“Mortos não são números”, com a palavra o prof. Élio Gasda, SJ

No país da “ignorância ostentação”, reina a deusa Estupidez rodeada de seu séquito: fanatismo religioso, ódio, hipocrisia, superstição. Diante de tantas evidências, a maioria da sociedade silencia e um terço aplaude. O país normalizou o genocídio dos pobres. A morte, mais do que banalizada, é celebrada. Famílias inteiras dilaceradas enquanto tantos festejam nos bares, fazem festas madrugada afora, lotam os shoppings. Desprezam a dor profunda dos atingidos pela morte. Muitos somente entenderão a gravidade da pandemia quando os mortos forem seus mortos.

Confira a reflexão do prof. Élio Gasda:

Cemitério Parque da Saudade em São Gabriel da Cachoeira (AM) em 13 de maio (Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real)

MORTOS NÃO SÃO NÚMEROS

A ganância pelo poder e pelo dinheiro tem seu lado perverso e bestial

A violência atravessa a história do Brasil. Os “conquistadores” europeus promoveram um genocídio de 4 milhões de seres humanos logo que aqui chegaram. A população indígena foi reduzida a menos de 1 milhão (cf.: IBGE/Censo 2010). Africanos também foram exterminados. Dos 12.521.337 que embarcaram em navios de traficantes de seres humanos mais de 2 milhões morreram na viagem. 

Segundo o IBGE, o Brasil tem mais de 13 milhões de pessoas na extrema pobreza, gente que vive com menos de R$150,00/mês. 53 milhões na pobreza – com renda de até R$ 430,00/mês. Pessoas que não possuem acesso à saneamento básico, água tratada e recolhimento de esgoto são alvos fáceis da Covid-19. 14,6% da população brasileira está desempregada.

A pandemia agravou uma crise já existente

A pandemia tem demonstrado que algumas vidas valem mais que outras, e “quem tem pouco valor” pode ser descartado. Há uma divisão entre vidas passíveis de luto daquelas cujas condições de humanidade é negada: indígenas, negros, pobres, gays, imigrantes, refugiados, idosos, desempregados, os periféricos. Necropolítica! A ‘prosperidade capitalista’ não é para todos. A população pobre é coisa descartável para que os milionários continuem acumulando riqueza. Tudo aquilo que representa algum obstáculo a mercantilização da vida deve ser eliminado, principalmente os “indesejáveis”.

O papel de um governo que arrecada impostos é devolvê-los à população em forma de serviços em várias áreas, como na saúde. A função do Ministério da Saúde é prevenir doenças, tratar os pacientes e reduzir o número de mortes. Mas deixou estragar 6,8 milhões de testes para Covid-19, não tem estratégia para conter a segunda onda da pandemia, e nem plano de vacinação! Analfabetismo científico.

Políticos tomam decisões conscientes de que irão matar milhares de pessoas

O governo sabe que um dos segredos é fazer desaparecer os corpos. Retirar números de circulação, questionar dados, abrir covas em lugares invisíveis. O presidente e seus generais vindos dos porões da ditadura militar sabem como fazer isso.

A violência é a matriz do capitalismo brasileiro. Somos a pátria da guerra civil, dos genocídios sem nome, dos massacres sem documentos, da acumulação de riqueza feitos à base da bala, do fogo e do terror. A política de morte é executada de forma estrutural no Brasil.

Bolsonaro está cometendo um genocídio quando substitui profissionais experientes em epidemias por militares inexperientes em saúde, quando distribui hidroxicloroquina para povos indígenas, retém recursos destinados ao enfrentamento da pandemia, veta medidas de segurança e estimula que as pessoas saiam às ruas sem máscaras, boicota vacinas! Há quatro pedidos de investigação de Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional.

No país da “ignorância ostentação”, reina a deusa Estupidez rodeada de seu séquito: fanatismo religioso, ódio, hipocrisia, superstição. Diante de tantas evidências, a maioria da sociedade silencia e um terço aplaude. O país normalizou o genocídio dos pobres. A morte, mais do que banalizada, é celebrada. Famílias inteiras dilaceradas enquanto tantos festejam nos bares, fazem festas madrugada afora, lotam os shoppings. Desprezam a dor profunda dos atingidos pela morte. Muitos somente entenderão a gravidade da pandemia quando os mortos forem seus mortos.

Um desastre! Ultrapassaremos facilmente os 200 mil mortos

Devemos pedir perdão por nossa indiferença estúpida como nação. Pedir perdão aos mortos cada um com seu nome, sua história, seus desejos, seus sonhos, seus amores. Pedir perdão por aqueles enterrados em covas sem nome, em caixas de papelão porque faltou caixão. Pedir perdão aos profissionais da saúde que arriscam sua vida diariamente.

Receber a notícia da perda de alguém que amamos é devastador. Não é apenas um cadáver. É uma pessoa na grandiosidade da vida que viveu. A morte é um vazio. Somos carregadores de ausências. Cada um sabe de sua dor. As despedidas importam! Quais seriam as “últimas palavras” de uma pessoa que morreu de Covid? Qual seria seu último pensamento, sozinho, entubado, testemunhando o próprio fim? Sem velório, enterrado em uma vala de algum cemitério público.

Não somos um número!Ou seguimos o caminho da solidariedade ou a situação vai piorar. Não se sai de uma crise da mesma forma que antes. A pandemia é uma crise. De uma crise só se sai melhores ou piores. Temos que escolher. E a solidariedade é um caminho para sairmos melhores da crise. Faço uma pergunta: penso nas necessidades dos outros? Cada qual responda no seu coração. No meio de crises e tempestades, o Senhor interpela-nos e convida-nos a despertar e a ativar esta solidariedade capaz de conferir solidez, apoio e um sentido a estas horas em que tudo parece naufragar” (Papa Francisco).

(Adaptação e grifos, Edward Guimarães, para o Observatório da Evangelização)

Sobre o autor:

Prof. dr. Élio Gásda, SJ

Élio Gasda é jesuíta, doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje. Sua reflexão teológica sobre os desafios e urgências da contemporaneidade, à luz da Fé, da Ética e dos princípios estruturantes da Doutrina Social da Igreja, vem contribuindo significativamente na caminhada do movimentos populares, as pastorais sociais, grupos diversos e lideranças comprometidas com a transformação das estruturas injustas da sociedade e a cultura da paz fundada na justiça e na fraternidade. Além de inúmeros artigos, dentre seus livros destacamos: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016). O Observatório da Evangelização tem publicado aqui alguns de seus artigos.

Fonte:

www.domtotal.com

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