Gente querida, que tempo novo estamos vivendo, já se deram conta de que mexeu com tudo na vida, mas mexeu demais com nosso jeito de rezar, de orar, de oferecer a vida ao sagrado? Então, vamos conversar um pouco sobre isso?
Interessante que nos fez repensar o que é sagrado. Talvez muitas pessoas colocavam a ideia de sagrado apenas dentro dos templos, dos terreiros, das tendas, dos seus recantos sagrados.
E o convite-convocação que nos chega nesse momento é repensarmos. Mas será que tem a dimensão sagrada em outros espaços? Com isso estamos ressignificando o que entendemos como espaço sagrado, como templo sagrado, como tenda sagrada. Inicialmente, logo no início desse período de isolamento social, vimos as comunidades tentando re-criar em cima do que já conheciam. E com isso, sabem o que está acontecendo? É lindo demais. As comunidades foram voltando às suas origens, às suas fontes, para reencontrar com o que é espaço sagrado para cada uma delas.
Então, o que temos? Temos o antigo-novo se integrando, num dinamismo lindo de fidelidade-continuidade-criação, próprio do espírito divino vivo que sopra onde quer desde sempre.
É antigo porque as comunidades estão retomando experiências deram origem às suas práticas religiosas, sagradas. É novo porque ao olhar para a fonte, cada comunidade revê, ressignifica com o cuidado de não perder o essencial de suas origens.
O Sagrado em cada um de nós
É o Espírito soprando… com seu vento renovador, revolucionário, criador do novo… ele sopra e nos atinge em muitas dimensões. Trago aqui algumas que consigo sentir e perceber sinais de Sua Presença.
A primeira dimensão que estamos tocando, é a da presença do Sagrado em nós mesmos, ao encontro com o sagrado no profundo de cada um de nós. Cada pessoa, cada homem, cada mulher, cada ancião, cada criança… Voltamos às origens do encontro com o sagrado, com o vínculo que nos reuniu, nos precede e nos orienta. Nos tornamos reverentes ao sagrado que habita em cada ser humano e em nós mesmos.
Nas redes digitais temos visto pessoas relatando como tem se dado essa descoberta. É, no fundo, a experiência da percepção consciente da presença do Mistério divino. É uma experiência mística, de quem se sente habitado pelo divino e vivencia um sentimento único de realização de seu próprio ser e do sentido do viver. Para a espiritualidade cristã, se trata da autocomunicação de Deus com seus filhos e filhas.
O Sagrado na natureza, nos acontecimentos, nas pessoas
Só que não ficamos só nisso não… vamos alargando essa experiência e percebendo o sagrado não apenas nos seres humanos, mas também cada animal, cada planta, cada pedaço de chão, cada pedra, cada ser estelar, cada gota de água, cada chama de fogo… enfim, tudo é vida, tudo é sagrado, e tudo se move.
Essa é a segunda dimensão que vai sendo re-descoberta nestes tempos de isolamento das comunidades religiosas que se encontravam em seus templos, tendas, terreiros… É a presença do Sagrado na natureza, nos acontecimentos, nas pessoas.
Um teólogo amigo chamado João Batista Libanio nos diz em uma de suas reflexões: “A natureza, em sua condição de reflexo do Criador, tem sido o lugar do encontro com Deus”.
Nesses tempos tão difíceis para nós, seres humanos, temos também contemplado a Criação e ela nos brinda a cada dia com sua harmonia, como se estivesse em festa diante do repouso que essa pandemia acabou oferecendo a ela. Podemos contemplar, tocar, sentir, cuidar dos campos, flores, plantas, animais, solos, ar e aprender a admirar a harmonia das criaturas da natureza. Talvez estivéssemos distraídos e, como crianças, estamos sendo reapresentados ao mundo como espaço privilegiado do sagrado.
Ao mesmo tempo, essa terra é redescoberta como lar, como casa de todos nós, como Casa Comum, como nos alerta papa Francisco. Olharmos de novo para a Laudato Si‘, neste momento, é também nos darmos conta de que a profecia já estava aí, mas tantas vezes somos lentos em nossos corações e práticas na com+vivência com a Casa Comum.
E tem mais, já perceberam que ainda nessa dimensão, estamos nos abrindo para novos relacionamentos? Alguns se tornam ainda mais próximos na com+vivência, outros, ainda mais distantes, mas que nos convocam a prestarmos atenção a cada detalhes, a uma atenção sensível.
E os fatos cotidianos? Política, economia, mídias? Nossa, uma avalanche que nos pega a cada momento, alguns nos surpreendendo, outros nem tanto. Mas também nos chegam como convites a revermos nossas vidas e escolhas. A Casa Comum é a casa de todos nós, sem divisões e fronteiras que nos isolem.
