Por ocasião da celebração dos 15 anos da Rede Um Grito pela Vida, Luis Miguel Modino entrevista a Ir. Valmi Bonh coordenadora nacional da Rede. De forma direta e simples, ela nos faz perceber a importância da articulação na luta contra o tráfico humano, algo que invisibilizado em nossa sociedade e que ganha forças com a enorme penetração das redes sociais. Confira:
A Rede um Grito pela Vida está completando 15 anos, como a gente poderia definir esse caminho assumido principalmente pela Vida Religiosa do Brasil?
A gente pode resumir como uma forma de louvor e agradecimento, por toda a caminhada feita. A gente sempre parte de uma mística, nosso trabalho sempre é feito a partir de uma mística que é inspirada no projeto de Jesus, que convida para abrir as portas, para sair, para atravessar as portas, atravessar o rio, atravessar as nossas fronteiras pessoais e ir ao encontro dos outros.
Essa saída, esse colocar-se a caminho nos leva a querer sempre de novo ajudar a resgatar as vidas que estão sendo ameaçadas. Também temos muito presente os carismas congregacionais, os carismas que cada pessoa também traz dentro de si, nessa defesa, com uma atitude de indignação, de compaixão, de profecia, de defesa dos direitos humanos, assim a gente vai tentando resgatar a vida que está aí.
Nesses 15 anos, a gente fez esse papel de nos colocar nesse caminho junto com as mulheres, crianças, adolescentes e pessoas que são traficadas e exploradas. É um tempo de muita graça, de muito louvor por toda a caminhada que foi feita durante esses 15 anos nos diferentes estados do nosso país. No momento, nós estamos em 22 estados, com 28 núcleos. É um espaço pequeno em alguns lugares, mas que nos faz voltar à proteção, ao resgate das vidas ameaçadas.
Poderíamos dizer que a Rede um Grito pela Vida é uma expressão de uma Igreja samaritana, assumida pela Vida Religiosa. O que isso tem representado na caminhada da Vida Religiosa no Brasil?
Podemos dizer que é um espaço que a Vida Religiosa assumiu como Conferência dos Religiosos do Brasil, e a partir daí, esse processo de realmente abraçar a causa dessa defesa da vida das mulheres e crianças. Claro que nem toda a Vida Religiosa abraça isso, porque tem também outras causas desafiantes para abraçar e assumir.
Porém, é sempre um desafio para a Vida Religiosa, cristã, assumir esse processo de se lançar e colocar-se a caminho, de promover gestos concretos de defesa da vida dentro da Vida Religiosa, em todos os sentidos e em todas as circunstâncias. Pois, o tráfico de pessoas tira toda a dignidade do ser humano, e um dos grandes papeis da Vida Religiosa é ajudar a resgatar essa dignidade para que a pessoa possa se reestruturar e reiniciar uma vida mais digna dentro de uma sociedade cruel, que explora muito hoje o ser humano em todas as dimensões.
Em que mudou a sociedade brasileira e a realidade do tráfico humano nesses 15 anos?
Com a visibilidade que a Rede vai conquistando em cada espaço, em cada instância social nos diferentes estados, a conquista desse espaço vai se tornando cada vez mais presente a necessidade do ser humano assumir o seu papel de cuidar da vida de outro ser humano, de não ficar somente ao redor de si, mas também de ter um olhar além.
As redes sociais hoje dificultam isso também, porque nessas redes, se a pessoa não se cuida, ela se volta sobre si mesma e esquece quem está ao seu redor. A visibilidade que a gente consegue, de alguma forma, a nível de Brasil, da América Latina e internacionalmente, por meio da Rede, vai ajudando as pessoas a tomarem consciência da necessidade dessa abertura, de poder olhar para o outro como um ser humano, como alguém que precisa de ajuda, como alguém que precisa de uma relação próxima para poder também ser um portador de vida para com as pessoas com que ela convive.
O trafico humano sempre foi uma realidade escondida. Até que ponto a Rede um Grito pela e outras iniciativas similares no Brasil e no mundo estão ajudando a tomar consciência sobre isso e se realmente na Igreja e na Vida Religiosa do Brasil são realizados esforços para que esse crime seja mais visível e combatido com mais força?
No começo era muito invisível o crime do tráfico humano. Hoje já, com 15 anos de atividades da rede, nos diferentes estados, com as muitas e variadas atividades e ações concretas, tanto a nível de Vida Religiosa, como também na sociedade civil, que é um espaço que foi se conquistando aos poucos, a gente consegue marcar uma presença e tornar muito mais visível esse crime. Algo que precisa ser olhado com muito carinho, que precisa ser olhado com muita misericórdia, com muita compaixão, para poder ajudar essas pessoas que são necessitadas e que sofrem violência das mais diferentes formas. Não só da violência do tráfico humano, mas também os outros tipos de violência que hoje rondam o tempo todo à pessoa humana.
