Quantas barragens ainda precisarão romper para que as autoridades ouçam os clamores do povo?
Dia 5 de novembro de 2020, cinco anos do crime/tragédia das mineradoras Samarco/Vale/BHP Billiton e do Estado. Dói, mas é preciso recordar e denunciar.
Pela impunidade reinante e pela continuidade da engrenagem criminosa, o Governo de Minas Gerais, as mineradoras e as autoridades não aprenderam nada com os crimes/tragédias da Vale e do Estado, em Mariana e em Brumadinho.
Pior, jamais aprenderão, pois cegados pelo ídolo do mercado idolatrado estarão sempre ajoelhados se empanturrando das benesses do sistema de morte, enquanto se enlameiam de sangue por ações ou omissões cúmplices que fomentam a reprodução da mineração devastadora.
Copam na mão das mineradoras
Covardemente, teremos outros crimes sendo preparados enquanto continuar a atual composição estrutural da Comissão de Atividades Minerárias (CMI) do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam).
Hoje, dentre os 12 conselheiros, 10 são do Governo de Minas, da União e representantes das grandes empresas de mineração e entidades a elas ligadas. E apenas 2 conselheiros representando a sociedade civil: Cefet-MG e Fonasc. Com essa composição tremendamente injusta e desigual, o resultado das votações é sempre 10 votos a favor dos licenciamentos de novos projetos da mineração contra 1 ou 2.
Os crimes e tragédias não são apenas da mineradora Vale, mas também do Estado
Durante as longas reuniões de apreciação e votação de novos projetos de mineração os 10 conselheiros representantes do Estado e de entidades que representam as mineradoras quase não falam, ficam olhando no celular e ao final, sempre votam a favor dos projetos de mineração devastadores. Isso é injustiça que clama aos céus! É uma casa de horrores!
Secretaria de meio ambiente pró mineradoras
A missão da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), por lei, é “garantir a sustentabilidade”, mas decidem sempre pró-mineração e contra a sustentabilidade.
Em uma reunião que autorizou a retomada de mineração na Serra da Piedade, em Caeté, ao lado de Belo Horizonte, uma representante da Secretaria de Governo (SEGOV) chegou ao absurdo de dizer que “princípio da precaução não tem poder de barrar mineração”. Indignado, eu disse que já vi várias decisões judiciais impedirem e suspenderem mineração alegando o princípio constitucional da precaução.
Perseguição
A ex-superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em Minas Gerais, a museóloga Célia Corsino, disse em Audiência Pública na ALMG, que “jamais daria anuência do IPHAN-MG ao projeto de mineração na Serra da Piedade”. Logo depois, Célia Corsino foi exonerada da Superintendência do IPHAN, em MG, pelo Governo Federal de Jair Bolsonaro.
Júlio Grillo, ex-superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em Minas Gerais, foi exonerado pelo desgoverno federal um dia após ele votar contra a retomada da mineração na Serra da Piedade.
Os crimes e tragédias não são apenas da mineradora Vale, mas também do Estado, porque os licenciamentos ambientais são concedidos pelo Governo de Minas Gerais que, em conluio com o capital, se ajoelha diante do poderio econômico das grandes mineradoras. E assim, driblam todos os argumentos técnicos e jurídicos suficientes para não conceder licenciamento ambiental a empreendimentos extremamente devastadores socioambientalmente.
Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) decide sempre pró-mineração e contra a sustentabilidade
O Estado concede licenças ambientais para projetos devastadores e, pior, não fiscaliza. Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Mina Capão Xavier, da Vale, em Nova Lima, MG, uma funcionária da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), do Governo de Minas Gerais, disse: “A FEAM não fiscaliza. Nós apenas lemos os relatórios produzidos por funcionários das mineradoras”.
Por isso, o crime não é só da Vale, mas também do Estado que está acumpliciado ao capital desde que se iniciou há 300 anos mineração no estado de Minas Gerais.
Impunidade leva a novos crimes
A impunidade do crime na bacia do Rio Doce alimentou a construção de outros crimes como o da Vale, a partir de Brumadinho e alcançando toda bacia do Paraopeba. Com o passar do tempo, rastros de morte vão sendo percebidos e se avolumando.
As águas da bacia do Rio Paraopeba garantiam 50% do abastecimento público de Belo Horizonte e região metropolitana. A COPASA investiu R$ 130 milhões para captar água do Rio Paraopeba em uma grande obra inaugurada em dezembro de 2015, prometendo que a obra garantiria o abastecimento de BH e região metropolitana pelos próximos 25 anos. Tudo isso foi perdido.
