A atual naturalização neoliberal da pobreza no Brasil e a postura da Igreja católica, com a palavra Glaucon Durães da Silva Santos

A ação evangelizadora da Igreja precisa do necessário cultivo da consciência crítica. Boa vontade é importante, mas não basta. É preciso reflexão ético-humanista e leitura crítica da realidade. A caminhada da Igreja na América Latina confirma a importância incontornável do esforço teórico da mediação analítica, que busca compreender criticamente a realidade em que se vive e onde o Evangelho do Reino será testemunhado e anunciado. Entre os critérios decisivos do dinamismo atuante do Reino de Deus presente entre nós está a defesa da vida em plenitude para todos (cf. Jo 10, 10) e da dignidade da pessoa humana, dos filhos e filhas de Deus. Nesse sentido, o combate à desigualdade social e dos mecanismos de exclusão da mesa da cidadania revela-se estruturante e mesmo fundamental para concretizarmos avanços para uma “outra sociedade possível”: justa, solidária e garantidora da vida digna para todos.

Confira a pertinente reflexão do jovem mestrando em Ciências Sociais pela PUC Minas e membro da equipe de colaboradores jovens do Observatório da Evangelização, Glaucon Durães da Silva Santos:

A postura da Igreja Católica frente a naturalização neoliberal da pobreza no Brasil

Após as últimas duas grandes crises internacionais do sistema de produção capitalista, a saber, a crise imobiliária dos Estados Unidos, em 2008, e a troika na União Europeia, em 2010, que geraram desemprego, pobreza e desigualdade, o mundo passa, em 2020, por uma hiper crise humanitária provocada pela pandemia da covid-19. Para além das mais de 800 mil mortes em todo o globo e das mais de 130 mil mortes no Brasil, a pandemia tem provocado uma recessão econômica mundial que tende a ampliar a desigualdade social em todas as suas formas. Porém, no caso do Brasil, não se pode responsabilizar absolutamente o novo corona-vírus pelo crescimento da pobreza e da miséria neste início da década de 2020. Este fenômeno, no país, precede a pandemia, mas se aprofunda diante da naturalização da pobreza impulsionada pelo neoliberalismo dominante nos governos dos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro e nas duas últimas legislaturas do Congresso Nacional, como apontarei adiante.

Na contramão deste movimento de naturalização da pobreza, que pode ser reconhecido em vários governos dos países da América Latina, estão a luta dos movimentos populares e a Igreja Católica, em especial, sob o pontificado de Francisco que vem sistematicamente denunciando a globalização da indiferença. O papa Francisco, de maneira inédita, já se reuniu três vezes com os representantes dos movimentos populares do mundo inteiro, oportunidades em que enfatizou a importância das proféticas lutas travadas contra a exclusão social, a fome e a miséria. A Igreja católica, por meio de suas pastorais sociais e das inúmeras ações evangelizadoras, juntamente com outras instituições, assume como missão acolher, solidariamente amparar, denunciar a falta de políticas públicas e apoiar a luta dos pobres contra a pobreza. Recordemos que no Brasil, a Igreja iniciou o ano de 2019 com a Campanha da Fraternidade: Fraternidade e Políticas Públicas; cujo lema foi: “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27). Em Roma, o Sínodo da Amazônia (2019) encerrou-se com a reafirmação do Pacto das Catacumbas, um pacto simbólico de opção pelos pobres, realizado por um grupo de bispos, entre eles dom Helder Câmara, durante o Concílio Vaticano II (1965).