A nível de Brasil, mesmo sendo grupos pequenos, a gente tenta, da melhor forma, dar uma visibilidade maior, também pela participação e mobilização em encontros da sociedade, e também diante de incidências políticas. Hoje o espaço da incidência política se torna mais enfraquecido devido às circunstâncias e situações do nosso país atual, em todos os sentidos, econômica e politicamente. Com toda a crise econômica que está aí, a Covid também enfraqueceu essa questão do espaço das políticas públicas.
Há necessidade de a gente reaver essa efetivação das políticas para podermos ter novamente um espaço maior e quebrar um pouco esse crime do tráfico humano, da exploração, do abuso, das diferentes formas.
O Papa Francisco assumiu o combate ao tráfico humano, os refugiados e outros temas que preocupam à Rede um Grito pela Vida. Como isso tem ajudado no trabalho da Rede nos últimos anos?
O Papa Francisco conseguiu trazer para a sociedade mundial esse desafio, esse problema da exploração, do abuso, do tráfico humano, de pessoa vendendo pessoa, que é um dos crimes mais hediondos conforme a fala dele. Para nós, como Rede um Grito pela Vida, e mesmo todas as redes que a partir da Rede Talitha Kum, a nível mundial, a nível da América Latina, a nível do Brasil, que trabalham na prevenção do tráfico humano, o Papa Francisco é um exemplo de pessoa inspirada por Deus em defesa da vida nessas circunstâncias e em muitas outras.
O Papa Francisco é um ponto de referência das orientações pastorais sobre tráfico humano, que foi divulgado em 2019, são pontos centrais que nos orientam e que nos ajudam. O Papa Francisco é uma pessoa que se torna um elo entre todos os grupos que trabalham na prevenção do tráfico humano.
Diante da atual conjuntura no Brasil e no mundo, com a experiência vivida nesses 15 anos, quais os desafios que se apresentam no caminho da Rede um Grito pela Vida?
Os desafios são muitos e sempre estão aí. Nós como Rede temos esse objetivo de enfrentamento ao tráfico humano, defendendo a vida, especialmente de crianças e jovens, mulheres que são vítimas do tráfico. Essa nossa missão de sensibilizar, de capacitar, de informar, de denunciar, de ir tecendo redes e parcerias nessa luta por justiça e por políticas em prevenção do tráfico humano, os desafios são muitos.
No Brasil é um desafio a grande extensão geográfica, toda a situação governamental do país hoje, a tirada das conquistas das políticas públicas que defendam a mulher e a criança nessas situações. Um outro desafio muito grande é o aumento da vulnerabilidade a partir da pobreza, do desemprego, a infraestrutura muito precária, principalmente das pessoas que moram nas periferias, que são as vítimas mais fáceis para o tráfico humano.
Temos também os desafios dos grandes projetos de desenvolvimento, a possível exploração da Amazônia, onde acaba se tornando um espaço que provoca o tráfico humano, especialmente para a exploração sexual. Essa abertura da possibilidade exploração de garimpo, da questão das grandes fazendas. Toda a questão também dos grandes processos migratórios, trazendo presente a Guerra da Ucrânia, com pessoas de lá que já chegaram no Brasil. São situações e desafios muito grandes que nos envolvem.
Outro grande desafio é que no nosso país, não existe uma casa de acolhida de pessoas que são resgatadas do tráfico humano, que possam ficar um tempo determinado para poder se restabelecer e retomar à vida de outra maneira. A partir desses desafios tem outros em cada Estado, de forma diferente, devido à realidade diferente de cada Estado.
Como Coordenadora Nacional da Rede um Grito pela Vida, qual seria sua mensagem para a Vida Religiosa e para a Igreja do Brasil em vista de tomar uma maior consciência sobre essa problemática e o envolvimento cada vez maior no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de pessoas?
Quando a coordenação pensou um pouco essa data do dia 30 de março, trazendo toda a caminhada que foi feita, nós pensamos um logo e um tema específico para celebrar esses 15 anos, que é “Do Grito da Vida nasce a Esperança”. Exatamente pelo fato de sermos pessoas que precisam ser portadoras de esperança para quem grita pela vida.
Nessa logo, a gente colocou alguns pontos centrais. No desenho aparece o ramo verde, aparece a mão coma palma em forma de coração, aparece os 15 anos e também aparece a logo. Esse coração enraizado, que Deus coloca dentro de nós e nos provoca a uma opção pela promoção da vida, nasce esse ramo do verde como esperança. Das mãos abertas, esse trabalho de profecia na diferente história de cada pessoa, os dedos com cores diferentes, trazendo presente os dons diferentes da história, da vida, das raças, das culturas, e que vão criando raízes de paz, de justiça, de fraternidade.
É uma logo que a gente pensou nesse ramo de esperança do novo que brota para o alto, devido a toda circunstância de desalento que hoje as pessoas sofrem diante de tantas crises que existem, e pela luta, pela sobrevivência que as pessoas estão vivenciando.
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pe. Luis Miguel Modino
Natural da Espanha, é missionário Fidei Donum na Diocese de São Miguel da Cachoeira, Amazonas. É parceiro do Observatório da Evangelização e articulista em diversos periódicos e revistas virtuais católicas.