E agora, onde arrumar água para garantir o abastecimento de cinco milhões de pessoas de Belo Horizonte e região metropolitana? A nova captação de água que a Vale está fazendo no Rio Paraopeba, acima de Córrego do Feijão, na comunidade de Ponte das Almorreimas, em Brumadinho, além de estar sacrificando impiedosamente várias comunidades e aumentando a devastação ambiental, não garantirá o abastecimento de BH e RMBH por muitos anos.
A impunidade do crime em Mariana alimentou a construção de outros crimes como o da Vale em Brumadinho
Onde há muito minério há também muita água. O Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, é também um Quadrilátero Aquífero. Os lugares onde as mineradoras se instalam eram paraísos naturais, mas após a chegada das mineradoras iniciou-se um processo absurdo que sacrifica no altar do deus mercado a dignidade humana e a dignidade da mãe terra, da irmã água, da flora e da fauna.
Bento Rodrigues, por exemplo, era um ‘paraíso na terra’, mas após a mineração da mina de Fundão, estava sendo abastecida por caminhões pipas, antes de ser devastada pelo crime da Vale/Samarco/BHP que aconteceu na tarde do dia 05 de novembro de 2015 e continua impune e matando de muitas formas. Em um instante, 19 vidas de seres humanos foram ceifadas. Pior, dezenas de pessoas, em 5 anos, já morreram vítimas das consequências dramáticas daquele crime hediondo e ecocida.
Tripudiando sobre as vítimas
Tripudiando sobre as vítimas, o Governo de Minas já autorizou o retorno da mineração da mineradora Vale/Samarco/BHP em Mariana, aprovou a construção da barragem de Maravilhas 3, da Vale; o alteamento da Barragem da mineradora Anglo American, em Conceição do Mato Dentro à revelia da Lei “Mar de Lama”, de iniciativa popular, aprovada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais – Lei Estadual nº 23.291/2019.
No Brasil, há mais de 24 mil barragens: de água para irrigação, de rejeitos de mineração com lama tóxica ou de água para geração de energia em hidrelétricas. As barragens de hidrelétricas são feitas de concreto com ferro e aço, mas as barragens de rejeitos minerários são apenas uma montanha de lama com calços quebradiços.
Mais de 700 grandes barragens são de rejeitos minerários, sendo que 70% destas estão em Minas Gerais, mais de 460. Desde a década de 1970, volta e meia, alguma barragem de rejeitos minerários tem se rompido. Em Minas Gerais, houve vários rompimentos de minerodutos. O Minas-Rio, por exemplo, que consome diariamente água que dá para abastecer uma cidade de 230 mil pessoas e transporta o equivalente a 1.600 carretas de minério por dia.
As nossas montanhas estão sendo arrancadas e vendidas pela metade do preço de banana e, pior, todas as nascentes, rios e os lençóis freáticos estão sendo sacrificados. As condições objetivas de vida estão em exaustão e colapso nos territórios sob a sanha das mineradoras.
Recentemente houve mais uma operação do Ministério Público de MG, com o apoio das Polícias Militar e Civil, visando combater a atuação de uma associação criminosa estruturada para facilitar a concessão de licenças ambientais no âmbito da Superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram) na Zona da Mata mineira, vinculada à SEMAD. As investigações até então realizadas apontam para o pagamento de propinas a funcionários públicos e a falsificação de documentos e relatórios em processos administrativos de licenciamento ambiental.
Opressores da Bíblia e de hoje
Na Bíblia, o profeta Miqueias mostra que a riqueza de quem se enriqueceu se baseia na miséria de muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo. Denuncia Miqueias:
“Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles”, Miqueias 7,3-4.
Os opressores dos tempos bíblicos, atualmente são os diretores, executivos, acionistas da mineradora Vale e todos os seus vassalos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Na Bíblia, no livro do Êxodo se diz que o Deus da vida, para forçar a libertação do povo escravizado, enviou dez pragas sobre os faraós – com coração endurecido – do imperialismo do Egito que superexplorava o povo. A 1ª praga é narrada em Êxodo 7,14-24: “transformou o Rio Nilo em sangue. Todos os peixes morreram. O rio ficou poluído e morto. Os egípcios não podiam beber mais da água do rio”.
Depois da 1ª praga, as seguintes eram gradativamente piores, até o povo superescravizado conquistar a libertação, com a travessia do mar vermelho.
Quantas barragens ainda precisarão romper e mais quantos crimes acontecer para que as autoridades ouçam os clamores do povo, da mãe terra, da irmã água e de todos os seres vivos?
Sobre o autor:
Frei Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; mestre em Ciências Bíblicas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares.
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