IGREJAS E SANTUÁRIOS COMO UM SERVIÇO ESSENCIAL?

“Precisamos vencer a pandemia e nós o faremos à medida em que formos capazes de superar as divisões e nos unirmos em torno da vida. Como indiquei na recente Encíclica Fratelli tutti, ‘passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta’”. (Papa Francisco, 2021)[1].

Desde a chegada da pandemia da covid-19 no Brasil em março de 2020 os setores fundamentalistas cristãos, a exemplo das igrejas pentecostais, neopentecostais e frações conservadoras da igreja católica, tem resistido com hostilidade às medidas de política epidemiológica, dentre as quais gostaria de destacar, a proibição da realização de cultos e missas presenciais. A este respeito, Douglas Dias e eu escrevemos e publicamos pelo Observatório da Evangelização da PUC Minas em agosto de 2020 o artigo “Viver a fé na quarentena: uma reflexão sobre a ‘ética da convicção’ e a ‘ética da responsabilidade’”. Na ocasião apontamos o vazio teológico dos discursos de jovens católicos que pediam aos bispos brasileiros a volta das missas presenciais.

O referido pedido manifesto no vídeo “Por favor, nos devolvam a Santa Missa”, foi feito em um momento em que haviam em torno de 700 mil mortes por covid-19 no mundo e 110 mil destas, no Brasil. Com o declínio da chamada primeira onda, no país, diminuíram os números de casos de infectados e de óbitos. Concomitantemente houve um relaxamento da quarentena e de outras medidas de política epidemiológica. O que propiciou a volta das celebrações religiosas. Em contrapartida o poder público passou a exigir alguns procedimentos de segurança por parte das igrejas, a saber: a medição da temperatura corporal dos fiéis, a obrigação do uso de máscara e álcool em gel dentro dos templos, o distanciamento físico entre os fiéis e a garantia da não extrapolação do limite máximo de pessoas no interior dos templos. Infelizmente estas exigências foram recorrentemente descumpridas.

Em março de 2021 o Brasil entrou no pico da segunda onda da pandemia da covid-19 com recordes diários e consecutivos de número de casos e de óbitos muito superiores do que os da primeira onda. Novamente prefeitos e governadores adotaram medidas de contenção da disseminação do corona-vírus, dentre elas, a proibição de celebrações religiosas presenciais. Em meio ao novo cenário de caos na saúde pública, marcado pelo montante de mais de 350 mil brasileiros mortos pela covid, os setores fundamentalistas cristãos passaram a reivindicar aos três poderes da República um suposto direito da inviolabilidade do espaço sagrado, da liberdade religiosa e da celebração de cultos e missas presenciais.

No dia 26 de março de 2021, o presidente da República Jair Bolsonaro editou e publicou no Diário Oficial da União um decreto que inclui atividades religiosas na lista de serviços essenciais. No dia 3 de abril de 2021 o ministro do Supremo Tribunal Federal Nunes Marques concedeu medida cautelar contra decretos de municípios e estados que proíbam atividades religiosas presenciais. E no dia 6 de abril de 2021 a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou em primeiro turno um projeto de lei que classifica igrejas e santuários como serviço essencial.

A espiritualidade, as práticas religiosas e as experiências de fé são um componente essencial da vida humana e que está relacionada a nossa capacidade simbólica, cultural e de transcendência. Porém, as três medidas políticas e jurídicas apontadas anteriormente refletem posturas anti-cristãs. Isto porque tentam manter os cultos e missas presenciais em um contexto de caos pandêmico a partir da inserção de igrejas e templos na lista dos chamados serviços essenciais. Ora, sabemos que há séculos a igreja católica tem prestado vários tipos de serviços à sociedade, seja nas escolas, nas universidades, nos hospitais, nos asilos, nas creches nos orfanatos etc., mas faz isto por compromisso social e por preferência aos pobres, não por obrigação, pois este não é o seu objetivo, tal como seria por exemplo no caso das instituições públicas estatais e empresariais.

A Igreja, em uma concepção teológica cristã-católica é o corpo do qual Jesus é a cabeça, é a profunda relação de comunhão e de amor entre o criador e as criaturas, é a comunidade universal daqueles que creem. A missa, também em uma concepção teológica cristã-católica é a oração das orações, feita em memória da última ceia de Jesus com os seus discípulos.

Desta forma, a igreja católica não é e não pode ser considerada como uma empresa pública, privada, público-privada ou filantrópica que presta serviço essencial a sociedade por meio da celebração presencial da santa missa. É preciso não confundir a concepção missionária, evangelizadora e pastoral do termo serviço com a concepção moderno-capitalista deste. O serviço realizado pela igreja católica tem a ver com a economia do reino de Deus e não com a economia do sistema de produção capitalista ou com a prestação de serviços médico-hospitalares, de comércio alimentício, de transporte público, de vigilância e policiamento etc.

Transformar a igreja e as missas em serviço essencial é uma manobra genocida que alimenta o deus da morte e do dinheiro com o corpo e o sangue humano. Não há teologia verdadeiramente cristã que legitime esta barbárie. O que há na verdade é a prática da dominação fundamentalista que não visa apenas a garantia do pagamento mensal do dízimo, como muitos supõem, mas também a manutenção da coesão grupal como instrumento de poder de barganha e disputa política, religiosa, social e econômica. 

O pagamento do dízimo poderia ser assegurado por diversos meios físicos e virtuais sem a necessidade da presença física em celebrações religiosas. E a garantia da participação dos fieis nestas celebrações poderia se dar via televisão, rádio e internet como muitas igrejas tem feito exitosamente. Mas a presença física dos fieis no templo permite aos líderes religiosos um controle sobre os mesmos que não é possível por meio dos diversos meios de comunicação. Portanto, transformar a igreja e as missas em serviço essencial não tem nada a ver com a economia do reino de Deus e sim com a economia-política da dominação e da imolação dos cordeiros ao deus da morte. 

Se sejamos mais corresponsáveis uns com os outros na promoção da vida plena e abundante. Que sejamos mais generosos e menos egoístas. Que busquemos cuidar melhor nossa casa comum, pois “tudo está, interligado, como se fossemos um”.


[1] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2021/02/17/papa-envia-mensagem-ao-brasil-e-pede-uniao-para-superar-pandemia.htm

Glaucon Durães, jovem católico, doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas e colaborador jovem do Observatório da Evangelização da PUC Minas.

1 Comentário

  1. Boa e necessária reflexão deste artigo junto as nossas lideranças pastorais. Lembrando que os Administradores reliogiosos e responsaveis pelo rebanho, devem tomar consciência e agir com a atençãooe o cuidado que o momento histórico nos pede. Obrigada.

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