Embora o papa Francisco seja apontado por católicos entreguistas e católicos conservadores como comunista, talvez devido a sua proximidade com a Teologia da Libertação, percebe-se que a postura deste tem mais a ver com a mensagem do Evangelho e com a Doutrina Social da Igreja, do que com o comunismo. Além disso, importa dizer que a Teologia da Libertação não se originou do materialismo histórico dialético marxista, mas sim da experiência de fé que foi capaz de contemplar a face de Jesus crucificado no rosto de cada ser humano empobrecido mergulhado na dor da exclusão e a presença do Espírito Santo na luta dos próprios empobrecidos contra a pobreza. Nesse sentido, a opção pelos pobres não nasce da concepção moderna da luta de classes, mas sim da coerência com a experiência de Deus consignada na Bíblia, seja na experiência dos profetas, seja na vida e nos ensinamentos do Filho de um carpinteiro da Galiléia, que nasceu em uma manjedoura, que viveu entre os pobres e que, por testemunhar-anunciar a alegria esperançada da presença do Reino de Deus no meio de nós como fermento da justiça, da partilha e da fraternidade, foi condenado e crucificado entre ladrões.       

Na esfera da política nacional, a pobreza geralmente é entendida como resultante de carências múltiplas. Foi um dos principais temas presentes na agenda brasileira na década de 2000, segundo os cientistas sociais brasileiros, Lilia Montali e Luiz H. Lessa [1]. Estes afirmam também, que a política de recuperação do salário mínimo, as medidas de recuperação do emprego e a política de transferência condicionada de renda, promovidas no governo Lula (2003-2011), foram as políticas sociais com maior impacto na redução da pobreza, apesar da permanência da desigualdade social.

É importante ressaltar que a responsabilidade do Estado no combate à pobreza e as desigualdades sociais é uma prática moderna. Sua origem remonta às lutas liberais e comunistas, pela aquisição de direitos civis, políticos e sociais, ocorridas na Inglaterra entre os séculos XVIII e XX. Seu legado, para o sociólogo inglês T. H. Marshall [2], é o surgimento da cidadania, um status de pertencimento a uma sociedade nacional.

Estas conquistas estão inseridas no contexto da formação da sociedade ocidental moderna, cuja característica central para o sociólogo alemão Max Weber, é o fenômeno da racionalização [3]. Neste novo arranjo social, as relações sociais passaram pelos processos de burocratização e secularização. Também, o poder secular (do Estado) separou-se do poder religioso (da Igreja) e várias atividades desenvolvidas, até então, pela Igreja Católica, tais como educação, saúde e assistência social, passaram a ser de responsabilidade do Estado.

No Brasil, a responsabilização do Estado para com a pobreza se deu tardiamente, apenas a partir da Constituição cidadã (1988) e seus dispositivos sociais. Para a socióloga brasileira Lea G. Souki [4], isso aconteceu porque as elites brasileiras, diferente das elites inglesas analisadas por Marshall, não desenvolveram uma consciência de interdependência social, não se deram conta de que a pobreza prejudica toda a sociedade. Ainda segundo esta socióloga, as ações do Estado brasileiro visando a diminuição das desigualdades sociais ocorreram a partir da década de 1990, com a estabilização econômica gerada pelo Plano Real e com as pressões das lutas internacionais pelo combate à fome e à miséria.

A Constituição de 1988, nascida do clamor progressista de amplos setores da sociedade brasileira, em especial da Igreja Católica por meio de suas pastorais sociais e das Comunidades Eclesiais de Base, fundou no Brasil, o conceito de Estado do Bem Estar Social, cujo legado inaugural veio no seu artigo 196, que instituiu a universalização do acesso à saúde pública a todos brasileiros via Sistema Único de Saúde. O SUS é atualmente o maior plano público de saúde no mundo, em termos de número de atendimentos e de especialidades oferecidas. Porém, a continuidade desse processo de expansão de direitos sociais só ocorreu na década de 2000, a partir das políticas públicas dos governos petistas. Estes, compreenderam que o combate à pobreza era um dever do Estado. Várias políticas públicas fragmentadas, iniciadas nos governos Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), como o Vale Gás e o Bolsa Escola, foram especializadas e integradas nacionalmente no Programa Bolsa Família.

