Entrevista realizada por René Dentz, professor da PUC-Minas e membro do Observatório da Evangelização (OE), ao professor Antonio Manzatto (PUC-SP).
Professor Antonio Manzatto é Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica) e Professor na Faculdade de Teologia da PUC-SP. Foi pioneiro nas pesquisas da interface entre teologia e literatura no Brasil. É líder do Grupo de Pesquisa CAPES “Lerte”, na PUC-SP.
Nessa entrevista, prof. Manzatto analisa o comportamento da juventude na pós-modernidade a partir de suas características “líquidas” e faz uma reflexão importante sobre os caminhos da educação e da igreja em relação aos jovens.
OE: Regina Novaes (2018), ao compreender as mudanças que impactam a relação entre jovens e religiosidade, nos mostra que a juventude contemporânea vive um tempo em que as religiões não são mais as principais fontes distribuidoras de sentido e imagens estáveis da vida entregues de geração a geração pelas autoridades religiosas, reconhecidas como tal. Ao mesmo tempo, hoje não há como falar de juventude sem falar de incertezas. Esse é o sentimento comum que atravessa toda uma geração. Da subjetividade dos jovens de hoje – com diferentes matizes e intensidades de acordo com suas condições de vida – fazem parte vários medos. A partir desses novos cenários, quais são as principais buscas, desejos, consumo, sonhos, que caracterizam os diversos rostos da juventude hoje?
AM: Creio que a juventude de todos os tempos é, sempre, idealista. Sua característica principal é o sonho – transformado ou não em projeto concreto – que impulsiona sua vida e seu eu rumo ao futuro. Em tempos que são os nossos – de crítica à modernidade e à pós-modernidade – duas características principais se destacam, e talvez não apenas na juventude: a expectativa de que “alguém” realize o que se quer e a busca por entretenimento. A mudança de paradigma social – com a implementação do “curtir a vida”, faz com que a juventude se ligue mais com o momentâneo, mesmo que efêmero, em vez daquilo que é mais permanente ou definitivo, e daí a perspectiva do “aproveitar a vida” que se realiza, de maneira mais radical, nas drogas, por exemplo, ou de maneira mais suave nas redes sociais; também explica a violência, explícita ou não, contra aqueles que não pensam da mesma forma, e a formação de tribos as mais diversas, que caracterizam seus participantes. Por outro lado, a realização imediata de sonhos e desejos depende de “alguém que faça”, visto que são, em muitos casos, de impossível realização, ao menos a curto prazo. Daí a expectativa de “milagres e messias”, que infantilizam e vão na contramão do que é característico da juventude: o engajamento pela construção do futuro. Daí os cenários religiosos que temos atualmente, conjugados a uma desmobilização social bastante grande da juventude.
OE: A adolescência é complexa porque porta também uma ideia de limbo, quase como uma ideia de não-ser, mas tem que assumir sua liberdade. Ser e não-ser estão caminhando juntos, paradoxalmente. Há uma determinação e uma indeterminação do sujeito. O jovem não tem ainda uma identidade, busca incessantemente uma (comumente em grupos, ideias, pessoas). Como o adolescente de hoje vivencia sua liberdade no âmbito da cultura? Como podemos pensar a relação entre cultura (em especial a música), espiritualidade e juventude?
AM: Conhecemos um processo de infantilização em nossa sociedade. Sempre se espera que “alguém” faça as coisas, solucione os problemas e realize a vida desejada. Uma das características da adolescência é o não-conformismo, espécie de rebeldia, que aponta para uma insatisfação constante. A mesma sociedade é, por outro lado, narcisista ao extremo, o que repercute na necessidade de o adolescente ser como o centro das atenções. Nesse sentido, as redes sociais são importantes meios de afirmação porque, ali, há a possibilidade de realização da aparência e uma espécie de supervalorização do subjetivismo, em constantes fotos, vídeos ou ditos que querem chamar a atenção. Nesse fervilhar da sociedade é que flutuam as manifestações culturais. As referências mais tradicionais desaparecem, como as do mundo sertanejo, por exemplo, em vista de novas estéticas ou afirmação de valores. Na música, por exemplo, o “sertanejo raiz” dá lugar ao “universitário” ou à “sofrência”, o que caracteriza, exatamente, a mudança de padrões tradicionais. Se isso enfatiza a liberdade da juventude diante de comportamentos antigos, por outro lado, como expressão da sociedade que são, expressam aquilo que é visto como valor e objetivo a ser perseguido.
OE: A igreja tem conseguido apresentar aos jovens uma experiência cristã libertadora? Por que tantos jovens têm sido atraídos pelas propostas de grupos neoconservadores?
