“O papa Francisco, a Igreja e alguns desafios da evangelização hoje”, com a palavra Reginaldo Martins da Silva

O texto a seguir foi elaborado pelo aluno Reginaldo Martins da Silva para o seminário promovido pela disciplina Pedagogia Dialógica Participativa, Corresponsabilidade e Ação Pastoral, ministrada pelo prof. dr. Edward Guimarães no curso de pós-gradução em Teologia Pastoral da PUC Minas.

Confira:

O papa Francisco, a Igreja e alguns desafios da evangelização hoje

INTRODUÇÃO

A experiência sinodal, o desafio de caminharmos juntos, faz parte da autocompreensão da Igreja de Cristo. Enquanto prática pode-se dizer que ela esteve presente na caminhada da Igreja, de modo especial, em seus primórdios. Podemos dizer também que a sinodalidade continuou e continua a acontecer em muitas dinâmicas eclesiais, na caminhadas de muitas comunidades, paróquias, dioceses, congregações religiosas, pastorais, grupos e movimentos… Embora não de maneira hegemônica, mas minoritária. Desde do século IV, o que predominou na história do Cristianismo foi uma compreensão hierárquica e, quase sempre, clerical. Foi no Concílio Vaticano II, com seu impulso de volta às fontes, que se afirmou uma eclesiologia Povo de Deus que caminha junto. A sinodalidade, o caminhar juntos, é o que nos faz celebrar a capacidade de avaliar, ponderar e atualizar o mandato de Jesus: Ide e fazei discípulos meus em todos os povos (Mt 28,19a) com um discernimento espiritual, comunitário e apostólico.

A sinodalidade no contexto eclesial atual vem ganhando muita força com o pontificado do papa Francisco. Segundo Dianich, “o papa argentino desenvolve um magistério em movimento centrado no Evangelho e na evangelização, com forte acento querigmático. A sinodalidade na vida da Igreja vai sendo percebida como decisiva para a realização de sua missão e designa um jeito de caminhar participativo e corresponsável em todos os níveis.

Segundo a afirmação do papa Francisco, na comemoração pelos 50 anos da instituição do Sínodo dos bispos, “o caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”. Ele nos aponta que a sinodalidade não é somente um modo de operar a vida da Igreja, trata-se de uma dimensão constitutiva da Igreja, por isso se apresenta como caminho da Igreja para o terceiro milênio.

Diante de um tema tão caro, como a sinodalidade pode contribuir com a Igreja para que ela seja mais próxima a vida cotidiana das pessoas? E como estabelecer um diálogo cheio de sentido para um possível viver e caminhar juntos? E como integrar na evangelização a realidade digital que cada vez mais entra na dinâmica da vida da gente?

DESENVOLVIMENTO

Não existe um resposta definitiva para essas questões, mas o papa Francisco vem nos convidando em seu pontificado a fazermos a experiência de um Deus amoroso e misericordioso e que provoca em nós alegria e um espírito missionário para irradiar a boa notícia do amor de Deus por nós. Jesus, sendo a plenitude de toda a revelação de Deus, demonstra em sua pessoa o máximo do amor divino. Sua morte expressa seu ato de compaixão por toda a humanidade, uma entrega de si em amor ao outro. Deste modo, provoca em nós essa saída de nós mesmos, porque Deus é saída de si.

A eclesiologia criativa do papa Francisco

O papa Francisco fala, então, do desafio de concretizarmos uma “Igreja em saída”. Com essa metáfora “Igreja em saída”, o Papa convida toda Igreja a viver um despojamento, sobretudo no que toca à questão da autorreferencialidade, revestindo-nos do serviço, assumindo a Cruz de Cristo por meio daqueles que mais sofrem e se encontram nas diversas situações de periferias. Uma Igreja pobre e para os pobres, essa é a Igreja que o papa quer apresentar para o mundo, uma Igreja transbordante de misericórdia.

Em seu pontificado, traz para o centro a questão dos pobres que são os destinatários preferenciais da vida de Jesus.

Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! – Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa no emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem força, sem luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem horizonte e sentido de vida.[1]

Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n. 49

Francisco quer dar um enfoque para uma Igreja aberta ao novo, capaz de transformar as realidades e resgatar a esperança por meio do encontro com o outro. Diante disso, urge a Igreja para que faça do ser humano o seu caminho, devolvendo-lhe sua dignidade. Uma Igreja samaritana, companheira de caminho de toda a humanidade, especialmente dos que mais sofrem. Uma igreja cuidadora, que promove e defende a vida em todas as suas fases e o planeta como sua casa comum.

Deste modo, nossa missão enquanto Igreja é exercer um serviço pastoral onde teremos a possibilidade de mediar este processo de conversão de mentalidade nas pessoas e nos grupos eclesiais e instaurar um processo metodológico de acompanhar-discernir-integrar. Ou seja, ser capaz de gerar no outro, um Outro, uma nova vida. Não podemos esquecer que a obra é de Deus. Ele “primereia” (toma a iniciativa). A nós compete favorecer a dinâmica pascal revelada na Eucaristia. Gerar outro é se dar, partindo-se. Isso forma uma nova comunhão. Ele espera que sejamos capazes de nos doar gratuitamente como Ele. Afinal, Deus não pede nada mais do que Ele já tenha dado.

O teólogo Cesar Kusma, ao falar sobre as Provocações eclesiológicas do papa Francisco a partir da Evangelli Gaudium, diz:

A Igreja “em saída” também será uma Igreja mãe de portas abertas (EG 46). Uma casa paterna/materna, ao modo da casa do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32), que está aberta para acolher a todos e, na abertura, coloca-se em sinal de espera, de atenção a tudo o que circunda o seu existir. Não se trata de uma espera passiva, mas ativa, inquieta, que se antecipa ao encontro e vai em direção dos que mais precisam e estão fadigados pelo cansaço da vida (cf. Mt 11,28). É a igreja mãe que sai e se dispõe a enxugar as lágrimas, a curar as feridas, a dar consolo e abrigo, fazendo de sua casa a casa de todos. A Igreja entendida como mãe não ajudará aqueles que dela se aproximam, pois não é a este fim que ela foi enviada, mas para acolher no mesmo amor que a impulsiona, que regenera e que faz novas todas as coisas (cf. Ap 21,5). A Igreja não é uma alfândega, mas a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigosa (EG47).[2] 

KUSMA, 2014, p. 199.

O ambiente digital como espaço da evangelização

Falar do ambiente digital diante da realidade apresentada refere-se de modo concreto à ação da Igreja em continuidade com a missão de Jesus. A cultura digital se apresenta como parte integrante e imprescindível a ser considerada e refletida como contexto e nova ambiência, na transmissão da fé, na sociedade pós-moderna.

Assim, falar de cultura digital implica acompanhar a evolução não somente das teorias de comunicação, o aspecto tecnológico, mas dos paradigmas pelos quais passa o processo de comunicação até chegar o momento atual, este que se vive hoje, chamado de cultura digital. Isso significa não somente conhecer e compreender o momento atual, mas a exigência de um olhar que percebe a necessidade de uma mudança de mentalidade nos processos comunicativos, isto é, que toca profundamente o desenvolver, o atuar do binômio comunicação/evangelização.

Uma das características deste ambiente digital é a ideia de síntese, como processo de um único elemento; as tecnologias e linguagens convergindo para o ambiente digital. A ideia da digitalização de tudo, processos práticos que têm ganhado espaço em nosso meio. Informação disponível por toda parte, difícil de proteger e impossível de controlar.

Segundo aspecto é a ideia da conectividade. A forma de contato se torna cada vez mais simples e mais rápida. Aqui há uma mudança na relação com o conhecimento e com o outro. Nos processos de comunicação atuais não há mais controle; quem define são as redes, ou seja, todos aqueles que acessam essa rede. Com muitas pessoas conectadas, o processo do conhecimento se torna cada vez mais fortalecido. Veja, por exemplo, a Wikipédia.