A década de 2000 e a primeira metade da década de 2010 foram marcadas pela desnaturalização da pobreza e a união de esforços para o combate às desigualdades sociais. O Estado, compreendendo que a pobreza tem origens históricas, assumiu para si, efetivamente, como responsabilidade sua, o combate da mesma. Programas como o Bolsa Família, o Fome Zero e o Brasil sem Miséria sistematizaram, em formato de políticas públicas, práticas de ação social e de assistência social, antes apenas realizadas pelas pastorais católicas e por campanhas independentes, como a “Ação da Cidadania”, do sociólogo Herbert José de Sousa (Betinho).

No fim da década de 2010, porém, o Estado brasileiro – por meio de medidas neoliberais, como os cortes em políticas públicas de saúde, educação e distribuição de renda, e as reformas econômicas – tem tirado a sua responsabilidade sobre o combate às desigualdades sociais, naturalizando a pobreza e a empurrado para o campo do assistencialismo e da esmola. A Reforma Trabalhista do governo Temer (2015-2018), por um lado, intensificou a geração de trabalho precário a partir da extinção de vários direitos trabalhistas, e por outro, não representou um impacto sobre a geração de emprego como havia prometido. A Reforma da Previdência do governo Bolsonaro (2019-…) vem precarizando e dificultando o acesso à aposentadoria e afetando principalmente os mais pobres, a juventude e os servidores públicos de baixo escalão.

Apesar da euforia dos grandes jornais e telejornais brasileiros ao noticiarem os constantes recordes batidos pela Bolsa de Valores de São Paulo a cada avanço das reformas dos governos Temer e Bolsonaro, dados de pesquisa socioeconômica do IBGE (2019) demonstram que desde 2015 há um significativo avanço da pobreza e da extrema pobreza no Brasil. Mediante os resultados negativos, os mesmos jornais eufóricos com os avanços da reformas, noticiam com perplexidade, em novembro de 2019, que o número de pessoas em situação de extrema pobreza saltou de 9,03 milhões em 2014 para 13,5 milhões em 2018 [5]. Porém não se são apresentadas, juntamente, as várias críticas ao modelo econômico neoliberal de privatizações, cortes, extinções e arrefecimentos de recursos para políticas públicas sociais, adotado pelo governo federal.

É possível identificar, portanto, a posição e a divergência de posição, entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica, em relação ao problema da pobreza, da fome e da miséria. De um lado, o atual presidente Jair Messias Bolsonaro, querido por amplos setores religiosos pentecostais, neopentecostais e católicos brasileiros, afirmou em sua primeira entrevista a jornais internacionais (19/07/2019) que: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”. De outro lado, o papa Francisco, querido por religiosos e não religiosos de todo o mundo, em sua mensagem para o Dia Mundial dos Pobres (17/11/2019) – “A esperança dos pobres jamais se frustrará” [6] – destaca o espírito cristão católico de compromisso e respeito com a dignidade de cada pessoa humana.

Glaucon Durães

Glaucon Durães da Silva Santos é jovem cristão católico, mestrando em Ciências Sociais pela PUC Minas, é membro da equipe de colaboradores jovens do Observatório da Evangelização PUC Minas.


[1] MONTALI, Lilian; LESSA, Luiz. H. Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras. Cd. Metrop, São Paulo, v.18, n. 36, p. 503-533. 2016.

[2] MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Zahar. Cap. III Cidadania e Classe Social, p. 57-114.1967.

[3] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Presença, ed. 9, Lisboa, p. 11-27. 2016.

[4] SOUKI, Lea, G. A atualidade de T. H. Marshall no estudo da cidadania no Brasil. Civitas, Porto Alegre, p 39-58. 2006.

[5] In: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/11/06/crise-levou-45-milhoes-a-mais-a-extrema-pobreza-e-fez-desigualdade-atingir-nivel-recorde-no-brasil-diz-ibge.ghtml

[6] In: http://caritas.org.br/mensagem-do-papa-francisco-para-o-iii-dia-mundial-dos-pobres-que-sera-celebrado-no-17-de-novembro-de-2019-dia/4212