[…] Dia do Grito dos Excluídos […] a intenção é evidente. É na semana da pátria, no dia da pátria, que mais sentimos o clamor do povo brasileiro, por vida, por fraternidade, por solidariedade. Um clamor que se ergue de todas as partes do Brasil. É um grito pela vida. Por isso que o lema é “A vida em primeiro Lugar”. Assim estamos recuperando a celebração do dia da pátria para a cidadania. Nós sentimos que pátria não é só território. Pátria não são só leis. Pátria não é só um plano econômico. Pátria é a convivência fraterna de todas as pessoas
(D. Demétrio, Pastoral Social. CNBB, 1995)[1].
O Brasil celebra, neste 07 de setembro de 2022, o bicentenário da sua independência. Neste momento importante para a reflexão cidadã sobre qual nação nos tornamos nos últimos 200 anos e qual nação queremos ser, a Igreja Católica no Brasil, juntamente com vários movimentos sociais de todo o país, realizam a 28ª edição dos atos do Grito dos Excluídos e das Excluídas, cujo tema é “Brasil: 200 anos de (In)dependência. Para quem?”.
O referido tema vai ser levado às ruas e praças de um Brasil que infelizmente amarga o crescimento astronômico da pobreza e da miséria, o acúmulo de mortes pela sindemia da Covid-19 e ameaças constantes à democracia incitadas pelo próprio governo federal. Segundo levantamento do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas[2], o país alcançou o recorde de 23 milhões de pessoas vivendo na pobreza em 2021, um aumento astronômico em relação aos anos anteriores. E segundo dados do Ministério da Saúde[3], 684.503 pessoas já foram vitimadas pela Covid-19 no Brasil. Não obstante, como foi constatado na Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, realizada pelo Senado Federal, grande parte dessas vidas não teriam sido ceifadas caso o governo federal não tivesse seguido pelo caminho do negacionismo científico, da corrupção e do ataque político das instituições da República.
O Grito dos Excluídos como contraponto ao Grito do Ipiranga
O Grito dos Excluídos desse ano coloca em evidência, novamente, uma discussão sempre atual no Brasil, qual seja, os sentidos da nossa independência enquanto povo e nação. Trata-se, antes de qualquer coisa, da crítica sócio-histórica à forma pela qual se deu o processo de independência do país e as suas consequências sociopolíticas para os séculos seguintes. Como destaca o historiador José Murilo de Carvalho (2012)[4], o referido processo de independência foi feito de cima para baixo, sem a participação popular e sem uma ruptura com o paradigma socioeconômico do período colonial. Paradigma este, estruturado pelas realidades da escravidão negra, do alto índice de analfabetismo, da restrição de direitos civis e políticos à maior parte da população e da ausência de uma identidade cívico-nacional.
A pintura “Grito do Ipiranga” de Pedro Américo, há muito é usada como exemplo para o argumento da crítica ao processo de independência no Brasil. Na tela, a figura do carreiro, um homem preto, pobre e descalço, sempre é apontada como a imagem do povo que assiste passivamente a proclamação da independência pelo príncipe herdeiro do trono de Portugal.
Pintura “Independência ou morte” de Pedro AméricoFONTE: Wikipedia.
Em contrapartida ao patriotismo alienante promovido pela ditadura militar (1964-1985), que reproduzia de forma acrítica, em suas propagandas, o grito “Independência ou Morte”, nasceu o Grito dos Excluídos, cujo lema sempre foi “Vida em Primeiro Lugar”. Trata-se de uma importante evolução da consciência cidadã do povo brasileiro e da concepção libertadora de evangelização da Igreja, outrora amarradas pelo julgo da herança imperial da subcidadania e do salvacionismo da alma às custas do sacrifício do corpo.