Outro conceito, o de ubiquidade, é aquele em que se está em toda parte ao mesmo tempo, ou seja, um novo conceito de mobilidade. Nós nos tornamos seres que estão em toda parte e em qualquer momento. Os processos de comunicação são móveis. A dicotomia online e off-line cai em desuso, pois estamos numa vida conectada, sobretudo as nossas relações eclesiais, diante da instantaneidade, simultaneidade e efemeridade. As informações que nos cercam não são suficientes, precisamos estar logado para sermos renovados a todo instante.

A ideia de autonomia para as pessoas torna a pessoa empoderada em produzir conteúdo. A isso chamamos de autocomunicação de massa. Os processos de participação são revistos, pois o sujeito é ativo, quer colocar a mão na massa. Uma geração que exige o fazer, sobretudo na linguagem digital.

No contexto religioso, ao falarmos dessa cultura digital, o conceito de enculturação digital também se faz presente neste ambiente. Papa Francisco cita, na Evangelli Gaudium, que

[…] pela inculturação, a Igreja introduz os povos com suas culturas na própria comunidade, porque cada cultura oferece formas de valores que podem enriquecer o modo como o Evangelho é empregado, compreendido e vivido”. 

Essa nova leitura introduzida ao contexto do evangelho nos ajuda bastante a pensar a realidade juvenil, fazendo-nos aprender muitas coisas com essa nova forma de cultura que, ao invés de empobrecer, acaba enriquecendo cada vez mais no campo da evangelização. Aqui evidenciamos os jovens, pois eles são os nativos digitais, eles já estão imersos nesta cultura e nesta mentalidade e muito contribuem com a Igreja para sua ação no mundo. É preciso aprender as formas, os valores, os métodos e as dinâmicas que estão para além das tecnologias, que já estão presentes no modo de ser pessoa, de se relacionar e de construir relação.

O papa Francisco, utilizando esta metáfora – Igreja em saída –, escreveu uma mensagem para o Dia Mundial das Comunicações em 2014, dizendo o seguinte:

Entre uma Igreja acidentada que sai pela estrada e uma Igreja doente de autorreferencialidade, não hesito em preferir a primeira […]. Entre estas estradas estão também as digitais, congestionadas de humanidade, muitas vezes feridas.

Aqui ele nos faz refletir, enquanto prática pastoral, pois os ambientes digitais são reais e lá existem pessoas. Isso é interessante para revermos os nossos investimentos neste ambiente digital e os desafios que isso também traz para a Igreja. A Igreja também nestes ambientes é chamada a ser presença e traduzir sua Tradição e sua doutrina numa linguagem digital.

Na perspectiva eclesial, o papa Francisco trouxe um apelo renovado à santidade como proposta radical de vida na Exortação Apostólica Gaudete et Exultate, sobre o chamado à santidade no mundo atual. Aparentemente talvez não façamos relação alguma, mas está estritamente relacionado com a temática da comunicação. Ele vai dizer: “Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia”. Nos documentos dos jovens ele vai apresentar a mesma preocupação: “[…] formas de controles que são tão evasivas criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático […]” .

O Pontífice ainda enfatiza na sua última encíclica Fratelli Tutti que “[…] há interesses econômicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão sutis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático”.  Deste modo, ao analisarmos a inserção e a nossa participação neste ambiente virtual que a Internet apresenta, algumas implicações são necessárias levar em consideração para um maior entendimento desta realidade: primeiro existe uma capacidade em se constituir como espaço efetivo de diversas participações; segundo, entender que as redes sociais se constituem atualmente um campo aberto de divulgação de informação e organizações civis, políticas e religiosas.

O desafio é criar um estilo digital cristão. O papa Bento XVI traduziu isso dizendo que “[…] existe um estilo cristão de presença também no mundo digital: traduz-se numa forma de comunicação honesta e aberta, responsável e respeitadora do outro.”  O papa Francisco vai insistir na ideia de testemunho quando, em 2014, no twitter, ele vai dizer: “[…] que quer dizer evangelizar? Testemunhar com alegria e simplicidade o que somos e aquilo que acreditamos” , e ressalta ainda que “[…] o testemunho cristão não se faz com o bombardeio de mensagens religiosas, mas com a vontade de se doar ao outros através da disponibilidade para se deixar envolver, pacientemente e com respeito, nas suas questões e nas suas dúvidas.” 

