Perdoar é um ato profundamente humano. Quando conseguimos encontrar um caminho diverso ao da lógica da reciprocidade, foi possível seguir rumos efetivos à construção de uma humanidade em direção à evolução. Mesmo convivendo com a vingança, o perdão passou a ser uma possibilidade civilizatória e ética. Mesmo que tenha vínculos teológicos, perdoar se mostrou um caminho para além de suas origens, com contornos éticos, culturais e densamente humano. Perdoar é um processo, o fim de uma trajetória de memória, de trabalho de luto. Não é fácil, mas é possível. Pressupõe um ato de liberdade!
Perdoar é um processo, o fim de uma trajetória de memória, de trabalho de luto. Não é fácil, mas é possível. Pressupõe um ato de liberdade!
O ser humano se depara, ao longo da sua existência, com diversos possíveis (por vezes, imaginários) determinismos: sociais, biológicos, psíquicos, culturais… Em tempos pós-modernos, cada vez mais nossas ações serão definidas por algoritmos. Alguns apostam mesmo, que o uso de algoritmos na tomada de decisão será cada vez mais comum. Hoje já confiamos a eles a escolha do filme que iremos assistir ou da música que iremos ouvir. Nas próximas décadas, o Big Data e a Inteligência Artificial irão se aperfeiçoar a ponto de tomarem estas decisões por nós, de acordo com as previsões de Yuval Noah Harari (2019):
“Escolher o par romântico a partir de modelos preditivos que mostrem os possíveis cenários ao se envolver com determinada pessoa. Escolher a profissão e a carreira com uma busca no Google, que, a partir dos algoritmos e as informações armazenadas que possui do usuário, analisaria os pontos fortes e fracos do indivíduo e ofereceria uma resposta. Escolher em qual candidato votar em uma eleição.”
A tendência é que, com o passar dos anos, passemos a confiar mais nos algoritmos do que em nossos sentimentos. A maioria das pessoas não conhece bem a si mesma e ainda comete erros na hora de tomar qualquer decisão. Ao contrário da IA, o ser humano sofre com a falta de dados, regras confusas e incertezas da vida cotidiana. Assim delegaremos cada vez mais atividades para os algoritmos, o que pode nos levar a esquecermos como tomar decisões por nós mesmos.
Somente podemos conceber o perdão e suas possibilidades se partirmos de concepções de liberdade. Por isso, em contextos ditatoriais não presenciamos perdão em dimensões políticas, sociais e humanitárias. A lei do “olho por olho, dente por dente” prevalece em ditaduras! O ódio supera a razão e é institucionalizado. No entanto, quando pensamos em democracias, temos que ter como ponto de partido uma razão discursiva, construída de forma dialógica, que nos mostra a construção e a desconstrução de verdades absolutas. Dessa forma, é possível constatar universos de atuação humana complexos, não-lineares. Elementos aleatórios, caóticos e até mesmo horizontes da ordem do não-dito, do inconsciente, são considerados. Ou seja, entende-se, nesse contexto, o ser humano em sua devida complexidade, fugindo de concepções deterministas e simplistas.
O Papa Francisco, no Angelus, nos ensina:
“Pensemos em uma pessoa que nos fez mal. Talvez haja um ressentimento dentro de nós. Então, coloquemos este ressentimento ao lado da imagem de Jesus, manso, durante o seu julgamento. E depois peçamos ao Espírito Santo que aja em nossos corações” (ANGELUS, 20 de fevereiro de 2022).
Francisco insiste na orientação: “oremos pelos nossos inimigos”. “Rezar por aqueles que nos trataram mal é o primeiro passo para transformar o mal em bem. Que a Virgem Maria nos ajude a sermos pacificadores para todos, especialmente para com aqueles que nos são hostis e não gostam de nós”.
A lógica de generosidade que permeia o perdão é um ponto central dos Evangelhos, que se manifesta nas parábolas e nos provérbios de Jesus. No campo ético, o perdão e sua economia do dom, comandados pela lógica da superabundância, do excesso, podem motivar uma nova atuação política e ética em um aspecto universal.
No campo ético, o perdão e sua economia do dom, comandados pela lógica da superabundância, do excesso, podem motivar uma nova atuação política e ética em um aspecto universal.
Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, impedem o avanço das forças da destruição. Decidem não continuar a injetar na sociedade a energia da vingança que, mais cedo ou mais tarde, acaba por cair novamente sobre eles próprios. Com efeito, a vingança nunca sacia verdadeiramente a insatisfação das vítimas. Há crimes tão horrendos e cruéis que, fazer sofrer quem os cometeu, não serve para sentir que se reparou o dano; não bastaria sequer matar o criminoso, nem se poderiam encontrar torturas comparáveis àquilo que pode ter sofrido a vítima. A vingança não resolve nada (Fratelli Tutti, 251).
Jesus ensina aos escribas e fariseus que não é verdade que apenas Deus tem o poder de perdoar. Ele mesmo opera um milagre na tentativa de provar que “O Filho do Homem tem sobre a Terra o poder de perdoar pecados” (Lc 5, 21-42). A formulação de Jesus é radical, uma vez que o Evangelho não afirma que o homem deve perdoar porque Deus perdoa, mas que cada um deve perdoar a partir de sua consciência. Deus perdoa “nossas dívidas, assim como perdoamos nossos devedores”, diz a oração que Jesus nos ensinou (Lc 11, 1-13). Claro, seria impossível perdoar a partir de nossas próprias forças humanas, a partir da nossa lógica. O segredo é a abertura à Graça, à Superabundância. O perdão é da ordem de suas consequências mais belas.
Concluindo com Francisco:
“O que Lhe podemos pedir? O que apraz a Deus oferecer-nos? A força de amar, que não é algo, mas é o Espírito Santo. A força de amar é o Espírito Santo, e com o Espírito de Jesus podemos responder ao mal com o bem, podemos amar quem nos fere. Assim fazem os cristãos. Como é triste quando pessoas e povos orgulhosos por ser cristãos veem os outros como inimigos e pensam em fazer guerra! É muito triste!” (ANGELUS, 20 de fevereiro de 2022).
/*! elementor – v3.5.5 – 03-02-2022 */ .elementor-widget-image{text-align:center}.elementor-widget-image a{display:inline-block}.elementor-widget-image a img[src$=”.svg”]{width:48px}.elementor-widget-image img{vertical-align:middle;display:inline-block}René Dentz
É leigo, professor do departamento de Filosofia e do curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 7 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.