O sentimento de sororidade e de fraternidade ecoa em cada ser, em cada coração, ele pode ser tocado, é palpável, a cada dia.
O Sagrado nas comunidades de fé e a dimensão da Eucaristia
Mas… como estão as comunidades? Elas também estão se reinventando? Com isso entramos numa terceira dimensão que desejamos trazer nessa pequena reflexão. Se trata de confirmarmos a presença do Sagrado nas comunidades de fé.
Pois é, não é que também as comunidades religiosas, nos mais diversos recantos do mundo, descobriram formas de que os encontros pudessem permanecer vivos e alimentadores da vida?
E ainda mais. As comunidades abriram suas portas virtuais para a acolhida de quem necessita de apoio, aconchego, força espiritual, escuta e silêncio, abraços virtuais. As comunidades possuem uma força espiritual amorosa. Elas se tornam, neste tempo tão difícil, chão que fecunda vida nova. Espaços de escuta, de superação e alimento. Elas são a própria sustentação da energia amorosa sagrada que tudo conecta, que cuida, supera e renova todo o cosmos.
Nesse ponto de nossa reflexão, poderíamos ousar caminhar pelos encontros de muitas comunidades religiosas, de muitos novos templos sagrados que foram construídos na realidade virtual mas, aqui pensando com meus botões, pensei que não seria apropriado trazer à tona experiências de outros universos religiosos que não ao que pertenço. Por outro lado, estou observando que as comunidades cristãs que se reuniam em torno da Eucaristia, estão meio perdidas… então, vou propor uma reflexão sobre essa dimensão para as comunidades cristãs, especialmente as comunidades católicas. Muitas comunidades católicas, acostumadas a centrar sua experiência religiosa no encontro em torno do altar, da mesa do Senhor e no domingo, no dia do Senhor, estão com dificuldade de abraçar o sentido mais profundo da Eucaristia. Daí que proponho darmos mais alguns passos nesse sentido…
Para as comunidades cristãs, a liturgia cristã é um eixo, uma referência, como diz um documento fundamental para a Igreja, um dos documentos do Concílio Vaticano II: a Constituição Sacrosanctum Concilium:
“A liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de que promana sua força. A liturgia renova e aprofunda a aliança do Senhor com os homens, na eucaristia, fazendo-os arder no amor de Cristo. Dela, pois, especialmente da eucaristia, como de uma fonte, derrama-se sobre nós a graça e brota com soberana eficácia a santidade em Cristo e a glória de Deus, fim para o qual tudo tende na Igreja.(SC10).
Então, vejamos com é ampla a liturgia para a comunidade cristã. Creio que vale à pena nos aproximarmos mais uma vez do sentido da Eucaristia. Quando pensamos nesse termo – eucaristia – podemos mergulhar no seu significado – ele reúne a comunidade eclesial, todo o povo santo e sacerdotal, para celebrar a vida, paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus. É memorial, celebração do Mistério Pascal.
- É uma celebração,
- uma celebração da comunidade de fé,
- uma celebração daqueles que se reúnem com Jesus Cristo para fazer memória de sua vida, morte e ressurreição.
A Eucaristia não se reduz à mesa do Pão, ela é uma ação-litúrgica e sacramental. Nesta ação se integram as muitas formas da presença de Jesus Cristo – na assembleia reunida, na Palavra proclamada e partilhada, no Pão e vinho consagrados e partilhados. Na Celebração Eucarística há, portanto, uma relação entre a comunidade, a mesa da Palavra de Deus e a mesa do Pão. Como nos recorda mais uma vez o Concílio Vaticano II, na Dei Verbum, “a Igreja sempre venerou as divinas Escrituras, da mesma forma, como o próprio corpo do Senhor” (DV 21).
A mesa da Palavra de Deus
Então, gente, neste momento no qual estamos em nossas casas, como podemos experimentar essa dimensão da experiência litúrgica e sacramental.
Sim, estamos reunidos, como comunidade de fé, em nossos templos sagrados e, juntos, podemos proclamar a Palavra, ouvir profundamente, deixar ressoar em nossas vidas, dialogar sobre nossa escuta e compreensão, e rezar sob sua inspiração.
Não estamos partilhando do pão e vinho consagrados, portanto, uma das dimensões fundamentais da Celebração Eucarística, para a comunidade cristã católica não está sendo experimentada: a mesa do Pão. Mas aqui temos uma observação fundamental, cada uma dessas ações litúrgico-sacramentais carrega o sentido profundo da Eucaristia. Pensemos um pouco mais sobre essa experiência.
Nas Celebrações Eucarísticas, nos reunimos em comunidade, portanto, em assembleia eucarística e em torno de duas mesas: a mesa da Palavra e a mesa do Pão. As duas mesas nos alimentam, nas duas mesas somos conduzidos, pela graça de Deus, ao coração do mistério pascal, e ao nosso discipulado a Jesus Cristo.
