“Parede-meia”, meditação para o domingo da Trindade

Se tem uma coisa que não combina comigo é esse tal de isolamento social. Cumpro, por respeitar as orientações e conselhos de quem de direito, mas me rasgo por dentro de vontade de reencontrar, abraçar e beijar os queridos e queridas que fazem parte da minha vida que ficou lá fora.

A pandemia me pegou de jeito, ferindo meu direito e desejo, não só de ir e vir, mas de ser, estar e ficar com os outros, com o agravante de ver o pior dos vírus, o da estupidez, que vem a pé, de helicóptero e volta a cavalo, para zombar do nosso sofrimento.

Gosto de gente. Desde muito cedo aprendi que quem nasceu pra viver é planta. Você planta a muda, a semente, nasce uma árvore, um arbusto que seja, e ali vive. Gente, não. Gente é pra conviver. Nossas raízes são pernas de ir encontrar e braços de abraçar. Sem falar das raízes dos olhos, do nariz, dos ouvidos, do paladar.

Nossos sentidos são raízes que se entrelaçam com as raízes dos sentidos dos outros formando esses oásis, lugares de encontro e repouso dos afetos, que chamamos de família, amigos, colegas de trabalho, partidos políticos, igrejas e times de futebol.

Conviver tem a ver com felicidade. É uma das minhas poucas e preciosas certezas absolutas. Todo mundo quer ser feliz. Fazemos nossas escolhas, das banais às fundamentais, em qualquer idade, realidade, lugar e circunstância, movidos pelo desejo de felicidade. E o quê a vida já me ensinou sobre essa tal felicidade? Quais foram os momentos mais felizes da minha vida até agora?

E da sua?

O jeito é buscar respostas no sexto sentido…

Todo mundo já ouviu essa expressão, “sexto sentido”, mas qual seria ele?Em geral, o identificamos com a intuição, o pressentimento, a sensibilidade para perceber o “mais” que se esconde na banalidade das coisas e pessoas com as quais interagimos no cotidiano. Pode ser. Mas tenho por mim e para mim que o sexto sentido é, na verdade, a memória.

A memória humana é um prodígio. Ela é capaz de arquivar experiências das quais sequer chegamos a fazer um registro consciente. Não conhece limites de tempo e espaço. Enquanto a memória dos computadores pode ser medida em megas, gigas, tera bytes, a memória humana é um oceano do qual não visualizamos começo, meio, nem fim.

Lembrar é sonhar acordado. Alcança a memória intrauterina e vai além, pois há quem creia em memórias de vidas passadas.

Parte da memória pessoal e abraça a memória coletiva, do meu mil avô, provocando o exercício da esperança, que é a memória aí contrário, lembrando e desejando o que virá.

Tenho pensado muito nas pessoas com quem gostaria de estar, conversar, ver passar o tempo que se registra para além dos relógios. Ao lembrá-las, trago à memória momentos, palavras e sentimentos. São fotografias arquivadas não sei onde em mim, que aparecem na tela das lembranças sem que eu tenha nenhum controle sobre esse projetor que me surpreende assim, do nada.

Não, nada é nada…

Em tudo há uma razão, um porquê.

A memória me mostra que, nos momentos mais felizes, eu nunca estive ou estou sozinho. Foram e são momentos em que vivo o amar e ser amado, das muitas formas que o amor tem de entrar na nossa vida. Confira na sua memória…

O amor é nosso berço, caminho e destino. E ele precisa do con-viver. Jorge Bergoglio, quando se tornou Francisco, abriu mão do isolamento dos apartamentos pontifícios e foi morar na casa Santa Marta, onde faz as refeições, todos os dias, com os funcionários e visitantes.

Seu patrão, o Deus em que creio, precisou ser três para ser Amor. Um Deus solidário não pode ser solidão. Mais que isso, olhou para nós, cheio de misericórdia e disse a si mesmo: “precisamos ir até eles…”.

Na encarnação Deus se faz encontro e convívio…

A minha memória, que não aceita ser isolada, hoje emana um suave perfume de melancolia. É que toda memória tem, como vizinha de parede-meia, a saudade. É só chamar qualquer uma delas e a outra vem junto.

Em algum lugar da minha memória, sinto saudade de você, que leu essa crônica…

Sobre o autor:

Prof. Eduardo Machado

Eduardo Machado é educador e escritor apaixonado pelo ser humano. Considera-se um católico que tenta, cada dia mais, tornar-se cristão. É colaborador do Observatório da Evangelização PUC Minas.

1 Comentário

  1. Lembrei de Santo Agostinho, nas “Confissões”: “Tudo isto realizo no imenso palácio da minha memória. Ali, eu tenho às minhas ordens o céu, a terra, o mar, com todas as sensações que pude perceber, com exceção das que já esqueci. Ali, me encontro comigo mesmo, e me recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, do estado de espírito em que estava, e dos sentimentos que me dominavam quando as praticava”.

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