“A prática pastoral hoje, evangeliza?”, com a palavra o teólogo Vitor Gaudino Feller

A resposta à pergunta-título pode ser “sim” ou “não”. Depende de cada situação. Não responderei à pergunta. Ofereço apenas pistas para reflexão. Não temos como auferir certezas, resultados, de nossa ação pastoral. Trabalhamos não com certezas, mas com mistérios. Não às claras, mas às apalpadelas. Toda ação pastoral é certamente evangelizadora. Há, porém, áreas de sombra em que se pode perceber que nossa ação se perde e se anula, por não centrar-se no mistério. Se “o agir segue o ser”, como diz um antigo provérbio, nossa ação pastoral deve corresponder ao nosso ser cristão, nosso ministério deve provir do mistério divino do qual participamos.

Um critério para se saber se nossa prática pastoral é verdadeiramente evangelizadora nos foi dado por Jesus de Nazaré, em sua resposta aos dois discípulos de João Batista: “Então João chamou dois de seus discípulos, e os mandou perguntar ao Senhor: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” Eles foram a Jesus, e disseram: “João Batista nos mandou a ti para perguntar: ‘És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?’” Nessa mesma hora, Jesus curou muitas pessoas de suas doenças, males e espíritos maus, e fez muitos cegos recuperar a vista. Depois respondeu: “Voltem, e contem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a Boa Notícia é anunciada aos pobres. E feliz é aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (Lc 7, 18-23)”

Como se deduz do trecho lucano, Jesus primeiro realizou obras de curas e expulsões de demônios, depois mandou os enviados de João a contar-lhe o que haviam visto e ouvido: obras de salvação, sobretudo em favor dos pobres. Esse deve ser o critério para averiguar se nossa ação pastoral é evangelizadora, se o que fazemos é uma boa-nova para os pobres.

Os sinais do anúncio e do início do Reino de Deus, que podiam ser vistos e ouvidos na prática de Jesus de Nazaré, eram muitos e diversificados: cura de doentes, expulsão de espíritos malignos, convivência com marginalizados, acolhida e perdão aos pecadores, predileção pelos pobres, satisfação da fome das multidões, participação em banquetes, inclusão dos pobres nos banquetes festivos, ensino fácil por meio de parábolas, denúncia profética de atitudes contrárias ao Reino, confronto com práticas idolátricas dos chefes religiosos etc. A prática de Jesus não era uniforme e isolada, mas multiforme, multidirecionada, partilhada com os discípulos e, até mesmo, com as multidões. Mas, em toda a sua prática, em seu ministério pastoral, Jesus era um homem centrado no mistério de Deus. O Pai era sua bússola e referência, seu norte e pólo de sentido último. O ministério de Jesus era conseqüente com seu mistério, sua ação derivava de seu ser e sua interioridade era explicitava.

Minha resposta à pergunta-título – “a prática pastoral hoje, evangeliza?” – estará centrada, primeiramente, na advertência de que devemos buscar sempre o mais profundo de nós mesmos: a santidade de vida, a graça de sermos amados por Deus, a beleza simples da radicalidade evangélica, a quênose do mistério.

Em seguida, mas ainda na linha da pobreza quenótica, farei uma breve reflexão sobre a importância da Igreja particular como centro de todo planejamento e ação pastoral. Por fim, darei algumas indicações práticas, ainda que polêmicas, para que nossa ação pastoral seja verdadeiramente evangelizadora.

O evangelho da santidade

A ação pastoral dos santos nunca fracassou. Na mensagem ao bispo de Assis, a propósito do encontro inter-religioso pela paz, para celebrar os 20 anos do Encontro de Assis, de 1986, o papa Bento XVI assim se expressou: “O testemunho que ele (Francisco de Assis) deu no seu tempo faz dele um natural ponto de referência para aqueles que hoje cultivam o ideal da paz, o respeito pela natureza, o diálogo entre as pessoas, entre as religiões e as culturas. Todavia, é importante recordar, se não se quer trair sua mensagem, que foi a escolha radical de Cristo a fornecer-lhe a chave de compreensão da fraternidade à qual todos os seres humanos são chamados, e à qual também as criaturas inanimadas – do “irmão sol” à “irmã lua” – de algum modo participam. Apraz-me, portanto, recordar que, em coincidência com este 20º aniversário da iniciativa de oração pela paz de João Paulo II, recorre também o oitavo centenário da conversão de São Francisco. As duas comemorações se iluminam reciprocamente. Nas palavras a ele dirigidas pelo Crucificado (da igreja) de São Damião – “Vai, Francisco, e reconstrói a minha casa…” –, na sua escolha de radical pobreza, no beijo ao leproso no qual se expressou a sua nova capacidade de ver e amar Cristo nos irmãos sofredores, tinha início aquela aventura humana e cristã que continua a fascinar tantas pessoas de nosso tempo e torna esta cidade meta de inúmeros peregrinos.