Uma mesa conduz à outra mesa. Elas são dialógicas.
Nesse momento, é verdade que estamos carentes de uma das mesas, e podemos sentir falta da partilha na mesa do Pão. Mas será que andamos esquecendo da Mesa da Palavra? Ela é a preciosidade que nos conduz, nos alimenta, nos sustenta e nos orienta. A Palavra é Deus mesmo falando à comunidade reunida, como nos lembra nossa amiga liturgista Ione Buyst e, nessa experiência, algo grandioso acontece: libertação, salvação, comunhão.
Ainda trazendo a fundamentação a partir dos documentos da Igreja, é a Constituição Sacrosantum Concilium que nos orienta:
“Quanto mais a palavra de Deus for oferecida aos fiéis, maior acesso terão aos tesouros da Bíblia. Por isso, deve-se ler uma parte bem maior das Escrituras, nos espaços litúrgicos que lhe são reservados cada ano.”(SC51)
A mesa da Palavra é demais, gente. Participando dessa mesa cada pessoa, e toda a comunidade recebe e partilha desse alimento. Encontramos ecos da Palavra em nossas vidas, em nossos corações, em nossa realidade. Nos sabemos em comunidade, como Povo de Deus que se coloca a caminho e se deixa conduzir pelo Mistério que se revela. A Palavra é dabar, é viva, dinâmica, é reveladora e, ao mesmo tempo, mediadora.
Então, com isso podemos dar mais um passo ainda nessa reflexão. Quando a comunidade se reúne em torno da mesa da Palavra, a comunidade é constituída pela Palavra.
Percebem como isso é um eixo fundamental? A comunidade que é constituída pela Palavra é também uma comunidade que se torna testemunha da Palavra, é uma comunidade sacerdotal, que conduz e dá testemunho.
Então, não tenhamos mais dúvidas com relação à relevância da mesa da Palavra – como dimensão da eucaristia é a Revelação viva de Jesus no meio de nós. Ele se oferece, transborda seu amor por palavras e ações. É, mais uma vez, o Senhor cuidando de cada um de nós amorosamente, misericordiosamente, e também nos enviando a cuidar dos irmãos e irmãs, nos enviando em missão. A Palavra que é ouvida é semeada, e dá frutos.
Nestes tempos, partilhemos de tantas dimensões do sagrado que vamos re-descobrindo e são tão preciosos, são tesouros que já estavam em nossas mãos mas, às vezes, esquecemos de dar valor. Como terra que somos e na qual habitamos, o sagrado nos alimenta de todos os lados.
Lembramos o diálogo entre Jesus e a samaritana, à beira do poço. A narrativa nos convida a re-ver tantos conceitos sobre templo, sobre o lugar sagrado, e nos conduz ao encontro do sagrado dentro de nós, nas irmãs e irmãos, na natureza, na história.
Quem sabe esse é um momento privilegiado, um momento no qual a graça que nos conduz sem cessar, nos leva para dentro de nossos corações, de nossos lares, de nossas comunidades, e nos diz que Deus está aí, onde nosso coração estiver, onde reina o Amor.
Ilustrações: Bianca Ortega
Sobre a autora:
Rosemary Fernandes da Costa é doutora em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2008); mestra em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003); bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1984). Atualmente é professora de Cultura Religiosa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e de Filosofia da secretaria de Educação do RJ. É criadora e coordenadora do curso de Pedagogia da Fé, no Centro Loyola de Fé e Cultura e na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Assessora da CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) e da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), de agentes de pastoral e formadores na área de Iniciação Cristã, Catequese e Catecumenato. Participa do GT de Espiritualidades e Saúde da Abrasco. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Pedagogia da Fé, atuando principalmente nos seguintes temas: mistagogia, evangelização; atuação pastoral; teologia; catequese, pedagogia da fé, teologia fundamental e iniciação cristã, ética e direitos humanos, espiritualidades e saúde, e fenomenologia das religiões. Membro do grupo Emaús. É autora, dentre outras obras, de: Mistagogia hoje – O resgate da experiência mistagógica dos primeiros séculos da Igreja para a evangelização e catequese atuais (Paulus/ 2014); A mistagogia em Cirilo de Jerusalém (Paulus/ 2015);
Referências:
ALDAZÁBAL, J. A mesa da Palavra I: Elenco das leituras da missa. São Paulo: Paulinas, 2007.
BUYST, I. A Palavra de Deus na liturgia. São Paulo: Paulinas. 2009.
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, 1965
_________________. Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina, Documentos do Vaticano II, 1965, Petrópolis: Vozes, 1966
LIBANIO, J. B. Eu creio, nós cremos. São Paulo: Loyola, 2000
PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si. Sobre o cuidado da casa comum. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2015.
Fonte: