Família, pais e filhos: relações a partir da construção e da misericórdia. Recordando Amoris Laetitia.

Vivemos um conflito de gerações e de consciências. É comum escutar na experiência da clínica a frase: “meu pai ou minha mãe me educa como foi educado”. Pais de algumas gerações acham que a única forma de educar os filhos é a forma que eles viveram e conheceram. Não é o caso de culpar gerações, nem de apontar seus erros, mas sim seus limites. Não é verdade que a educação violenta do passado deu certo. Afinal, os vazios de hoje são reflexos do passado. Por que será que temos uma geração tão depressiva hoje? Ou por que muitos não tratam seus traumas e os canalizam pelo álcool, drogas, medicamentos em uso excessivo?

Os vazios das relações do passado estão presentes, devem ser escutados e, sobretudo, não reproduzidos. Escutar os filhos, propor caminhos, estar junto, são fórmulas saudáveis de recentes gerações. O pai não deve mais ser figura de provedor exclusivamente, não deve se ausentar da dimensão afetiva. Mães podem sim manter suas atividades profissionais, servindo de inspiração e exemplo aos seus filhos. As ausências e os vazios, reflexos da falta de tempo podem ser supridas qualificando-o, as ausências da frieza é que são devem ser, em algum momento, arduamente elaboradas…

A mudança fundamental é que hoje temos vários caminhos para lidar com a educação dos filhos, não existe uma fórmula pronta, precisamos descobrir práticas ao longo do processo. Só assim podemos respeitar a individualidade deles. Dois seres humanos não podem ser educados exatamente da mesma maneira, cada um é único, singular em sua subjetividade.

Na Exortação Pós-Sinodal, Amoris Laetitia, resultado de reflexões de um profundo “processo sinodal” que se desenvolveu entre 2014 e 2015, o Papa Francisco sustenta a realidade das famílias como uma construção gradual. Não devemos partir de imposições e regras morais rígidas e totalitárias: “não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimônio como sinal implica um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (AL, n. 122). As expressões “processo dinâmico’, “que avança”, “gradualmente”, “progressiva integração” indicam uma mudança profunda no pensar teológico e pastoral acerca das famílias. 

Por isso, os caminhos do educar e do afeto podem ser mostrar bons, outros nem tanto, é possível perceber o erro, as projeções de traumas e recomeçar. Aqui entra a beleza do perdão, pedir perdão aos filhos é um gesto inesquecível, que eles levarão para sempre, até o último dia de sua existência, permitirá um sublime encontro com a liberdade.

O desvendar dos universos dos filhos é uma dimensão riquíssima, que pode engrandecer os sujeitos e as suas diversas atuações no mundo, inclusive no trabalho (pessoas criativas não costumam ser autoritárias, pois entendem diversas possibilidades a um problema) e na sociedade (pois é um excelente exercício à tolerância).

“Na cultura ocidental, a figura do pai estaria simbolicamente ausente, distorcida, desvanecida. Até a virilidade pareceria posta em questão. Verificou-se uma compreensível confusão, já que, «num primeiro momento, isto foi sentido como uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai como representante da lei que se impõe de fora, do pai como censor da felicidade dos filhos e impedimento à emancipação e à autonomia dos jovens. Por vezes, havia casas em que no passado reinava o autoritarismo, em certos casos até a prepotência. Mas, como acontece muitas vezes, passa-se de um extremo ao outro. O problema nos nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o pai está tão concentrado em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas próprias realizações individuais que até se esquece da família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos. A presença paterna e, consequentemente, a sua autoridade são afetadas também pelo tempo cada vez maior que se dedica aos meios de comunicação e à tecnologia da distração. Além disso, hoje, a autoridade é olhada com suspeita e os adultos são duramente postos em discussão. Eles próprios abandonam as certezas e, por isso, não dão orientações seguras e bem fundamentadas aos seus filhos. Não é saudável que sejam invertidas as funções entre pais e filhos: prejudica o processo adequado de amadurecimento que as crianças precisam de fazer e nega-lhes um amor capaz de as orientar e que as ajude a maturar” (Amoris Laetitia, 176).

É muito gratificante ver os efeitos da nova paternidade, por exemplo. Ver aqueles que amamos sendo livres e construindo uma vida feliz e apaziguada, é algo que podemos afirmar estar próximos ao sublime. É uma existência fundamentada no perdão, na tolerância e na possibilidade de amor verdadeiro.

No entanto, nossa sociedade cada vez mais se distancia dessa realidade. Ter filhos é afirmado por muitos como uma forma de perder a autonomia e a liberdade. Em uma cultura cada vez mais ancorada no narcisismo e no individualismo, muitos não querem “descentrar-se de si mesmos”. Claro que é uma opção, resultado de uma sociedade livre em sua consciência. No entanto, é preciso refletir se tais decisões não são resultado desse fechamento antropológico ou mesmo de traumas a serem elaborados.

            Mais recentemente, em sua primeira audiência geral de 2022, Francisco chamou a atenção para o fato de as pessoas estarem cada vez mais substituindo filhos, não querendo assumir responsabilidades afetivas. “Hoje vemos uma forma de egoísmo. Alguns não querem ter filhos. Às vezes têm um e param por aí, mas têm cães e gatos que ocupam esse lugar. Isso pode fazer as pessoas rirem, mas é a realidade”, afirmou. “A negação da paternidade e da maternidade nos diminui, tira nossa humanidade, a civilização envelhece”, afirmou.

            O individualismo não deve impedir a vivência de gratuidades e dimensões profundamente humanas em nome de uma liberdade individual. Uma liberdade que aliena o ser humano em seus processos de abertura às alteridades, é uma liberdade limitada. A sociedade europeia, de um modo geral, vive esse processo de individualismo que resulta, inclusive, em um trágico isolamento dos idosos, pais e avós de gerações criadas a partir do individualismo. Segundo o teólogo e reitor da Universidade Católica Portuguesa, Braga, João Duque: “A noção de disponibilidade parece resumir o paradigma da relação do sujeito ao mundo – incluindo os outros e a si mesmo – típico da modernidade (…). Isso implica, por um lado, uma concepção do sujeito como objeto disponível sem limites; e implica, sobretudo, uma concepção do humano com base na sua capacidade precisamente para tornar tudo disponível” (Duque, in DENTZ et FERREIRA, 2020, p. 52).

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Prof. René Dentz
É
católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.