A fé que salva e a relação que liberta

Neste XIII Domingo comum do ano B, o evangelho (Mc 5, 21-43) traz o relato de duas curas que Jesus faz na Galileia. Ele tinha atravessado o lago para a região estrangeira de Gérasa, mas criou problemas para os criadores de porcos e estes o expulsaram dali. Então, Jesus voltou para a Galileia que fica na beira do mar e cura duas pessoas.  

Marcos mostra o contraste entre a proposta de Jesus e a religião ritual, na Galileia representada pela sinagoga. É irônico que o evangelho use o verbo sinagogar para dizer que a multidão se reúne em torno de Jesus e não na religião dos rabinos. No evangelho, o mar sempre representa os desafios do mundo desconhecido. Mas, é ali que a multidão se reúne e Jesus trata de dois casos de pessoas com risco de morte: uma menina de doze anos e uma mulher que também, havia doze anos, sofria de sangramento.

Para a sociedade judaica da época, Jairo era uma pessoa socialmente importante. Foi presidente da sinagoga; símbolo dos judeus que buscam a Jesus. Jairo faz o oposto do que os gerasenos haviam feito. Esses pediram a Jesus para ir se embora, afastar-se deles. Ao contrário, Jairo pede a Jesus para ir à sua casa e curar sua filha doente. E Jesus vai.

No entanto, no meio daquela ida, o evangelho deixa de lado o homem, (judeu ilustre, chefe da sinagoga) e centra sua atenção sobre uma mulher anônima, pobre e considerada impura e pecadora. Marcos dá mais importância à mulher. Coloca-a no centro da cena. Mostra que, para Jesus, a prioridade é curar as pessoas marginalizadas. 

Faith, Pintura de Yongsung Kim

Conforme a lei judaica, uma mulher que sofre perda de sangue é considerada impura. Vive como pecadora (Lv 15, 19-30). Por sofrer perda de sangue, sabe que, se tocasse em Jesus, o deixaria impuro perante a lei e proibido de frequentar o templo e a sinagoga. Ela sabe que não deve tocá-lo. Mas pensa “ao menos na franja da sua roupa”. Toma coragem e o toca furtivamente, de forma clandestina. Jesus sente sair de si uma força e quer saber quem foi. Os discípulos protestam, mas ele chama a mulher para o centro da cena e fala com ela. Ele ia curar a filha do chefe da sinagoga. Mas, a aquela mulher anônima, ele chama de “filha”. E diz: “A tua fé te salvou”. 

Conforme os evangelhos, Jesus só disse essa palavra a mulheres como essa. Disse também à mulher estrangeira (cananeia), da qual ele cura a filha. E, conforme Lucas, ao leproso curado que era samaritano, isso é, de outra tradição religiosa. O evangelho salienta que a cura se dá pela força da fé da mulher e não pelo poder de Jesus. No entanto, foi a palavra de Jesus e o acolhimento dele ao chamá-la de filha que a reintegra na comunidade e a confirma na sua missão de mulher digna e igual aos discípulos.

Aquela cena de cura foi mais do que uma cura. Foi a proclamação da dignidade da mulher. Para a profecia da fé, não bastam tolerância e compaixão. É necessária a acolhida radical e transformadora de todas as pessoas marginalizadas e excluídas. É preciso colocá-las no primeiro lugar do corpo de Cristo que é a comunidade. Aquela mulher se tornou símbolo de toda mulher e mesmo de todas as pessoas que precisam ser libertadas do peso da impureza legal, da marginalidade social e do patriarcalismo cultural e religioso. 

Um dos maiores escândalos das Igrejas hoje é conviver com o patriarcalismo. Por uma leitura fundamentalista de textos bíblicos tirados do seu contexto, alguns pastores de Igreja ainda dizem a mulheres oprimidas, maltratadas ou abusadas por seus maridos crentes que, para agradar a Deus, elas precisam se conformar com a injustiça e continuar sendo vítimas do machismo. Na Igreja Católica, é crime maior ainda que eclesiásticos mantenham relações de dominação com mulheres religiosas ou leigas e estas não denunciem para não prejudicar a missão. 

O relato da reanimação da filha de Jairo é como um final da história. É para nos dizer que reintegrar a mulher curada é o modo de anunciar a ressurreição de Jesus. O evangelho inteiro é para isso. Onde se aceita qualquer tipo de discriminação da mulher se nega que só sendo um discipulado de iguais, podemos ser discípulos e discípulas de Jesus.

Talitha Cumi, pintura de Koleva Timothy

Hoje, a discriminação não se dá mais pelo corrimento de sangue na mulher e sim pela não aceitação da orientação sexual diferente. Hoje, para muitas Igrejas, a impureza legal está sobre a população LGBTQI+. Nada. Nenhum verso da Bíblia poderia ser honestamente usado para legitimar a iniquidade dessa injustiça e violência terrível. No entanto, até hoje, muitas Igrejas ainda são cúmplices e legitimadoras da homofobia dessa sociedade sem coração. 

Ao reler, hoje, esse evangelho da cura da mulher e da ressurreição da menina, precisamos compreender que onde não há respeito e abertura para todos os gêneros e orientações sexuais não há verdadeiro testemunho da ressurreição de Jesus. Provavelmente, no tempo do evangelho, as comunidades já tinham o desafio de integrar na comunhão as pessoas tidas como diferentes (que a religião tradicional considerava impuras). Até hoje, as Igrejas estabelecem regras para quem pode e quem não pode comungar. O evangelho conta que, Jesus, depois de levantar a filha morta de Jairo, diz às pessoas da casa: “dothenai Aute phagein”, “dai-lhe de comer” (5, 43). Nas Igrejas, a ceia de Jesus deve ser aberta a todos e todas, como sinal de vida, de integração igualitária e sinal de uma sociedade de comunhão. 

Ir. Marcelo Barros

Sobre o autor:

Ir. Marcelo Barros

Ir. Marcelo Barros é monge beneditino, escritor e teólogo biblista brasileiro. Assim como Teilhard Chardin contemplava o mundo como um altar, Marcelo Barros contempla o mundo, a partir dos mais pobres e vulneráveis, como o seu mosteiro. Ele pertence a comunidade Bremen. Em 1969, ele foi ordenado padre por dom Helder Camara e, durante quase dez anos, de 1967 a 1976, trabalhou como secretário e assessor de dom Hélder para assuntos ecumênicos. Ele é assessor das CEBs, das Pastorais Sociais e dos Movimentos Populares. Ele é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo – ASETT, que reúne teólogos da América Latina, África, Ásia e ainda minorias negras e indígenas da América do Norte. Ele é membro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER. Em seu blog, assim ele se define: “Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar”. Autor de muitos livros e artigos, tais como: Teologias da Libertação para os nossos dias. Vozes, 2019; A água nossa de cada dia nos dá hoje. Editora CONIC/ Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, 2018; Diálogos com o amor. Como orar os Salmos, orar o Hoje do mundo. Editora Kelps, 2017.