Por que os seminários de hoje precisam mudar

Por 400 anos, portanto, o sistema de seminário proporcionou à Igreja um corpo de homens educados e dedicados, que dirigiam suas igrejas, paróquias, escolas e instituições de bem-estar, e forneceu um modelo para o que todos os meninos católicos poderiam aspirar. Se foi um modelo tão bem-sucedido, por que tentar mudá-lo? Porque o mundo mudou, e o que é bem-sucedido em uma época ou cultura pode se tornar um obstáculo em outra época e lugar… Os padres de ontem foram formados segundo um modelo religioso e patriarcal. Além disso, eles também tinham um forte senso de direito. No mundo secularizado de hoje, entretanto, os problemas estão mais relacionados às ciências sociais e à gestão e tecnologia. Nossa situação social também é mais pluralista e democrática do que antes… O seminário sempre foi uma instituição unissexual, homens formando homens, homens acompanhando homens por anos a fio. Como uma reação à ênfase protestante em um clero casado, a tradição católica enfatizou o celibato vitalício. Infelizmente, logo essa prática se tornou hostil às mulheres e ignorante das necessidades da sexualidade humana.“, escreve o jesuíta indiano Myron J. Pereira, escritor sobre política, religião e cultura.

(Artigo publicado por La Croix International, em 01/10/2021. Tradução: Wagner Fernandes de Azevedo.)

Myron J. Pereira, SJ

Confira o artigo:

Poucos sabem que o seminário, como nós o conhecemos, é uma invenção jesuíta. Por esta razão que em muitos locais os seminários ainda são administrados por jesuítas. Ainda poucos sabem que quando o primeiro seminário surgiu no século XVI, ele foi saudado como uma bem-vinda inovação.

Até o Concílio de Trento (1563), padres recebiam suas “formações” pelo modelo de aprendizes. Um jovem homem, com desejo de ser padre, aprendia a “mecânica” de rezar a missa, um pouco de latim para isso e aconselhamento pastoral com um padre da vizinhança. O candidato permanecia um tempo com o padre mais velho, recebendo instruções. Isso não era muito, mas tampouco se esperava muito. Os padres eram, naquele tempo, celibatários apenas no nome – eles costumavam viver em concubinagem com uma mulher local, um arranjo aceitável por todos.

Como a Reforma nos mudou

Mas então duas coisas aconteceram durante a Reforma que mudou a situação.

Em primeiro lugar, os pregadores luteranos e calvinistas eram vistos como obviamente melhores: eles eram mais hábeis na pregação e na escrita; eles haviam estudado as Escrituras e os primeiros Padres da Igreja em maior profundidade, e ofuscaram o clero católico. Eles também promoveram publicamente o casamento como uma vocação para o clero, em vez do pobre sistema de ‘common law’ (costume comum) praticado pelos católicos.

Os jesuítas – homens como Inácio, Laínez, Canísio e Belarmino – rapidamente perceberam que seu clero não poderia competir com seus pares protestantes a menos que fossem melhor formados. Assim, eles estabeleceram escolas especiais para formar candidatos à ordenação de uma forma gradual e sistemática, tanto intelectual quanto espiritualmente. O seminário [“sementeira”] nasceu.

Inovações jesuítas

Duas inovações jesuítas já usaram a nova tecnologia de imprensa – o catecismo e o livro didático. O catecismo, popularizado por Canísio e Belarmino, apresentava “perguntas frequentes” combinadas com respostas simples e inteligíveis. Foi tão bem-sucedido que rapidamente se tornou um grampo católico, e foi usado desde onde quer que a fé fosse pregada.

O livro didático era o equivalente intelectual do catecismo – ‘capítulos’ especialmente preparados sobre um tópico, graduados para dar uma ideia de um novo assunto e impressos e encadernados para fácil referência. Mudou toda a forma de aprender, dando origem à Escola dos Jesuítas.

Uma terceira inovação, que também se espalhou como fogo nas mãos de pregadores engenhosos, foi a prática dos Exercícios Espirituais, com sua insistência na confissão e comunhão frequentes e no exame diário. Tornou-se parte integrante da formação dos jovens como futuros padres.

Na Igreja pós-tridentina, essas novas escolas de formação se espalharam rapidamente em todas as dioceses, não apenas na Europa, mas também nos países de missão. Francisco Xavier fundou uma em Goa, na Índia, o colégio de São Paulo, logo que desembarcou na região em 1542.

Por 400 anos, portanto, o sistema de seminário proporcionou à Igreja um corpo de homens educados e dedicados, que dirigiam suas igrejas, paróquias, escolas e instituições de bem-estar, e forneceu um modelo para o que todos os meninos católicos poderiam aspirar.