Por essa ótica, faz sentido o apelo do Concílio Vaticano II, no capítulo V da Lumen Gentium; de João Paulo II, em sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte; e de Bento XVI, em favor de um cristianismo, uma Igreja, uma pastoral que se centrem na santidade, na espiritualidade, na mística. Retomemos o refrão de K. Rahner: “o cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão”. Citemos João Paulo II: “Não hesito em dizer que o horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral é a santidade […] Apontar a santidade permanece de forma mais evidente uma urgência da pastoral. […] Colocar a programação pastoral sob o signo da santidade é uma opção carregada de consequências” (NMI 30-31). Lembremo-nos de Paulo VI: “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade os testemunhas do que os mestres ou, então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas” (EN 41).

Esse foi o insistente mandamento de Deus ao povo de Israel: “Sede santos, porque eu sou santo” (Lv 11, 44.45; 19, 2), “sede santos, porque eu sou o Senhor vosso Deus” (Lv 20, 7), “sede santos para mim porque eu, o Senhor, sou santo; eu vos separei dos outros para serdes meus” (Lv 20, 26). Jesus traduziu esse mandamento apelando para a perfeição do Pai (Mt 5, 48), para a misericórdia do Pai (Lc 6, 36).

Figuras como dom Romero, dom Helder, dom Luciano, santa Paulina, ir. Dulce, madre Teresa, o próprio João Paulo, para citar só alguns nacional ou mundialmente famosos, são fascinantes. Foram santos, perfeitos, misericordiosos. Como Jesus, atraíram multidões. Sua ação pastoral foi e continua sendo certamente evangelizadora. Vai além do campo propriamente eclesial. Eles não precisavam ir ao mundo; o mundo e a mídia vinham a eles. Suas palavras e ações certamente evangelizam, são boa-nova para o homem de hoje, o pobre, o prisioneiro, a mulher excluída de seus direitos, o sofredor de rua, o intelectual que se interroga sobre o sentido da vida, o pecador arrependido, os povos do Terceiro Mundo.

Ocorre-nos perguntar se em nossa ação pastoral somos santos, se aspiramos à santidade 24 sobre 24 horas. Talvez sejamos apenas funcionários, burocratas, profissionais do sagrado!

O evangelho da graça

O cristianismo atual tornou-se pelagiano, uma religião da obrigação, do peso, da ação, do compromisso, da ética. Isso se reflete tanto na ação social e política quanto na liturgia e nos sacramentos e na catequese. A liturgia se encheu de coisas, de palavrórios, de comentários, de espetáculos, de teatros, de shows. Os sacramentos são dados na medida em que houver contrapartida humana, participação, empenho, cursos de formação etc. A catequese encheu-se de metodologia, de didatismo etc.

Nosso cristianismo, assim como o praticamos e propomos, corre o risco de perder a graça, nos dois sentidos. No sentido divino, perde a graça o dom de Deus; no sentido humano, perde o humor, a beleza e a alegria. Em ligação com esse tema, temos a questão da força, do poder, do triunfo. O cristianismo que pregamos hoje se tornou religião da lei, da norma, das orientações sacramentais, do que pode ou não pode. Pregamos na base do cálculo humano, da quantidade, do empenho, do sucesso. Também tornou-se religião da presença humana, do discurso, do espetáculo, do triunfalismo, do arrebanhamento.

Essa pelagianização começou de fora para dentro; começou com a ação social, a missão, até atingir a ação litúrgica, o íntimo, o cerne da fé cristã, a Eucaristia. Não há mais, ou transparece muito pouco ou dificilmente, a boa-nova da graça de Deus, da salvação como oferta, da vinda gratuita de Deus. Onde o homem, o cristão, ocupa muito espaço, Deus, humildemente, se oculta. Perdeu-se o sentido da quênose, da fraqueza da cruz, que é onde se revela a força de Deus. Há muita força humana (instituições, ritos, mandamentos, cargos, títulos, funções, setores, pastorais etc.) e pouco espaço para a beleza, o encanto, a graça divina.

