A corresponsabilidade esperada dos batizados nos lança à reflexão sobre a sinodalidade!
A sinodalidade é, antes de tudo, uma mentalidade eclesial de quem acolheu a igual dignidade batismal dos cristãos e que, por causa disso, deseja “caminhar juntos”. A mentalidade sinodal desperta e provoca a busca e concretização criativa de uma prática cada vez mais democrática, corresponsável e participativa na vida da Igreja. Pode haver uma sinodalidade restrita, por exemplo, compartilhada somente entre os bispos. Mas também pode haver uma sinodalidade ampla, envolvendo todos os cristãos batizados. Nesta, homens e mulheres que pelo batismo enraizaram suas vidas em Jesus Cristo, atraídos e irmanados pelo projeto amoroso salvífico de Deus Pai, com a força do Espírito Santo, assumem, como projeto de vida, o desafio de concretizar a vida nova pautada no Evangelho da fraternidade universal, da partilha, da justiça e da misericórdia.
Ao pensar sobre a questão inscrita no título deste texto, ocorreu-me a imagem da mulher em dores de parto. No entanto, o uso estilizado desta imagem, com a consequente alegria do nascimento e do prazer de aconchegar a criança nos braços, não diz tudo. Isso porque não evoca nem as condições do longo processo de gestação que o precede, nem o acompanhamento da criança no lento dinamismo histórico de crescimento e conquista paulatina da autonomia e responsabilidade.
Nesse sentido, para melhor compreendermos o atual momento eclesial e o importante projeto de “reforma da Igreja” em curso – há oito anos sendo encetado pelo papa Francisco –, temos que ter presente o momento anterior e os grandes desafios que virão.
Sobre o momento anterior, primeiramente, recordo a profunda crise eclesial agravada a partir das duas Grandes Guerras, advinda do esgotamento do “modelo de cristandade”, que funcionou hegemonicamente na Igreja ao longo dos séculos IV ao XIX. Em segundo lugar, o processo histórico do paulatino surgimento do “sujeito social moderno” na Igreja, com o advento de diversos movimentos de renovação – bíblico, litúrgico, ecumênico, missionário, leigo, teológico, social – que precederam a convocação do Concílio Vaticano II, pelo papa João XXIII, nos inícios dos anos 1960. Em terceiro lugar, o próprio evento do Concílio que impulsionou uma revolução decisiva na autocompreensão da Igreja, no dinamismo de seu agir no mundo e na relação com as outras igrejas cristãs e tradições religiosas. Em quarto lugar, importa ter presente a recepção criativa e corajosa do concílio em nosso continente, recepção consignada de forma simbólica na 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Medellín, no ano de 1968. Este evento eclesial é considerando por muitos o Pentecostes da Igreja dos pobres e com rosto latino-americano. Por fim, não pode ser olvidado, o longo inverno vivido na Igreja, caracterizado por Libanio como um esforço de “volta à grande disciplina” tridentina, após a primavera do Vaticano II.
Se hoje, a partir do fecundo magistério do papa Francisco, fala-se da busca de “uma Igreja pobre e para os pobres”, de uma “Igreja em saída”, de uma “ação evangelizadora não autorreferencial”, de uma “Igreja hospital de campanha”, de uma “Igreja Casa da misericórdia e não de uma alfândega de juízes controladores e dificultadores da graça”, de uma “Igreja toda missionária, servidora e ministerial”, de uma “Amazonização da Igreja”, de uma “Igreja não clerical, mas Povo de Deus a caminho”, de uma “Igreja profundamente sinodal”, dentre outras expressões, é porque, ainda que seja com forte resistência interna e constantes embates provocados por grupos católicos ultraconservadores e com fortes tendências tradicionalistas, há uma recuperação do espírito do Concílio de forma atenta às urgências e desafios do contexto atual.
De fato, o papa Francisco tem impulsionado processos eclesiais significativos que sinalizam e estão a gerar avanços na concretização de uma urgente e necessária reforma na Igreja Católica. Entre estes processos podemos aqui mencionar alguns:
- A criação do conselho de cardeais para auxiliá-lo no projeto de reforma da Cúria Romana, já no primeiro ano de seu magistério, e de muitos outros conselhos eclesiais;
- A recuperação do papel e uma mudança significativa na dinâmica interna dos sínodos – da família, da juventude, para a Amazônia e, agora, da sinodalidade – de forma a reconhecer maior autonomia e autoridade, tanto nos processos de escuta e de participação quanto na de seus documentos de trabalho e de conclusão;
- A recuperação da compreensão da Igreja como comunhão sinodal, “Igreja de Igrejas”, com reconhecimento da autoridade e da autonomia das Igrejas locais com suas conferências episcopais;
- O impulso que deu à Igreja da Amazônia: a criação da Repam, a convocação e realização do Sínodo para a Amazônia, a publicação da exortação Querida Amazônia, pela qual reconheceu o Documento de Trabalho resultante da grande escuta e a criação da Conferência Eclesial da Amazônia e não de mais uma Conferência Episcopal. Um verdadeiro laboratório ou fermento de novas práticas eclesiais;
- As suas encíclicas Laudato si’ e Fratelli tutti, bem como projetos como Economia da Francisco, Pacto Global pela Educação etc. inovaram na linguagem, na abordagem das temáticas e recuperaram certo protagonismo eclesial, com responsabilidade ético humanista, nas grandes discussões candentes da humanidade;
- O lançamento de uma Assembleia Eclesial Latino-americana e caribenha, com amplo processo de escuta;
- Uma crítica contundente, de forma recorrente e aberta, contra o clericalismo, acompanhada da nomeação estratégica de leigos e leigas para cargos de decisão na cúria e da convocação de um sínodo especial sobre a sinodalidade na Igreja.
Tudo isso sinaliza, de fato, a emergência e o vigor da chegada de um tempo novo no dinamismo eclesial católico contemporâneo? Tudo dependerá do pós-parto, de como cuidaremos da criança que está para nascer. Ou seja, qual será o nosso grau de abertura ao Espírito Santo, ao discernimento dos sinais do tempo e à vontade divina? Que grau de coragem teremos para assumir os processos de conversão pastoral e de fazer uma reforma das estruturas e práticas da Igreja? Qual será a adesão dos cristãos ao novo que nasce? Confesso, sinceramente, que não sei se, para este caso, a afirmação de que “o novo sempre vem” se confirmará, mas, como cristão e teólogo, desejo ardentemente que assim seja.
Sobre o autor
Edward Guimarães é teólogo leigo. Doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. Assessor no Regional Leste 2 da CNBB, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da catequese, do ecumenismo e diálogo inter-religioso, pastorais sociais e movimentos populares. Membro da Comunidade Bremen, do grupo Emaús, da atual diretoria da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER.
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