Por que precisamos mudar

Se foi um modelo tão bem-sucedido, por que tentar mudá-lo? Porque o mundo mudou, e o que é bem-sucedido em uma época ou cultura pode se tornar um obstáculo em outra época e lugar. A Reforma disse à Igreja que seus líderes deveriam ser bem educados. É por isso que a formação no seminário teve um enfoque intelectual, especialmente filosofia e teologia.

Os padres de ontem foram formados segundo um modelo religioso e patriarcal. Além disso, eles também tinham um forte senso de direito. No mundo secularizado de hoje, entretanto, os problemas estão mais relacionados às ciências sociais e à gestão e tecnologia. Nossa situação social também é mais pluralista e democrática do que antes. Não é de se admirar que muitos padres se sintam perdidos no relacionamento com o público em geral. A formação oferecida é muito abstrata, unilateral.

Problemas de maturidade emocional

Mas ainda existem questões mais sérias. O seminário sempre foi uma instituição unissexual, homens formando homens, homens acompanhando homens por anos a fio. Como uma reação à ênfase protestante em um clero casado, a tradição católica enfatizou o celibato vitalício. Infelizmente, logo essa prática se tornou hostil às mulheres e ignorante das necessidades da sexualidade humana.

Nos últimos anos, ficamos chocados com os predadores sexuais entre o clero e, em particular, com o ataques de pedofilia. Pois, a ênfase apenas nas habilidades intelectuais, e isso também em uma atmosfera segregada, contribuiu muito para a privação emocional de muitos padres.

Muitos são pobres no relacionamento, agressivos no comportamento e ambiciosos nas aspirações – uma atitude que conhecemos agora como “clericalismo”. O papa Francisco denunciou o clericalismo como um câncer entre o clero. Para destruí-lo, o seminário atual deve ser encerrado.

Quais são as alternativas?

Nós podemos nos guiar por como Jesus formou seus discípulos, como descrito nos Evangelhos. Ele formou seus discípulos no meio do povo, não nos mantendo à parte. Uma ou duas coisas merecem nossa atenção.

Quando ele chama alguém à missão, Jesus demanda que o discípulo desista de tudo vinculado à família e à propriedade. Quão crucial é isso em uma cultura que se apega à família e à casta a cada passo, e é tão relutante em desistir das vantagens do cargo, status e benefícios? Então, como mentor, Jesus interage com seus discípulos e esclarece suas dificuldades, ao mesmo tempo em que os incentiva a participar de seu ministério de ensino e cura. O ensino de um mentor é baseado em experiências, compartilhadas e refletidas.

O que levanta um ponto importante. A Igreja dos últimos dois milênios se destacou por sua misoginia, seu ódio e desconfiança pelas mulheres. E, no entanto, sabemos que a maturidade psicossocial só pode ser alcançada pela harmonia intersexual. Pois é verdade que, para muitos, as mulheres podem ser excelentes mentoras. Que isso possa significar ter um sacerdócio de casados no futuro, e também mulheres sacerdotes, e a renúncia do celibato obrigatório é provavelmente parte do quadro.

Infelizmente, a feroz oposição a essas mudanças por parte de ambos, clero e hierarquia, mostra quão pouca abertura existe para um tipo diferente de sacerdócio.

Para se tornar a mudança que queremos ver

Cada grande mudança acaba por desmantelar a sociedade da qual provém. Aqui estão alguns exemplos contemporâneos: casamentos entre castas e inter-raciais, impensáveis alguns anos atrás, estão aumentando; as taxas de fertilidade das mulheres estão caindo vertiginosamente em quase todos os países; a migração em massa destruiu a homogeneidade de muitas sociedades.

Mas o desconhecido é sempre ameaçador, e vemos isso no mundo hoje. Como reagiremos se os líderes da comunidade – pastores, profetas – forem casados, ou mulheres, ou dalit, ou tribais? – nós que sempre estivemos acostumados com um estrangeiro celibatário? Como reagiremos ao discernimento comunitário e à cooperação inter-religiosa? – nós que sempre obedecemos impensadamente aos nossos superiores, sejam esses bispos ou um papa distante em Roma?

Portanto, o colapso dos seminários e o surgimento de pequenas comunidades diversas, a “sementeira” de nossos futuros padres, mudará a Igreja como a conhecemos, pois é uma Igreja diferente em um mundo diferente. Mas começa com um tipo diferente de padre em nossas paróquias.

Fonte:

IHU