Diferentemente de Paulo, que pregava na base da fraqueza, hoje se pretende pregar na base do arrebanhamento, do triunfo, da força. Na tradução da Bíblia Pastoral, a palavra “fraqueza” comparece 21 vezes em toda a Bíblia; destas, 17 vezes nas cartas paulinas! Isso revela de onde vinha a força de Paulo: seu ministério fundava-se no mistério divino, na quênose da cruz de Cristo.

Hoje, constata-se entre nós um forte acento eclesiocêntrico, quando não movimentocêntrico, teologocêntrico. A Igreja é fermento na massa; jamais deve ter a pretensão de tornar-se massa. “O homem é o caminho da Igreja”, como nos ensinou João Paulo II, em sua encíclica Redemptor Hominis. Mas a centralidade do homem tem sentido por causa de Cristo, da novidade cristã. O homem é caminho da Igreja, mas Cristo é o verdadeiro homem, no qual cada ser humano se encontra e se realiza (GS 22). Só no mistério de Cristo se revela o ministério do homem e, sobretudo, do cristão.

Enquanto o homem de hoje tem sede de ser, de mistério, de Deus, ainda que muitas vezes o mascare, com medo de ir à profundidade de si, nós, agentes de pastoral, entramos na onda do mundo, da moda, da mídia, do mercado, e insistimos na ação, no ministério, no homem. Não entramos na profundidade, não vamos às águas mais profundas, apenas surfamos na superfície dos problemas imediatos e aparentes.

  • Está claro que o cristianismo é religião da ação – “vai e faze tu o mesmo”, disse Jesus ao fariseu após a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) –, mas a ação cristã só pode ser verdadeira se provier do ser cristão, ser em Cristo, permanecer em Cristo.
  • Está claro que o cristianismo é religião da ética, da moral. Mas não da cobrança. O cristianismo não é religião de cobrança, mas de oferta. Nisso os protestantes, os pentecostais e os carismáticos são melhores que os católicos tradicionais. Será por isso que crescem?

Descontando o anacronismo, podemos ver como nos evangelhos há diferença entre o pelagianismo das propostas religiosas da época e a gratuidade do Evangelho de Jesus.

  • Quem cobra? João Batista, com sua ameaça e ira; os fariseus, escribas e doutores da lei, com seu legalismo; os sacerdotes, com seu sacrificialismo; os zelotas, com sua luta armada e propostas guerrilheiras; os essênios, com sua pureza ritual.
  • Quem oferece? O Pai, com a oferta e entrega de seu Filho; o próprio Filho, Jesus de Nazaré, com a oferta da acolhida e do perdão aos pecadores, com sua predileção pelos pobres, com sua inclusão das mulheres e dos marginalizados, com seu amor aos discípulos até o fim, com a entrega de sua vida na cruz; o Espírito Santo, que é entregue aos fiéis e derramado sobre a Igreja.

Nossa pastoral se tornou por demais cobrança: normas morais, orientações pastorais, cursos de batismo e de casamento, catequeses de primeira eucaristia e crisma, sacramentalismo. Insiste-se pouco na oferta da graça do evangelho e da graça dos próprios sacramentos.

  • Está claro que o cristão deve guiar-se por normas morais a respeito da bioética, da sexualidade, da política, da economia etc. Mas, sem a experiência da graça, tudo se torna peso!
  • Está claro que deve haver preparação para receber os sacramentos e sua graça. Mas, se não houver uma exaltação primeira, prática e teórica, da graça salvífica que se recebe com os sacramentos, a preparação se torna um peso!

É preciso ir ao ser, ao cerne, ao mistério de Cristo.

O evangelho da simplicidade

Em nossas avaliações pastorais, corre-se sempre o risco de fazer análises positivas, tem-se dificuldade para ver o negativo. Quem for positivo no ver será negativo ou, pelo menos, omisso na ação, pois não percebe as realidades e atitudes que precisam ser mudadas. Quem, pelo contrário, for negativo na análise, quem for crítico (sem ser cítrico), tem mais motivos para ser positivo na ação, pois percebe melhor as realidades e atitudes que têm que ser mudadas.

