Os jovens estão perdidos, alienados ou em busca de sentido?
1 Quem são os jovens sem religião?
Segundo a socióloga da religião, pesquisadora da UFRRJ, Sílvia Fernandes, os motivos para que os jovens abandonem suas filiações religiosas institucionais são variados. “Podemos perceber o descontentamento em relação a normas e condutas institucionais, o desencanto com o universo significativo religioso expresso nas imagens de sagrado que possuíam” (FERNANDES, IHU, 2022). Essas imagens são, normalmente, fornecidas pela família ou pela escola confessional. No entanto, ao mesmo tempo, percebe-se uma insatisfação por não terem sido atendidos em seus pedidos em momentos dramáticos da vida. A religião parece não ter oferecido (ou insuficiente) amparo psíquico e existencial nessas ocasiões. Em alguns casos houve perdas familiares e, consequentemente, eles deixaram de acreditar na eficácia da religião ou perderam a fé. Muitas vezes, estavam inseridos em uma perspectiva de fé ainda pouco madura ou com poucas características reflexivas e críticas.
A linguagem dos jovens, cada vez mais, demonstra uma independência entre experiência religiosa e espiritualidade. A dimensão espiritual funciona como experiência de transcendência e sentido que não necessariamente depende da mediação institucional. No que se refere ao discurso religioso, o contexto de globalização acaba produzindo dois movimentos: extremo fechamento das religiões como estratégia para proteção de seus dogmas ou, por outro lado, a abertura de espaços ao sincretismo advindo deste encontro. Nesse cenário, podemos perceber que os jovens possuem uma responsabilidade relevante na discussão acerca da religiosidade humana pois, são os que recebem a cultura religiosa acumulada historicamente, mas que também detém o poder de criar um modo específico de diálogo com esse discurso, ampliando-o. Por isso, a compreensão do fenômeno “jovens com espiritualidade sem religião” é tão importante.
Parece haver uma constante dialética entre modos de ser entre a juventude. Segundo Regina Novaes, existe um campo de batalha entre conservadores e progressistas nas redes sociais, na sociedade e que refletem na juventude sua concepção religiosa ou não-pertencimento institucional. Analisando o campo católico, percebe, ainda sob inspiração nos documentos do Concilio Vaticano II (e, atualmente, disputando as bênçãos e a aprovação do Papa Francisco) junto às clássicas questões de terra, moradia e condições de trabalho, acrescentam-se tanto a questão da igualdade racial quanto demandas de mulheres e de grupos de gays e trans. Assim, no combate a preconceitos e discriminações, abrem-se novas possibilidades de comunicação entre jovens evangélicos, católicos e ligados às religiões afro-brasileiros. Vídeos e blogs de youtubers e coletivos disponíveis na internet, utilizando imagens e argumentos muito similares, promovem um dinâmico “ciber-ecumenismo”, informal e prático, sem reuniões para “definir” concepções e estratégias (NOVAES, 2021).
O mundo virtual pode, por outro lado, significar ampliação de conexões, troca de ideias e de afetos, conhecimento de novas formas de vida. Dessa maneira, apesar da afirmação de padrões violentos, temos a chance de vivenciar, cada vez mais concretamente, uma sociedade plural e diversa. A evangelização precisa também dar conta desse contexto, dialogando com diversos grupos identitários, buscando escutá-los e permitindo uma interface teológica com sua singularidade.
Em entrevista, ouvi relatos de jovens católicos carismáticos gays que, buscando apoio para assumir sua própria orientação sexual, acessam e interagem em sites ligados ao movimento Diversidade Católica. Porém, esses mesmos jovens continuam participando presencialmente de grupos e rituais carismáticos em que não falam sobre sua orientação sexual. Temos aí um espaço católico virtual para acolhimento moral e outro presencial para manifestar a fé e participar de rituais. Sinais dos tempos (NOVAES, 2018).
Ou seja, podemos atestar que o jovem busca, em primeiro lugar, vivenciar sua identidade. No entanto, devido a poucas possibilidades reais e atraentes para a experiência religiosa, acaba buscando pertencer a grupos mais próximos à sua linguagem.
