Assim, primeiro, vem o Papa, com sua infalibilidade, logo em seguida são os poderosos cardeais, seguidos dos arcebispos, bispos e finalmente a massa sacerdotal. O povo é conduzido e a estes, basta este papel!

Por outro lado, quem cuida, de fato, da fé do povo católico são os padres. Aliás, neste ponto nem há tanta contradição, pois, eles se formam em seminários, num período que vai de 8 à 12 anos, para ajudar na construção e consolidação de uma perspectiva religiosa e sua consequente fé. No decorrer do tempo, infelizmente, ao invés de servir, optaram por ser servidos. E aí é que a coisa degringolou.

Podemos verificar nas lembranças de nossa juventude, “Igrejas que não cabiam gente” de tanta gente que ia às Missas! Era o tempo da Igreja Pastoral, de uma Igreja onde seus pastores tinham “cheiro de suas ovelhas”. Entre o Concílio Vaticano II e o final dos anos 1970, os seminários formaram padres que tinham como perspectiva e sonho, servir ao povo de Deus.

No começo dos anos 1980, com o advento do papado de João Paulo II, essa proposta de Igreja Pastoral, foi perdendo seu vigor e passou a ser combatida ferozmente com incentivo papal do anticomunismo. Se houve erro no papado de João Paulo II, certamente, esse foi o maior deles, pois sua visão de mundo e histórico pessoal, dava a ele a dimensão de que a Polônia era o mundo. E não era!

A Igreja Latino Americana, não era a mesma Igreja Européia. Nem é!! Essa falta de perspectiva cultural e de dimensão social e econômica de João Paulo II, fez com que seu papado passasse a ser de enfrentamento a uma Igreja alegre e popular, uma Igreja de dimensão profética e acolhedora. Uma Igreja gigantesca na dimensão espiritual, eclesial e popular. Foi uma Igreja libertadora e feliz, vocacionada a ser sal na terra e luz no mundo. Por isso, era cheia, vigorosa, devota e encarnada na vida do povo. O resultado é que a vitória dos conservadores, está sendo a derrota de toda a Igreja.

Assim, esta nova proposta ganhou força e os seminários passaram a construir com grande esforço e incentivo do Vaticano, uma formação cada vez mais clericalista, onde a ideia do padre tutor, com pouco interesse na dimensão cotidiana do povo e apegado ao status sacerdotal. A igreja católica passou então a abrir mão do tríplice múnus, que é o múnus sacerdotal, múnus profético e múnus pastoral, para assumir e incentivar apenas o primeiro.

A partir deste momento, começou a crise das ordenações sacerdotais; Diminuindo drasticamente a quantidade de seminaristas e vocações religiosas femininas nos conventos. Jovens que buscavam servir, deixaram de ver na Igreja um atrativo, afinal, para ter poder, melhor seria ser candidato a vereador, prefeito ou deputado e não a padre ou “freira”!!

Assim, fomos apresentados ao orgulhoso Padre de Sacristia, perdendo de vez o líder pastoral. Foi quando começou a surgir a figura dos padres cantores ou o padre popstar, que juntava muita gente em Igrejas enormes e afastavam ao mesmo tempo, o mesmo povo, de suas pequenas comunidades. Esse foi o começo do fim das Comunidades Eclesiais de Base. Enquanto o povo cantava que tinha:

 “anjos voando neste lugar, no meio do povo e em cima do altar, subindo e descendo em todas as direções”, 

O povo na periferia ficava vendo lobos em pele de pastores, engolindo sua fé e arrancando suas esperanças, dizendo que a culpa pelas dificuldades que passavam era em razão de seu pecado e não em razão de um sistema econômico e social que os escravizavam.

Assim, como suspiro de esperança, nas periferias que ainda resistiam, a canção era outra: Ao perceber que lhes faltavam pastores o povo clamava:

“Falta gente pra ir ao povo Descobrir porque o povo se cala Pastores e animadores pra incentivar o teu povo a falar.  Falta luz porque não se acende Não se acende porque faltam sonhos. E falta esse jeito novo de levar luz e falar de Jesus”

Em razão da perda de contato da Igreja Católica com a realidade do povo, surgiu um vácuo, que foi ocupado por uma dimensão religiosa já existente, que se pulverizou: pastores evangélicos oriundos e envolvidos com a realidade de suas comunidades, favelas e periferias em geral levando apoio em nome de Jesus.

Ao destruírem pastorais como a Pastoral Carcerária, os pastores passaram a dar assistência às famílias dos detentos pobres e dos próprios presidiários. Ao impedir a dimensão profética de Pastorais como a Pastoral da Terra, abrimos mão do apoio aos trabalhadores rurais e deixamo-los à própria sorte, sendo estes acolhidos por pequenas comunidades evangélicas nas pequenas cidades e no campo.