Em muitas de nossas assembléias de pastoral, paroquiais, diocesanas e regionais, temos o prazer de viver no sono da ilusão de que estamos bem: a Igreja voltou a crescer; os movimentos estão atraindo pessoas; a Igreja tem credibilidade na opinião pública. Tapa-se o sol com a peneira: não se vê, não se quer ver o desencanto do povo, sobretudo das novas gerações, com a religião, com a própria Igreja Católica; encontram-se mil justificativas para os pontos negativos, para evitar ter de reconhecer que há falhas nossas: omissões, dispersões, escândalos, sobrecargas etc. Certamente não nos cabe tomar a posição de vítimas. Pois está em andamento um grande processo de fuga dos católicos para outras igrejas ou movimentos religiosos alternativos, que se explica pelo subjetivismo, secularismo e relativismo do Ocidente. Mesmo assim não há como negar omissão da parte da Igreja, sobretudo de suas elites clericais, bispos e padres, que não perceberam ou não quiseram perceber a realidade.

  • Na resposta à perda de fiéis, há quem entre no jogo do mercado, da mídia e da moda, fazendo o mesmo que os opositores. Surfam na periferia do Evangelho, com oferta de penduricalhos e devocionismos baratos, que já haviam sido superados pelo Concílio Vaticano II.
  • Outros se deixam levar pela prática do heroísmo. Cede-se, assim, à onipotência das ações dispersas e dispersivas. Faz-se muito na Igreja, mas de modo disperso. Não se trabalha com prioridades.
  • Há muitas pastorais, setores, movimentos, organismos, cada um querendo fazer mais e melhor, mas cada um por conta própria, sem preocupação com uma pastoral orgânica.

Muita ação, pouco planejamento. Pouca ação pensada, avaliada, celebrada. A metodologia do ver-iluminar-agir-celebrar-rever, muito citada e idealizada, é, na verdade, muito pouco posta em prática.

Como se sabe, a metodologia científica nos ensina a virtude da humildade. O cientista é um humilde. Ele sabe que não sabe tudo; sabe que aquilo que sabe é só uma parte da verdade; sabe que sua verdade é passageira e vista de um ponto. O crente é chamado à humildade, à simplicidade, por outros motivos: por serem simples servidores (cf. Lc 17, 10). Serviço simples, sim, mas organizado, planejado. Sem a tentação nem do triunfo, nem da onipotência, nem do descrédito, nem da desesperança.

O evangelho da partilha

O cristianismo é religião da partilha. Mas não é o que tem acontecido. Um modo de enfrentar a religião do mercantilismo idolátrico é a partilha do dízimo. A Igreja Católica não tem, não assume, não divulga, não propõe uma pastoral do dízimo que incentive os católicos à partilha, à pobreza, à sobriedade, à austeridade. Será preciso um anúncio do Evangelho que leve os cristãos a prender a viver da própria pobreza: do bolso do fiel para a comunidade, para a paróquia, para a diocese (a Igreja particular, que é a igreja-mãe de todo planejamento e decisão e, portanto, da administração de todo o patrimônio), que poderia, aí sim, adquirir rádios, TVs, construir pensionatos, hospitais, prover mecanismos de apoio a necessitados, prover melhor a formação de suas lideranças etc. Como está, o dinheiro da Igreja, que é pouco, mas é o dos pobres, é esfacelado, mal distribuído, mal usado (em TVs devocionistas, por exemplo), sem a devida prestação de contas.

Enfim, a reação ao deus-mercado seria a comunhão, sobretudo, dos bens materiais, ainda que poucos. Portanto: viver a comunhão evangélica. A comunhão, espiritual e material, é o único modo que temos para enfrentar o dragão do egoísmo do mercado. Na Epístola de Barnabé, faz-se a seguinte pergunta: por que é tão fácil pôr em comum os bens espirituais, que são de valor eterno, e é tão difícil pôr em comum os bens materiais, que são passageiros? Vivemos na contradição do Evangelho. Carecemos de um novo tipo de profetismo, que alia opção pelos pobres e atenção ao pluralismo religioso, sobretudo ao mercantilismo religioso. O futuro da religião e o futuro dos pobres estão imbricados, se interdependem.

