A memória necessária, o perdão e o horizonte de Fratelli Tutti

O ato de rememorar é referido a uma lembrança ao que já aconteceu no passado, por isso ele é inseparável do tempo, pois, já implica algo que aconteceu em determinado momento. No entanto, existe uma diferença fundamental entre a lembrança e a memória. A lembrança retoma os fatos em ordem como se não tivesse acontecido um passado, a coisa não vem mais e a imagem da coisa que vem. As lembranças são sempre no plural, já a memória é tratada no singular e com capacidade. O Papa Francisco nos ensina a dimensão da memória e sua relação intrínseca ao perdão: De quem sofreu muito de maneira injusta e cruel, não se deve exigir uma espécie de «perdão social». A reconciliação é um facto pessoal, e ninguém pode impô-la ao conjunto duma sociedade, embora a deva promover. Na esfera estritamente pessoal, com uma decisão livre e generosa, alguém pode renunciar a exigir um castigo (cf. Mt 5, 44-46), mesmo que a sociedade e a sua justiça o busquem legitimamente. Mas não é possível decretar uma «reconciliação geral», pretendendo encerrar por decreto as feridas ou cobrir as injustiças com um manto de esquecimento. Quem se pode arrogar o direito de perdoar em nome dos outros? É comovente ver a capacidade de perdão dalgumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento (FT, 246).

O ato de perdoar pressupõe tempo e luto, mas não se limita a essas instâncias, pois está vinculado a uma aposta no sujeito capaz. Por isso, inclui reconciliação, dom e generosidade. Dessa maneira, está situado entre o trabalho da lembrança e do luto, recontextualizando-os a partir da lógica do dom, da superabundância, para além da reciprocidade, como acontece na dimensão da justiça. Nesse contexto, o ato de perdoar demonstra não apenas uma indeterminação do futuro, mas também o passado que pode ser alterado, pois há uma alteração de sentido. A memória na condição de forma mais significativa para expressar o que aconteceu, é imprescindível no caminho do reconhecimento do indivíduo, que transmite suas experiências e sua existência. Ou seja, o testemunho é compreendido como essencial na passagem da memória para a história, abrindo espaço para um campo hermenêutico. A memória é tão importante de ser pensada quanto à história, não podemos fazer história sem fazer e entender a memória. Por isso, é importantíssimo pensá-la também em uma dimensão reflexiva. Portanto, temos a noção de que o tempo existe, porque existe a memória, que nos permite pensar em tais fatos que estão às vezes presos no decorrer do tempo, se temos a noção de ser é porque à medida que o tempo foi se passando, fomos descobrindo esta noção, com isso não posso e nem consigo pensar na memória sem pensar no tempo como base fundamental para se pensar memória e depois a história. Com essa concepção de memória, o humano é capaz de realizar algo, pois o hábito já o tornou confiante em seus atos, em suas teorias. Sendo assim, o “perdão difícil” é pensado como horizonte, como antecipação da memória feliz ou reconciliada.

Por outro lado, algumas lembranças o tempo não é capaz de esquecer, como os pequenos ou grandes momentos de felicidade e às vezes não esperamos lembrar daquilo que acreditávamos ter perdido para sempre. A observação da sociedade contemporânea, na sua prática, revela então duas forças: de um o lado, os resquícios da justiça real, presentes na graça e emprego da anistia, que tende a tudo esquecer; de outro, uma recusa a nada esquecer, como no caso da imprescritibilidade. O perdão não se alinha ao lado do esquecimento. O esquecimento e o perdão designam separadamente e conjuntamente, o horizonte de toda nossa pesquisa. Separadamente, na medida em que lhes implica cada um uma problemática distinta: para o esquecimento aquela da memória e da fidelidade do passado: para o perdão, aquela da culpabilidade e da reconciliação com o passado (RICOEUR, 2007, p. 536).

Assim, se existem fórmulas jurídicas que conferem efeitos benéficos, no sentido de eximir ou atenuar penalidades, outras foram construídas como resposta enérgica para combater os genocídios e preservar os direitos humanos após a Segunda Guerra, e hoje constituem o regime jurídico dos denominados crimes contra a humanidade. A imprescritibilidade destes crimes, por exemplo, é uma medida de exceção, porque em decorrência dela, a qualquer tempo, o responsável pode ser perseguido, pode ser punido, pode ter a pena executada e, portanto, saldada a dívida com o Direito e a sociedade. A dívida, em suma, poderá ser sempre cobrada pela justiça, e esta é uma das grandes provas da problemática do perdão. Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, frenam o avanço das forças da destruição. Decidem não continuar a injetar na sociedade a energia da vingança que, mais cedo ou mais tarde, acaba por cair novamente sobre eles próprios. Com efeito, a vingança nunca sacia verdadeiramente a insatisfação das vítimas. Há crimes tão horrendos e cruéis que, fazer sofrer quem os cometeu, não serve para sentir que se reparou o dano; não bastaria sequer matar o criminoso, nem se poderiam encontrar torturas comparáveis àquilo que pode ter sofrido a vítima. A vingança não resolve nada (FT, 251).

            Na perspectiva da experiência do perdão e da esperança fundada na cruz e na ressurreição, bem como com a liberdade como o ser libertado e curado no encontro com Deus, podemos concluir que: no encontro com Deus experimentamos, pela fé, um perdão que pela primeira vez nos revela nossos pecados. Ele nos liberta e capacita para o encontro com o outro. Ou seja, a graça de Deus está sempre presente, contígua a qualquer momento histórico, assim como subversiva a ele. Não é a autotranscendência humana universal que se torna explícita durante os eventos e as narrações sobre a salvação, mas a manifestação visível da doação gratuita e universalmente presente em Deus, permitindo que nos tornemos receptáculos vivos em vez de reiterarmos nossos modos de apropriação do outro que nos forma, o qual é revelado como puramente gratuito. No entanto, uma das intuições reveladas pela doutrina do pecado original nos mostra que o dano da queda foi incidido exatamente em nossa capacidade de receber gratuitamente.

             É essa lógica que reorganiza em um sentido poético o horizonte da regra de ouro, pois o conteúdo desta exige o poder da imaginação, bem como a abertura a novas possibilidades de significados. Dessa maneira, a justaposição da regra de ouro e do mandamento do amor na narrativa bíblica exige uma saída poética, podendo esta ser desenvolvida em duas dimensões: na simbólica, como no Sermão da Montanha e também no Sermão da Planície, onde é desenvolvido o primado do dom sobre a obrigação. Por outro lado, no plano teórico há uma articulação da economia do dom com a economia da reciprocidade, permitida pelo dom que gera obrigação.

            Na Encíclica Fratelli Tutti, Papa Francisco insiste na importância e na dinâmica do perdão como elemento civilizatório à humanidade. Dessa maneira, podemos destacar dois caminhos estabelecidos como vias do perdão: o caminho da alteridade e o caminho do reconhecimento. O segundo se mostra mais fundamental, pois é nele que encontramos a retomada bíblica da Regra de Ouro e a lógica que servirá de base ao perdão: a lógica da superabundância.

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Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.