Com isso, a escuta ativa nos desafia como Igreja, e é um ambiente riquíssimo para conhecer as pessoas, as realidades e o mundo em que estamos dispostos a evangelizar. É preciso entender que o mundo digital tem muito a contribuir no processo evangelizador de nossos grupos e comunidades. Deste modo, “[…] o pregador (comunicador) deve também pôr-se à escuta do povo para descobrir aquilo que os fiéis precisam ouvir. Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo […]. Nunca se deve responder a pergunta que ninguém se põe.” (EG 154-155).

CONCLUSÃO

Falar de uma Igreja em saída é colocar-se em direção do outro, para que nós, saindo da autorreferencialidade, possamos ir nas diversas periferias, para que o verdadeiro encontro aconteça. Se o coração não arde ao falar da missão, alguma coisa está errada. A ação pastoral deveria ser uma prioridade em nossas Igrejas particulares, na qual o discernimento se torne um estilo de “Igreja em saída”. Trata-se de uma Igreja que não se acomoda com suas estruturas, mas que se faz peregrina no seguimento de Jesus e que vai ao encontro dos que mais necessitam de sua solidariedade.

O que se evidencia, para mim, é a necessidade de fazermos uma evangelização às avessas. Aquela que primeiro escuta e sente a cultura, os processos sociais, que olha a realidade em seus vários aspectos e procura discernir os sinais dos tempos. E ao perceber que, estamos mergulhados neste ambiente digital e que nossas respostas aos questionamentos podem ser mais criativas e fecundas, não teme envolver e aprender com os jovens para melhor utilizamos a ferramenta das mídias digitais e renovar o campo da evangelização.

A grande novidade do pontificado do papa Francisco, segundo José Maria Castillo, “[…] é ser um papa mais humano, aquele que resgata o sentido dos primeiros seguidores de Cristo, na medida que ele é mais humano, esta mesma medida nos revela a Deus mais claramente”.[3] Ao olharmos a pessoa de Jesus como Deus encarnado ou um Deus humano, percebemos a sua compaixão por aqueles que são oprimidos, excluídos, empobrecidos, sem vez e sem voz. Por inúmeras vezes, Jesus nos Evangelhos assume a postura de estar junto. Deste modo, o papa Francisco também se compadece, sentindo com os mais necessitados as suas dores. Isso é o que revela o humanismo de nosso papa, essa capacidade de reproduzir em sua vida os mesmos sentimentos de Cristo pela humanidade.

Notas

[1]   Francisco, 2013, n. 49.

[2]   Kuzma, Cezar. Cantar com Francisco! Provocações eclesiológicas a partir da Evangelli Gaudium. In: Amado, Joel Portela; Fernandes, Leonardo Agostini (org.). Evangelii Gaudium em questão: aspectos bíblicos, teológicos e pastorais. São Paulo: Paulinas: PUC-Rio, 2014. p. 199.

[3]  SÁNCHEZ, José Maria Castillo. O humanismo de Francisco revela a essência do ser cristão. 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/579130-o-humanismo-de-francisco-revela-a-essencia-do-ser-cristao-entrevista-especial-com-jose-maria-castillo. Acesso em: 7 out. 2020.

Referências

PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium – A alegria do evangelho: Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus; Loyola, 2013.

KUZMA, Cesar. Cantar com Francisco! Provocações eclesiológicas a partir da Evangelii Gaudium. In: AMADO, Joel Portela; FERNANDES, Leonardo Agostini. Evangelii Gaudium em questão: Aspectos bíblicos, teológicos e pastorais. São Paulo: Paulinas/PUC-Rio, 2014, p. 195-208.

SÁNCHEZ, José Maria Castillo. O humanismo de Francisco revela a essência do ser cristão. 2018. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/579130-o-humanismo-de-francisco-revela-a-essencia-do-ser-cristao-entrevista-especial-com-jose-maria-castillo>. Acesso em: 7 out. 2020.