2 Transformações pós-modernas que impactam a juventude
Como podemos entender as transformações atuais? Vivemos hoje em uma sociedade que nos leva à exaustão, cobramos em excesso de nós mesmos, a ponto de termos a sensação de inutilidade quando não estamos produzindo. “Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando; é a lógica traiçoeira do neoliberalismo. E a consequência: Não há mais contra quem direcionar a revolução, a repressão não vem mais dos outros. É ‘a alienação de si mesmo’, que no físico se traduz em anorexias ou em compulsão alimentar ou no consumo exagerado de produtos ou entretenimento. A internalização psíquica é um dos deslocamentos topológicos centrais da violência da modernidade, ela provê mecanismos para que o sujeito de obediência internalize as instâncias de domínio exteriores transformando-as em parte componente de si”.[1]
O indivíduo busca a realização a partir de máxima produtividade, se alienando, nunca tendo possibilidade de refletir sobre seu próprio desejo. Aliás, algumas vezes ele procura um autoconhecimento para isso, mas já inserido em uma visão viciada de conceitos prontos da gestão (como inovação, proatividade, liderança, inteligência emocional). É uma busca em círculos, sem liberdade. Sem dúvida, o jovem está muito mais inserido nesse contexto, ao mesmo tempo, mais vulnerável.
É possível, nessa lógica, adotar uma postura “espiritualista” no mundo pós-moderno. Trata-se de um caminho para o interior, para o silêncio. No entanto, quando essa prática não está inserida na concretude histórico em seu horizonte, assim, podemos chegar à fórmula homeopática: “capitalistas sim, mas zen!”, como nos alerta o filósofo contemporâneo Slavoj Zizek[2]. Não há dúvida de que as dimensões psíquicas serão cada vez mais abordadas pela nova evangelização. As pessoas precisam elaborar suas demandas existenciais e a espiritualidade pode ser um lugar de vivência desse aspecto de forma libertadora. É preciso atestar vulnerabilidades sociais, emocionais, afetivas, subjetivas, que são resultado de um mundo permeado por violências simbólicas e exclusões humanas. Faz-se necessário, no entanto, a vivência de outra lógica, para além de tendências que reproduzem o sistema imperante e a lógica do narcisismo contemporâneo. Nesse contexto, o espírito sinodal reflete uma postura de abertura e interface com outras áreas do saber, a partir de uma teologia não mais moderna, mas pós-moderna, descentrada e dialogal, que ateste as vulnerabilidades corpóreas e encarnadas contemporâneas.
3 As religiões podem voltar à vida dos jovens sem religião?
Qual o papel da religião na vida do jovem? Certamente pode estar em uma direção diferente da alienação e do aprisionamento e mesmo aquele de “preencher” vazios, o que é feito, comumente, com aspectos de violência simbólica. A beleza do “religare” se transforma em violência do sagrado. As religiões constituem uma das construções de maior excelência do ser humano. Todas elas trabalham com o divino, com o sagrado, com o espiritual, mas não detêm o monopólio do espiritual. Ele é um dado antropológico, da dimensão do profundo. Ocorre que as religiões podem se auto finalizar e se autonomizar, articulando os poderes religiosos com outros poderes ideológicos e políticos.[3]
Segundo o filósofo italiano, Giorgio Agamben,[4] tornar algo sagrado era, no Direito Romano, um conceito que designava a fuga das coisas da esfera do direito humano. Ao buscar a origem do termo “religio”, o filósofo descobre que não deriva de “religare”, mas de “relegere”, que indica justamente o caminho oposto: o que de seve observar para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Dessa maneira, a religião não se opõe à incredulidade e à indiferença em relação ao divino, mas à “negligência” com relação a ele, uma atitude livre e espontânea.
O Papa Francisco também ressalta a função e a primazia do “religare” em nossos tempos: “As religiões estão a serviço da paz e da fraternidade. Por isso, este encontro impele os líderes religiosos e todos os fiéis a rezarem insistentemente pela paz, não se resignarem jamais com a guerra e agirem mediante a força suave da fé para pôr fim aos conflitos”. Adentrar o real, estar próximo às alteridades, propor caminhos de um novo humanismo… Eis as missões urgentes da espiritualidade contemporânea. A religião deve sim, para a juventude, possibilitar a vivência de dimensões reais e humanas, de forma que possa experimentar uma autêntica realidade de “Deus, entre nós” ou, como afirma o teólogo jesuíta boliviano, Manuel Hurtado, “Deus, não sem nós”.
[1] HAN, Byung Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
[2] Zizek, Slavoj. Entrevista ao Le Monde, 2017.
[3] BOFF, Reflexões de um velho teólogo e pensador, p. 171.
[4] AGAMBEN, G., Estado de exceção, p. 65.
/*! elementor – v3.6.6 – 15-06-2022 */ .elementor-widget-image{text-align:center}.elementor-widget-image a{display:inline-block}.elementor-widget-image a img[src$=”.svg”]{width:48px}.elementor-widget-image img{vertical-align:middle;display:inline-block}Prof. René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia” e “Diversidade afetivo-sexual e teologia”, ambos na FAJE e “Teologia e Contemporaneidade”, na PUC-Minas.