O cristianismo deve tornar-se oferta de sentido para a vida num mundo individualista, materialista, fragmentário; oferta de verdadeira experiência de Deus, na base do encontro, e não somente da emoção; espírito de solidariedade e comunhão; vocação para a missão e o engajamento. É preciso denunciar a fundamentação religiosa desse deus-mercado, para que as pessoas saibam a quem estão se entregando, quem é que lhes está sugando a fé do espírito e o sangue do corpo. A religião do neoliberalismo, do deus-dinheiro, que já sugou o sangue dos operários, agora suga a fé dos jovens e dos pobres. Tenha-se como exemplo a teologia da prosperidade de igrejas-empresas. É uma religião excludente, que justifica o neoliberalismo, que em nada é globalizante, mas excludente, que é difícil, senão impossível, que se torne solidário.

A pregação de João Paulo II sobre a globalização da solidariedade faz sentido, se o ponto de partida for outro modelo econômico, negando, condenando enfaticamente este aí, e propondo outro que seja de fato solidário. Nesse ponto, têm importância as pastorais sociais, os conselhos comunitários, o profetismo das comunidades, as denúncias, as celebrações martiriais, as Campanhas da Fraternidade, os gritos dos excluídos, os mutirões (contra a fome, pela Amazônia…), os fóruns sociais, as semanas sociais etc., desde que fundados no ser, no mistério, na graça, em Deus. Basta lembrar de Jesus de Nazaré, que quanto mais religioso, quanto mais arraigado no amor do Pai, mais se revelava ousado na prática política, na denúncia profética, na prática do Reino do Pai. Para isso, vale uma séria pastoral do dízimo, da partilha, da comunhão, que assuma corajosamente uma prática e uma doutrina contrárias ao mercantilismo atual, que se coloque decididamente do lado do Deus dos pobres e dos pobres de Deus.

O evangelho da Igreja particular

O Concílio Vaticano II exaltou a Igreja particular como o lugar por excelência em que acontece a obra evangelizadora. Na sua simplicidade, em seu chão quenótico, na pequenez de seu território, na pobreza de seu presbitério e laicato, a diocese é a unidade-mãe de todo planejamento pastoral, unidade-eixo de toda prioridade e ação. No entanto, o atual crescimento e a força dos movimentos eclesiais estão enfraquecendo as estruturas eclesiais de organização e administração, de planejamento pastoral e de ação evangelizadora. Deixa-se correr por conta do que cada um traz de carismático, de novo. Não se faz o discernimento de que os carismas estejam a serviço da edificação da Igreja. Tudo o que vem, vem bem. Não há preocupação séria, pastoral, teológica, de encaixar as propostas numa pastoral de conjunto coordenada pela diocese. Os movimentos, que deveriam ser vistos e apreciados na dinâmica – horizontal – da gratuidade, da liberdade, da santidade etc., passam a ocupar o eixo – vertical – da organização, do poder, da administração, da ação.

  • Dioceses, paróquias e comunidades deveriam ser tidas como eixo de governo, portanto de atração, de comunhão, de integração, de necessidade, de exigência, de conditio sine qua non, de estruturas da Igreja. É a ordem da comunhão (“convosco sou cristão”, dizia Agostinho).
  • Pastorais, movimentos, congregações, novas comunidades de vida etc. deveriam ser tidos como eixo de santidade, portanto de liberdade, de gratuidade, de beleza, de estruturas, na Igreja. É a ordem do serviço (“para vós sou bispo”, concluía Agostinho).

Quando se invertem os eixos, passa-se a obrigar que todos assumam carismas específicos, que todos façam tudo. A gratuidade perde o sentido de graça e se torna como que obrigatória. Deixa de ser graça. O ser é substituído pela ação. A ação torna-se critério de análise.

Outro tema que precisa ser levado em conta na ação pastoral da diocese é a relação entre Palavra e Eucaristia. Cabe à Igreja particular o anúncio do Evangelho e a celebração da Eucaristia. Mas ela deve fazer o equilíbrio entre uma e outra.

A Palavra é universal, é para todos; como no caso de Jesus, que falava para todas as multidões. Sem o anúncio da Palavra, o cristianismo não tem futuro. Ela deve ser dita a todos, oportuna e inoportunamente, a cabritos e ovelhas, a bons e maus; como a semente da parábola, que é semeada à beira do caminho, em terreno pedroso, em terreno espinhento e em terra boa. Essa é a vulnerabilidade da Palavra; ela é fraca, simples, disponível, universal. É por Ela que se evangeliza. Não se evangeliza com devocionismos, tradicionalismos, esoterismos. O evangelizador de hoje deve ser claro, direto, explícito, sem meias palavras. Nesse sentido, aliás, vale lembrar que essa é também a linguagem da mídia moderna, em que pese, muitas vezes, suas ambigüidades. Essa foi a linguagem de Jesus. A Palavra, o Evangelho, é para todos.