AM: As pregações e comportamentos religiosos mais recentes apontam para a valorização dos milagres e do extraordinário como afirmação de poder. O que se cultua, ao menos em certos ambientes religiosos, é a ideia de que “alguém” vai resolver os problemas, seja Deus, o santo ou o ministro religioso; curiosamente em tempos de subjetividade, se demite aqui o papel do sujeito para que a responsabilidade da construção da vida dependa de outra pessoa, força ou realidade. Com isso se tem certa infantilização da sociedade como um todo, e a juventude dela faz parte. Entende-se, portanto, porque a mesma juventude é atraída pelos movimentos neoconservadores que, pela própria natureza, são incapazes de proporcionar uma experiência libertadora. Na busca, então, de liberdade, procuram-se líderes “carismáticos” e diferentes do tradicional que conduzirão a nova forma de dependência, estabelecendo verdadeiro círculo que denuncia como o atual sistema social é capaz de colocar a religião a seu serviço.
OE: Como a Igreja se posiciona hoje em relação aos impactos da desigualdade social na vida dos jovens? Quais são as respostas pastorais em curso?
AM: As questões relacionadas à sociedade quase que desapareceram do cenário eclesial, reduzidas às atividades das chamadas “pastorais sociais”. Apenas mais recentemente, por conta do magistério do Papa Francisco, é que algumas questões retornaram às preocupações pastorais, como o compromisso em favor da vida e do meio ambiente. A questão da desigualdade social tem permanecido no âmbito das atividades de assistência ou situações de emergência, não alcançando realidades mais estruturais. A juventude, nesse sentido, tem permanecido, enquanto atividades pastorais, mais ligadas a questões de espiritualidade e organização eclesiástica que propriamente atividades de transformação social. Enquanto ligadas aos movimentos eclesiais, as iniciativas pastorais que contemplam a juventude não alcançam a dimensão sociopolítica por exemplo, permitindo que esse espaço seja ocupado pelos setores mais conservadores da Igreja e da sociedade.
OE: Hoje muito se fala sobre a inserção de mulheres em espaços de decisão da Igreja, o que tem sido um desafio enfrentado, não sem grandes resistências, por parte da hierarquia, com vários acenos positivos do Papa Francisco. No entanto, não se fala dessa mesma inserção do ponto de vista da juventude. Na verdade, os jovens que aparentemente estão mais próximos da hierarquia são aqueles em formação para o sacerdócio e, justamente estes, encontram-se na muitas vezes em condições ainda mais rígidas de vigilância, dependência e submissão. A ausência efetiva de jovens dentro de espaços privilegiados de decisão da Igreja não seria um impedimento para que suas questões fossem de fato contempladas nas reflexões eclesiais? Que espaços têm sido criados e que movimentos têm sido feitos para a manifestação e escuta ativa da juventude junto à uma hierarquia cuja alta cúpula é formada, majoritariamente, por idosos?
AM: Essa talvez seja uma realidade, e a Igreja encontra dificuldades para, no espírito da Christus Vivit, entender que o jovem é sujeito evangelizador da juventude. Mas creio que a questão não é exatamente de idade, em uma espécie de conflito de gerações, mas sim de perspectiva eclesiológica. Uma Igreja que é de todos, tendo todos como sujeito, comporta um lugar para a juventude; a Igreja que é apenas hierárquica, não tem lugar para quem não se submeta, simplesmente, ao poder estabelecido. A distância entre a Igreja e a juventude não é apenas de escuta ou de linguagem, é de modelo, no sentido de se ter como referência fundamental o Evangelho de Jesus e não situações específicas de comportamento religioso.
OE: Frequentemente as instituições de ensino católicas se veem desafiadas por uma aparente contradição entre o pluralismo cultural e religioso da sociedade contemporânea e a consolidação de sua identidade confessional. Além disso, vemos também a tenção existente entre se manter viva e relevante no mercado educacional sem perder-se em estruturas elitistas que favorecem a desigualdade ao invés de minimizá-la. Nesse aspecto, as escolas e universidades católicas tem ainda um papel a cumprir junto à juventude no que diz respeito à transmissão de valores realmente evangélicos? E como favorecer aos jovens estudantes desses espaços uma experiência cristã madura que garanta não somente a excelência acadêmica, mas também uma formação humanista característica do cristianismo?
AM: Creio que uma escola católica, sobretudo a universidade, é em primeiro lugar escola, e por isso precisa ter a qualidade acadêmica como distintivo fundamental. No caso específico da universidade, o que a caracteriza, em primeiro lugar, é sua necessidade de excelência acadêmica. Essa não é exclusivamente técnica, mas também humana, confessional e, por isso, aberta à realidade dos que mais sofrem. Quando se perdem de vista tais realidades, pensa-se que a universidade é apenas para formar para uma profissão rentável e que o fato de ser católica significa que é uma subsidiária da sacristia. Na verdade, os valores evangélicos são o fundamento para aquilo que chamamos de valores humanos, e é exatamente essa perspectiva de um humanismo renovado, para o qual o Papa Francisco convoca a todos, que deve presidir as preocupações de uma universidade católica.