Na minha rua há um prédio em construção. Os operários estão lá, sem máscara, batendo a terceira laje. A obra fica a dois quarteirões da minha casa, em frente a um antro de perdição chamado “Bolo da Hora”. Há pouco, fui até lá buscar um bolo de fubá que encomendei por telefone.
Estava no portão, esperando a mocinha que me atendeu trazer o bolo (não se pode entrar na loja), quando uma gritaria na rua me assustou. Ato contínuo, um negão forte como um touro sai correndo do canteiro de obra e passa por mim feito um buscapé, desaparecendo na esquina. No parapeito da obra, os outros operários gritam entre gargalhadas.
Não entendi nada, mas a moça que me entrega o bolo sorri por trás da máscara e diz; papagaio…
Ainda estou tentando decifrar o mistério quando o negão surge na esquina, um sorrido imenso brilhando no rosto, trazendo nas mãos, intacta, uma bela e colorida pipa. A obra vibra com os aplausos da plateia.
Que coisa…
Operários gastando a vida no trabalho bruto, lidando com cimento, tijolo, pedra, cavando alicerces e subindo paredes, desafiando andaimes e vírus, e assim, de repente, se redescobrem meninos correndo atrás de um papagaio.
Reconheço neles o moleque que fui, empinando pipas do alto do morro onde hoje está a favela da Pedreira Prado Lopes.
O cheiro gostoso do bolo que trago nas mãos, o papagaio nas mãos do operário, a tarde que cai, tudo me fala de ausências, de desejos de alegrias sufocadas pelo isolamento social. Numa lufada de vento frio, Rubem Alves sussurra aos meus ouvidos…
“Desejo: reconhecer que algo está faltando. Saudade…
Espiritualidade tem algo a ver com isto: viver em meio à presença de uma ausência.
É daí que surge tudo que de belo fazemos: o amor, a poesia, os jardins, a música, as revoluções.
Tudo.
Fazemos essas coisas para completar esse pedaço que está faltando.
Somos espirituais por causa disso: do meu corpo sai uma canção, um suspiro, um desejo, uma saudade de algo que não encontro e penso que sinto, no vento, no cheiro das coisas.
Desejo: somos espirituais por causa do desejo…”
e da saudade…
Naqueles homens embrutecidos pelo trabalho braçal havia latentes desejos de infância.
Em mim, ressoa a falta de beijos e abraços…
Aquele papagaio voando nas alturas era uma metáfora perfeita dos nossos desejos que, aprisionados à terra, endurecidos como cimento misturado à brita se fazendo piso e teto, sonham com horizontes e nuvens.
O bolo me fala de mesa, encontro, partilha, convívio…
Na alegria daqueles homens se encerrava a compreensão de um dos maiores mistérios que me foi revelado: Deus é alegria e mora na criança alegre que fui, que tento continuar sendo (mas como é difícil…).
Talvez por isso Jesus tenha dito: “se vocês não se tornarem como crianças, com coração de criança, não entrarão no Reino dos céus”…
Deus é uma criança, em mim, em todos, sempre procurando companheiros e companheiras para compartilhar um bolo, e brincar.
Simples assim.
Para crer, esperar e amar, é preciso aprender a brincar de voar…
Eduardo Machado
01/07/2020
Sobre o autor:
Eduardo Machado é educador e escritor apaixonado pelo ser humano. Considera-se um católico que tenta, cada dia mais, tornar-se cristão. É colaborador do Observatório da Evangelização PUC Minas.