O Grito dos Excluídos foi idealizado em 1994, no âmbito da 2° Semana Social Brasileira da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cujo tema era “Brasil, alternativas e protagonistas”. Sua primeira edição ocorreu no dia 07 de setembro de 1995 em 170 localidades no país. Cabe ressaltar que naquele mesmo ano a Campanha da Fraternidade teve como tema “A Fraternidade e os Excluídos”. No ano seguinte, o Grito dos Excluídos foi aprovado pela Assembleia Geral da CNBB como parte do Projeto Rumo ao Novo Milênio – doc. 56nº129) e foi realizado em mais de 300 cidades brasileiras. Desde então o Grito dos Excluídos se tornou um processo coletivo de reflexões e de manifestações que visam a superação do patriotismo passivo pela cidadania ativa e participativa, bem como a construção de uma sociedade brasileira justa e fraterna (GRITO DOS EXCLUÍDOS, 2019)[5].
Destarte, o Grito dos Excluídos é um dos pontos altos da ação evangelizadora e pastoral da Igreja no Brasil desde o pós-constituição de 1988. Há 28 anos a Igreja sai às ruas com os excluídos, preferidos de Jesus, para denunciar modelos e concepções de independência calcados na exploração e propor a experiência coletiva do reino de Deus dentro da história, a partir das realidades sociopolíticas e econômicas próprias de cada ano e de cada região do país.
Várias foram as pautas do Grito dos Excluídos ao longo das últimas três décadas, tais como o trabalho digno, o direito à terra, saúde e educação de qualidade, a implementação de políticas públicas para a promoção da dignidade da pessoa humana, a expansão da cidadania e a defesa da democracia. E vários foram os novos atores sociais que abraçaram o Grito dos Excluídos, como movimentos sociais e sindicais de diversas áreas, tornando-o mais do que um ato circunscrito às pastorais da Igreja Católica, mas sobretudo uma manifestação cidadã do povo brasileiro, guiada por valores cristãos.
Nesse ano, novamente as marchas e atos ecumênicos do Grito dos Excluídos vão acontecer em todos os estados brasileiros. É um ano especial, haja vista o bicentenário da independência e ano eleitoral, oportunidade para o povo brasileiro discernir de forma prospectiva e esperançada sobre qual horizonte o país precisa seguir para sair da atual crise humanitária e democrática em que se encontra.
Do ponto de vista da evangelização, o Grito dos Excluídos é um antídoto ao dualismo espiritualista, tantas vezes combatido pela Tradição cristã por ofuscar a compreensão da encarnação e da aliança, realidades basilares da fé. O Deus comunicado por Jesus Cristo se manifesta no clamor dos pequeninos, na libertação das escravidões mundanas que são sempre ultrages à dignidade da pessoa como um todo (corpo, alma e espírito), já que não há mal social que não oculte também a ação providente do Pai e seu projeto de salvação.
[1] In: https://www.youtube.com/watch?v=6xAayuk2gPM Acesso: 06/09/2022.
[2] In: https://www.cnnbrasil.com.br/business/brasil-registrou-recorde-de-23-milhoes-vivendo-na-pobreza-em-2021-aponta-fgv/#:~:text=A%20propor%C3%A7%C3%A3o%20de%20pobres%20subiu,s%C3%A9rie%20hist%C3%B3rica%20iniciada%20em%202016. Acesso: 06/09/2022.
[3] In: https://infoms.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html Acesso: 06/09/2022.
[4] CARVALHO, José Murilo, Cidadania no Brasil, o Longo Caminho. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012.
[5] In: https://www.gritodosexcluidos.com/historia Acesso: 06/09/2022.
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Glaucon Durães da Silva Santos
É católico leigo da paróquia Bom Jesus e Nossa Senhora Aparecida, Santa Luzia/MG, doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas, professor de Sociologia, membro da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais e colaborador voluntário do Observatório da Evangelização da PUC Minas. Desenvolve pesquisa nas áreas da Sociologia da Religião e da Sociologia Política. Atualmente é representante da Mitra Arquidiocesana de Belo Horizonte (Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia) no Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Santa Luzia.