A Eucaristia, ao contrário da Palavra, é para poucos; só os apóstolos participaram da última ceia. A Eucaristia é para iniciados, para quem fez o processo de iniciação, o catecumenato, a mistagogia. Acontece, porém, que se expõe demais a Eucaristia: em todos os ambientes, nos meios públicos, na mídia, em posse de governantes, em formaturas, em qualquer lugar e situação. Para muita gente, ainda que católicos, não há preparação nem dignidade para a celebração do mistério eucarístico. Por isso, os abusos atuais que se verificam na missa: shows, espetáculos, estridências, coisas enfiadas cá e lá para agradar o freguês. A simplicidade do mistério eucarístico deveria ser antecedida da simplicidade da Palavra.

Por uma ação pastoral que seja realmente Evangelho, boa-nova

Inspirando-me livremente em João Batista Libanio (Christus, julho-agosto, 2006), em sua sugestão sobre quais as grandes propostas do Vaticano II, de Medellín e de Puebla, que deveriam ser retomadas em Aparecida, apresento os seguintes caminhos:

a) Revisar o ministério ordenado, pela superação do autoritarismo e do centralismo pastoral, sobretudo do clero.

Redimensionar o magistério oficial, à luz do serviço e da simplicidade. Também o ministério petrino (João Paulo II, Ut unumsint; Quinn, A reforma do papado). Revisar o diaconato permanente, em vista de superação de seu clericalismo e apego à liturgia, para pô-lo na linha da caridade social. Uma ação pastoral centrada no distanciamento e no autoritarismo do clero, certamente, não evangeliza. Ou evangeliza pouco. Ou poderia evangelizar muito mais, se a autoridade fosse vivida como prática de serviço, de auctoritas (de augere, fazer crescer), de lava-pés, partilha, convivência. Nesse campo, há um longo caminho a se percorrer na formação inicial e permanente dos presbíteros.

b) Renovar as estruturas da Igreja com a força dos carismas.

Animar, humanizar, espiritualizar a rigidez de muitas formas institucionais e jurídicas. Na linha da diaconia, da pobreza, da simplicidade. Em vista de um modelo “democrático”, comunional e participativo na Igreja. Se a Igreja é comunhão, não é uma democracia, mas é muito mais que democracia, ela deveria assumir em seu interior, pelo menos os grandes valores da democracia: liberdade de expressão, participação popular no regime de governo etc. Assumir o princípio de subsidiariedade no governo da Igreja. Em todos os níveis, a começar dos mais baixos, daqueles que dependem de nós. Buscar uma Igreja verdadeiramente conciliar. Não só no sentido de fidelidade ao Concílio Vaticano II: comunhão, diálogo, aggiornamento, mas de prática de conselhos: pastoral, formativo, administrativo, presbiteral. Não é preciso, para isso, cair no assembleísmo. Mas é preciso privilegiar todos os espaços que favoreçam a participação do laicato. Criar canais jurídicos de comunhão e participação. Não fazer a pastoral depender somente da boa vontade e das pias intenções dos bispos, párocos e líderes. Fortalecer vínculos entre os bispos e as conferências episcopais. Favorecer maior participação dos fiéis interessados, na escolha dos bispos e párocos. Oferecer poder deliberativo para sínodos, para conselhos de pastoral das paróquias e comunidades. Na linha de uma Igreja conciliar, circular, não-piramidal, não-vertical. Uma ação pastoral fundada na concepção piramidal da Igreja certamente não evangeliza. Ou evangeliza pouco. Ou poderia evangelizar muito mais, se assumíssemos definitivamente a eclesiologia da comunhão do Vaticano II.

c) Buscar uma renovação litúrgica popular em diálogo com a cultura popular religiosa afro-ameríndia.

Ligar mais a religiosidade popular com a liturgia, a partir das CEBs. Aproveitar mais o vigor, a criatividade e a originalidade do catolicismo brasileiro. Celebrar o Mistério Pascal de Cristo com a beleza e a simplicidade do povo. Uma ação pastoral baseada no sacramentalismo da liturgia certamente não evangeliza. Ou evangeliza pouco. Ou poderia evangelizar muito mais, se nossas liturgias fossem assembléias festivas de encontro do povo com o seu Deus. Uma horizontalidade que não se fechasse em si, mas que apontasse para a verticalidade do mistério e dele ganhasse forças para voltar à ação. A verdadeira evangelização só tem sentido se aponta para o mistério, a verticalidade de Deus e, portanto, para a profundidade do ser humano, das pessoas, em seu sentido de vida e, a partir daí, para a horizontalidade do serviço aos irmãos e ao mundo.

d) Enfrentar o fenômeno religioso e das espiritualidades.