O que sobrou aos católicos foi uma elite paroquiana que ao pagar o dízimo e doar um bezerro para a festa da Padroeira, tirava o senso crítico da realidade vivida pelos mais pobres, assim, não fazia diferença participar de uma Igreja onde o padre culpava os pecadores por seus pecados, e o pastor que dizia que o pecado era coisa do demônio. Assim, melhor era falar com o pastor, que ao menos lhes falava que iam sair no tapa com o belzebu!

Nenhum destes, no entanto, se interessava mais em falar sobre a esperança de uma vida melhor aqui, neste lugar. Todos só garantiam isso depois da morte. Assim, a vida vivida, era abafada e o que restava era se adaptar e deixar o tempo passar. Os que não aceitavam essa condição, construíram sua própria fé! Contudo sem formação, sem dimensão filosófica e teológica pastoral. Não demorou para que a falta destas dimensões formativas, fossem adaptadas para o campo da política conservadora e o resultado desta pulverização está aí para que todos possamos ver!

Além dos seminários, outra figura que transforma bons padres, em padres clericalistas, é a própria comunidade de leigos e leigas que exigem destes homens uma postura que muitos não gostariam de ter – nem têm – responsabilizando e exigindo destes uma postura de super humanos. Não é sem razão que existem tantas desistências e frustrações com o sonho da vida sacerdotal.

No campo progressista não é muito diferente, lamentavelmente! O que deveria ser um sopro de alívio para os padres, passa a ser também uma exigência de posicionamentos que cabem aos leigos e não aos padres. E isso também é muito frustrante.

Ao fim, o que se tem é um séquito de religiosos, que chegam numa comunidade e destroem a organização histórica Pastoral dessas comunidades e impõe o seu estilo e ponto de vista, acompanhado de um viés ideológico de extrema direita e hipócrita,  em detrimento da história daquela comunidade. Não servem. Exigem serem servidos.

Tem uma canção que gosto muito, que é bastante cantada na ceb nos atos penitenciais que diz assim:

“Quem não te aceita, quem te rejeita, pode não crer, por ver cristãos que vivem mal…”

Tenho visto cada vez mais pessoas que estão tristes com a Igreja Católica que trazem consigo características em comum: Não participam da vida comunitária, não batem um prego num sabão para ajudar na construção da reflexão e não ajudam na lida cotidiana da comunidade, mas querem espaço de liderança. Não topam estar numa turma de catequese com um grupo de 05 ou 10. Querem ser chamados para fazer palestra nos grupos x ou y, mas não estão dispostos a participar da formação na paróquia. Ou seja. Só aceitam posição de liderança ou de destaque, (igual ao padre) não querem, portanto, fazer parte da massa. O que não entendem é que se não se misturar a esta massa, jamais poderá ter de novo o prazer de se alegrar em uma comunidade.

Não é este o comportamento clericalista?? Não é essa a razão pela qual reclamamos dos Padres que não ouvem, não colocam os pés no barro, não frequentam a casa dos mais pobres?? Aí me pergunto, aos que reclamam daqueles: não estamos imitando e nos comportando da mesma forma??

Não é necessário brigar com o padre. Mas é necessário construir a comunidade junto com ele. Estar à disposição de uma comunidade de fé (E NÃO DO PADRE) significa também ter a humildade e a disposição de amadurecer a fé a partir do exemplo do lavapés e aí, sim, estar pronto para ajudar o padre. Afinal, o ensinamento Evangélico é que se não houver a permissão para que os próprios pés sejam lavados, não se compreenderá que este exemplo não é para usufruir de um serviço mas a ação diária para se fazer imitador de Cristo.

Portanto, esta reflexão não é um chamado de uma guerra contra os padres, muito menos de uma postura que queira lançar culpas a quem quer que seja, antes de mais nada é um apelo para que o clero, enquanto representantes tão privilegiados ( mas não únicos) do amor de Deus, se voltem novamente ao serviço profético de anunciadores do amor de Deus e denunciadores contra as mazelas que os poderosos infligem contra a razão maior das suas existências: os pobres.

Que todos nós, filhos e filhas de Deus e peregrinos por este mundo em busca do conforto espiritual, tenhamos a reciprocidade da acolhida de nossos pontos de vista e não da imposição do ponto de vista ideológico, travestido de teológico por parte do clero e de lideranças leigas fascistas, pois estas, destroem o amor, a fraternidade e a solidariedade entre nós!

Que nosso projeto de religiosidade tenha, na necessidade da dignidade de qualquer vida, o parâmetro da defesa da vida de todos, e que esta dignidade seja aplicada da concepção (e não apenas da concepção à Luz), indo até a morte natural como parâmetro da defesa da vida, conforme proposto pelo próprio Cristo. (João,10-10)

 

Toninho Kalunga é leigo orionita na Comunidade do Pequeno Cotolengo, Santuário São Luis Orione em Cotia e membro da Fraternidade Leiga Charles de Foucauld

Fonte: CEBs do Brasil