Nova evangelização em um novo mundo

Talvez a palavra mais significativa dos nosso tempo seja “ruptura”. O mundo apresenta transformações lentas que, em algum momento, se tornam realidades comuns. A internet das coisas está aí, pouco a pouco vamos incorporando-a ao nosso cotidiano. Muitos analistas de tecnologia acreditam que o ano de 2025 será de mudanças impactantes à humanidade, pois a Inteligência Artificial deixará seu lugar de pesquisa, estudos e experimentos e se apresentará na prática. Reflexo desse fato será a realidade dos carros autônomos. As pessoas terão que aprender a lidar mais ainda com a sua subjetividade. Profissões repetitivas tendem a desaparecer, mas outras que dependem do emocional e do criativo crescerão (ou mesmo surgirão). Onde fica a evangelização nesse mundo? Para dentro ou para fora das paróquias e ambientes eclesiais, ou em ambos?

            A sensação de muitos é que o trabalho agora não tem mais limite, as resoluções de problemas são entendidas a partir de flexibilidade máxima de horário. Antes da pandemia, já vivíamos em uma sociedade do cansaço, como dizia o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Para ele, vivemos hoje em uma sociedade que nos leva à exaustão, cobramos em excesso de nós mesmos, a ponto de termos a sensação de inutilidade quando não estamos produzindo. “Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando; é a lógica traiçoeira do neoliberalismo. E a consequência: Não há mais contra quem direcionar a revolução, a repressão não vem mais dos outros. É ‘a alienação de si mesmo’, que no físico se traduz em anorexias ou em compulsão alimentar ou no consumo exagerado de produtos ou entretenimento. A internalização psíquica é um dos deslocamentos topológicos centrais da violência da modernidade, ela provê mecanismos para que o sujeito de obediência internalize as instâncias de domínio exteriores transformando-as em parte componente de si” (HAN, 2017, pp 22-23).

            O indivíduo busca a realização a partir de máxima produtividade, se alienando, nunca tendo possibilidade de refletir sobre seu próprio desejo. Aliás, algumas vezes ele procura um autoconhecimento para isso, mas já inserido em uma visão viciada de conceitos prontos da gestão (como inovação, pró-atividade, liderança, inteligência emocional).  É uma busca em círculos, sem liberdade.

            Dessa forma, o mundo caminha para uma mais ainda profunda padronização, uma vez que a eliminação das diferenças e do outro interessam ao mercado. Por mais que tenhamos sociedades plurais, os modos de vida e de pensamento parecem se uniformizar, até mesmo os sentimentos e as patologias. “Quanto mais iguais são as pessoas, mais aumenta a produção; essa é a lógica atual; o capital precisa que todos sejamos iguais, até mesmo os turistas; o neoliberalismo não funcionaria se as pessoas fossem diferentes”. O que temos hoje é um pluralismo permitido a alguns grupos, vivendo em seu padrão de consumo, em sua identidade e em suas respectivas bolhas.

            O mundo virtualizado pode ser um grande problema e pode trazer sérias consequências para a saúde mental. O ser humano é feito de carne e osso, de corporeidade, de elementos reais e não imaginários. Assim, o excesso pode esconder grandes problemas e até mesmo traumas do passado. Por isso tem crescido o número de adolescentes que se automutilam, pois o “corpo pede a conta”. Por mais que tentemos viver exclusivamente (ou o maior número de horas possíveis) no mundo virtual, temos necessidades humanas básicas e fundantes da nossa existência. Necessitamos, antes de tudo, de afetos! É urgente que a nova evangelização reconheça e elabore caminhos para a juventude! Temos aqui, portanto, o essencial: no mundo da técnica, ou seja, a partir de agora, no mundo todo, já que a técnica é um fenômeno sem limites, planetário, não se trata mais de dominar a natureza ou a sociedade para ser livre e mais feliz. Por quê? Por nada, justamente, ou antes, porque é simplesmente impossível agir de modo diferente devido à natureza de sociedades animadas integralmente pela competição, pela obrigação absoluta de “progredir ou perecer” (FERRY, 2012, p. 143).

            Por mais que tenhamos conquistado liberdade, autonomia e que o mundo virtual tenha aproximado as pessoas em certo sentido, é preciso vivenciar as relações humanas de afetos e afetações. O que acontece, em muitos casos, são pessoas que postam constantemente em redes sociais, mas esses atos não passam de um mecanismo de espelho, de um narcisismo desenfreado. Não há conexão humana nesses casos, mas apenas uma relação monológica. O mundo virtual pode, por outro lado, significar ampliação de conexões, troca de ideias e de afetos, conhecimento de novas formas de vida. Dessa maneira, apesar da afirmação de padrões violentos, temos a chance de vivenciar, cada vez mais concretamente, uma sociedade plural e diversa. A evangelização precisa também dar conta desse contexto, dialogando com diversos grupos identitários, buscando escutá-los e permitindo uma interface teológica com sua singularidade.

            A subjetividade colonizada se impõe contra a diversidade cultural. Sendo assim, não será apenas com outra racionalidade que será superada a epistemologia moderna, essa que tem servido para justificar tanta violência e agressões aos Direitos Humanos. Para mexer em crença, é preciso mexer em subjetividades e fomentar novas práticas culturais, bem como novas relações e estruturas sociais, econômicas e políticas que viabilizem a vivência de outras crenças (LAUREANO, 2015, p. 117).

            É possível, nessa lógica, adotar uma postura “espiritualista” no mundo pós-moderno. Trata-se de um caminho para o interior, para o silêncio. No entanto, quando essa prática não está inserida na concretude histórico em seu horizonte, assim, podemos chegar à fórmula homeopática: “capitalistas sim, mas zen!”, como nos alerta o filósofo contemporâneo Slavoj Zizek. Não há dúvida de que as dimensões psíquicas serão cada vez mais abordadas pela nova evangelização. As pessoas precisam elaborar suas demandas existenciais e a espiritualidade pode ser um lugar de vivência desse aspecto de forma libertadora. É preciso atestar vulnerabilidades sociais, emocionais, afetivas, subjetivas, que são resultado de um mundo permeado por violências simbólicas e exclusões humanas. Faz-se necessário, no entanto, a vivência de outra lógica, para além de tendências que reproduzem o sistema imperante e a lógica do narcisismo contemporâneo. Assim, o espírito sinodal reflete uma postura de abertura e interface com outras áreas do saber, a partir de uma teologia não mais moderna, mas pós-moderna, descentrada e dialogal, que ateste as vulnerabilidades corpóreas e encarnadas contemporâneas.

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Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.