Perceber a sede de Deus que está por trás do pluralismo religioso e do retorno do sagrado. Favorecer a experiência de Deus, com uma pastoral da espiritualidade, da santidade, da mística (retiros, leitura orante da Bíblia, testemunho dos santos etc.). Fazer da Igreja a casa e a escola da oração e da santidade. Na linha da pneumatologia paulina da liberdade, que purifica as experiências religiosas dos ruídos mágicos, míticos, fundamentalistas. Assumir decididamente uma nova postura na relação com os movimentos de espiritualidade e de apostolado:

  • Reconhecer seus valores, na linha do discernimento espiritual, captando seu lado criativo e animador (novidade, liberdade, presença do Espírito Santo);
  • Mostrar seus riscos e limites (conservadorismo, autoritarismo, fechamento no próprio umbigo) e os perigos para as comunidades locais e às Igrejas particulares.
  • Relacioná-los ao planejamento pastoral e à caminhada da Igreja local, com os compromissos sociais, com a opção pelos pobres.
  • Incentivar uma espiritualidade mística e militante, interior e integradora.

e) Conectar-se mais com a sociedade globalizada, com a sociedade do conhecimento.

Incentivar o conhecimento. Não apenas teológico. Investir na formação dos novos presbíteros na área da informática, do jornalismo, das comunicações, da sociologia, da psicologia etc. Valorizar o conhecimento dos leigos na área da teologia, mas também da ética, da bioética, da política, dando-lhes liberdade de posicionamento. Elaborar uma nova teologia que supere definitivamente a linguagem pré-moderna, escolástica, essencialista, ontológica, em favor de uma linguagem existencial, histórica, que dê significado-sentido às pessoas de hoje, do mundo pós-moderno. Uma teologia comprometida com os pobres, com o avanço das ciências, que valorize o simbólico, o feminino, o narrativo, com o sentido da vida.

f) Evangelizar a cultura, mas a partir da cultura dos pobres, e não como adaptação à cultura das classes burguesas.

A história mostra que o cristianismo chegou até aqui porque foi inculturando-se nos meios pobres, com meios pobres. Unir ao imaginário social e libertador os traços evangélicos, dando-lhe consistência e profundidade. É por esse caminho que deverá estar presente no meio moderno e pós-moderno.

  • Como alternativa ao paradigma dominante, propor um novo paradigma cultural, que considere as conquistas atuais: a ecologia, a cosmologia moderna, o gênero, as etnias, a paz, a ética do cuidado e da compaixão.
  • Entrar na cultura da comunicação, com o característico do evangelho, com a proposta de uma santidade adulta, militante, propositiva, moderna. Com uma teologia, antropologia, eclesiologia, escatologia etc. que ofereçam sentido para a vida do povo e das pessoas.
  • Evangelizar os meios de comunicação social e nos meios de comunicação social. Superar o devocionismo televisivo. Devocionismo não evangeliza. O que evangeliza é o anúncio da Palavra, interpretada, atualizada, enraizada.

Sem Palavra não há futuro para o cristianismo. Ela é o início de tudo. Sem ela, não vale nada do que há na Igreja, do que faz a Igreja. Pois é a Palavra que deve fazer-se carne, cultura, história, sentido nos tempos de hoje, para os homens de hoje.

Pe. Vitor Galdino Feller

Vitor Galdino Feller

Pós-doutor em Teologia (PUC Rio), doutor em Teologia (Gregoriana/Roma), professor de Teologia Sistemática e diretor do Instituto Teológico de Santa Catarina/Florianópolis. e-mail: vitorfeller@arqui-floripa.org.br.

Ps.: Este texto foi apresentado numa conferência no 1º Seminário de Pastoral do ISPAL-PUC Minas: “Evangelizar: desafios e perspectivas”, realizado em Belo Horizonte, em 2006. Ao revisitá-lo julgamos muito pertinente aqui apresentá-lo por suas ricas perspectivas para o nosso discernimento pastoral na ação evangelizadora.

Fonte:

Revista Horizonte, PUC Minas