“Escuta, Israel!” (Dt 6,4)
“A fé vem pelo ouvir, e o ouvir, pela palavra de Cristo” (Rm 10,17)
Geraldo De Mori SJ
Embora os sentidos sejam as portas e as janelas de acesso ao mundo, nem todas as culturas lhes conferem o mesmo significado. A tradição filosófica grega, por exemplo, uma das fontes do mundo ocidental, confere a primazia, sobretudo, ao olhar. É o caso de Platão, um dos maiores expoentes da filosofia antiga, para o qual é pela contemplação, exercida principalmente pelo olhar, que se chega ao “mundo das ideias”, fonte da beleza, da bondade e da verdade do ser. Tudo o que os demais sentidos captam pertence ao mundo das “sombras”, privado de qualquer significado relevante. Essa perspectiva marcou a tradição espiritual do cristianismo, que em alguns de seus itinerários místicos é atraída pela contemplação, e a teologia cristã, que em suas formulações sistemáticas vê na “visão beatífica” a plenitude da realização do ser humano.
O mundo judaico, apesar de não desvalorizar o olhar, como se percebe no poema da criação de Gn 1,1-2,4a, no qual Deus “vê” as diversas obras e as qualifica como “belas” ou “boas”, confere a primazia do acesso ao mundo à escuta. De fato, a saga do Egito começa com uma contemplação e uma audição do próprio Deus. Segundo Ex 3,7, Deus viu “a humilhação” de seu povo no Egito e ouviu “seu clamor”, ou, ainda no mesmo capítulo, “o clamor dos israelitas” chegou até ele, que viu a “opressão que os egípcios” faziam pesar sobre eles (Ex 3,9). O conhecimento dado pela visão e pela audição faz com que Deus “desça” para livrar seu povo das mãos do opressor (Ex 3,8), enviando para isso Moisés, através do qual ele irá conduzir os hebreus para a terra da promessa (Ex 3,10).
A capacidade de escuta, que suscita o movimento da “descida” divina, se torna injunção à escuta num dos “Credos” do povo da aliança, o que se encontra em Dt 6. É interessante notar que o “objeto” da escuta diz respeito inicialmente a duas afirmações sobre Deus: “o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um” (Dt 6,4). Por um lado, a escuta diz que o Senhor “é” o Deus de Israel, e por outro, afirma que ele é “um”. Em seguida, vem o apelo a amá-lo, de todo o coração, de toda alma e com toda a força (Dt 6,5), guardando no coração suas palavras (Dt 6,6), ensinando-as aos filhos e tendo-as diante de si todo o dia, tomando-as como sinal e colocando-as nos umbrais das portas e portões (Dt 6,7-9).
O papel desempenhado pela escuta no seio do povo eleito explica, em grande parte, a interdição de criar imagens, que eram acessíveis aos olhos e passíveis de se tornarem “ídolos”, mas que exigiam “sacrifícios” e tornavam os que deles participavam insensíveis às injustiças. O próprio nome de Deus era impronunciável e o conjunto da fé judaica tem a convicção de que ver a Deus significava morrer. Nesse sentido, apesar de algumas “teofanias” explorarem a visão, como a de Is 6,1.5, elas são indissociáveis de uma palavra dirigida por Deus a quem ele chamava para uma missão: “ouvi então a voz do Senhor” (Is 6,8). O conjunto da ação profética em Israel se desenvolve ao redor de uma palavra escutada, que se tornava palavra pronunciada. Em geral, tratava-se de um apelo à conversão, feito muitas vezes com ameaças, uma vez que Israel tinha se desviado da Lei, deixando-se seduzir pelos ídolos e ignorando os apelos éticos da Torah.
O cristianismo herdou do judaísmo essa primazia da escuta, não só porque Jesus se fez arauto do anúncio da proximidade de um Reino em advento, convocando à conversão, mas também porque, após sua morte e ressurreição, o coração da pregação cristã se resumiu no anúncio de que no mistério pascal Deus havia dito sua palavra definitiva à humanidade, convidando-a a deixar-se reconciliar por Deus em seu Filho (2Cor 5,19-20). O apóstolo Paulo, em Rm 10,17, reitera a convicção central do judaísmo de que a fé vem pelo ouvir, e o conteúdo do ouvir não é mais os preceitos da Torah, por mais santos que sejam, mas a vida, os ensinamentos, a morte e a ressurreição de Cristo. A escuta desse anúncio deve suscitar no coração o apelo à fé, traduzindo-se em uma vida que doravante buscará estar à escuta do que diz a existência de Jesus Cristo para o fiel quando se encontra diante de situações parecidas com as que encontrou o Mestre.
Alguns pensadores contrapõem o “mundo segundo o olhar” ao “mundo segundo o escutar”. Segundo eles, a visão, que está na origem da filosofia grega e perpassa toda a racionalidade científica do mundo ocidental, é determinada pelo cosmos e tende a “objetivar” e manipular tudo o que é passível de apreensão do olhar. Essa racionalidade está na origem da dominação do mundo pela técnica, que levanta tantas questões nas últimas décadas, sobretudo por causa das ameaças que a objetivação e a exploração representam para o futuro da vida no planeta. Por sua vez, a escuta, que é central no mundo bíblico, mais que pelo cosmos, está fundada nas relações, que estão na origem da ética e da fé. Não por acaso o resumo da Torah, que são os “dez mandamentos”, apela ao amor a Deus, seguido das interdições de nomeá-lo, e em seguida, de todas as injunções relacionadas ao respeito aos demais humanos, sobretudo os mais vulneráveis.
A contraposição entre o mundo como cosmos e o mundo como relação é interessante, embora deva ser matizada, uma vez que todos os sentidos participam da apreensão do real. As diferenças podem, contudo, ajudar a perceber o que mais conta no acesso de cada pessoa ao mundo e que define sua percepção da própria experiência religiosa e espiritual. De fato, muitos fiéis buscam na religião o maravilhoso, o milagroso, que provoca “temor e tremor”, segundo a clássica definição do sagrado de Rudolf Otto. Contudo, esse tipo de relação com o transcendente não muda necessariamente a existência de quem o experimenta e promove, pois muitas vezes é definido pelo desejo de manipulação, que transforma Deus em ídolo ou busca convencê-lo dos próprios méritos. Diferente é a experiência de relação com Deus segundo a revelação bíblica, para a qual, mais que sagrado, Deus é santo e chama à santidade. Esta, diferente da sacralidade, supõe relação, que por sua vez, demanda a escuta, a capacidade de deixar-se afetar pela alteridade, seja a do ser humano, qualquer que seja a sua condição, seja a de Deus, que ama e convida a amá-lo. Essa dupla dinâmica deve “mover as entranhas”, levando à compaixão, ao cuidado e à defesa do outro em situação de vulnerabilidade, ou ao agradecimento e ao louvor, entendendo-se fruto de um dom gratuito e imerecido.
Sobre o autor:
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE
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