A pandemia do Covid-19 trouxe a exigência do “ficar em casa” como medida de defesa da saúde coletiva, para que a circulação do coronavírus não leve o sistema de saúde a entrar em colapso diante da simultaneidade de um gigantesco número de doentes em situação emergencial. A triste realidade de um sistema de saúde coletivo colapsado infelizmente tem acontecido até em países considerados de primeiro mundo. Neste sentido, o sair em defesa do nosso Sistema Único de Saúde – SUS, denunciando aqueles que pretendem destrui-lo, deve ser visto como ação profética de defesa da vida. Temos acompanhado estarrecidos o cortejo de centenas de mortos, sendo enterrados, por medidas de segurança, sem os tradicionais ritos religiosos fúnebres, com o consolo da presença de familiares e amigos/as.
Quem já cultiva a centralidade do valor da vida e a corresponsabilidade social, enquanto balizas da postura ética, acolheu imediatamente e aderiu a esta medida emergencial, mesmo ciente de todos os impactos e consequências socioeconômicas previstas para um futuro imediato. A economia pode ser recuperada com esforços depois, mas as vidas ceifadas pela pandemia não. Foi o caso de muitas famílias, grupos, organizações da sociedade civil, universidades, escolas, empresas, estabelecimentos comerciais, religiões e igrejas reconhecidas por sua seriedade e cuidado com a vida. Digno de nota, foi o caso da Igreja particular de Belo Horizonte, pois a Arquidiocese colocou todos os seus templos à disposição do Poder Público para que estes, caso necessário, fossem transformados em hospitais de campanha.
Aqui objetiva-se refletir sobre os impactos e consequências da quarentena na dinâmica da vida eclesial cristã católica. Em primeiro lugar, os templos foram imediatamente fechados e cancelados os ritos e eventos coletivos já programados. Segundo, como aconteceu com os professores e professoras de muitas escolas e universidades, catequistas, agentes de pastoral, lideranças cristãs, seminaristas, diáconos, presbíteros, bispos e, de forma contundente, o papa Francisco, muito mais do que já vinham fazendo, prontamente, assumiram as mídias digitais como espaço e meio propício de evangelização e vivência da fé cristã. De tal modo o fizeram que se fala, com nuance inédita, de uma autêntica “Igreja virtual” ou, se quiser, de uma “Igreja em saída digital”. Todos estão experimentando, como sinal dos tempos, um chamado imperativo à capacitação e ao uso criativo das mídias digitais e suas capilares redes sociais.
Há, de fato, neste quesito muitas iniciativas criativas e inovadoras, outras nem tanto, mas, uma coisa pode ser afirmada sem sombras de dúvida: a ação evangelizadora da Igreja nunca mais será a mesma depois do fim desta pandemia. Além dessa constatação, que outras reflexões podem ser feitas?
I – O desafio utópico de se criar dinâmica eclesial na qual todos os cristãos batizados sejam, de fato, corresponsáveis na Missão
No Batismo, cada catecúmeno celebra o seu enraizamento na vida de Jesus (expressão da conversão a Deus), assumindo a perspectiva de uma vida nova. Esta fundada no compromisso do seguimento do Profeta da Galiléia, Jesus de Nazaré, acolhido na fé como Filho de Deus e o seu jeito de ser e viver como caminho de salvação. Trata-se, portanto, da responsabilidade e fidelidade para com o anúncio-testemunho do Reino de Deus no mundo e a busca diária de pautar a própria vida pelos valores do Evangelho: cultivo contagiante da dignidade e intimidade filial com Deus por meio da Palavra (Jesus encarna esta Palavra), amor fraterno-sororal, partilha de vida e dos bens, práxis da justiça, da inclusão social, da solidariedade, da misericórdia, do cuidado-resgate da dignidade da vida, sempre a partir dos mais pobres e vulneráveis… (busca de outra convivência humana possível). Pode-se dizer que estas duas dimensões formam a cruz do cristianismo (dimensão vertical e horizontal), o amor de Deus e a Deus no amor ao próximo, ao outro, ao mundo. No Batismo, assume-se, então, o compromisso de cultivar a vida cristã vivida em comunidades de fé no Deus da vida e partilha de vida com os irmãos e irmãs, na busca do bem conviver já aqui, enquanto sacramento do projeto salvífico universal de comunhão de todos em Deus.
Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica vem buscando recuperar a centralidade do Batismo e a corresponsabilidade dos fieis, homens e mulheres batizados, no seguimento de Jesus, na ação evangelizadora e no dinamismo da vida cristã enquanto fermento transformador no próprio seio da Igreja, na sociedade, no mundo.
Esta busca eclesial, mesmo quando nos alegramos ao reconhecer que passos concretos significativos já foram ou estão sendo dados nesta direção, ainda não se concretizou suficientemente. A maioria das pessoas adultas que se assumem como cristãos católicos infelizmente não foi suficientemente evangelizada, no sentido de ter consciência e experiência vivencial deste libertador e transformador amor gratuito de Deus por nós. Mais do que isso, poderíamos dizer que o contexto atual de crescente consciência da subjetividade, clama de forma ensurdecedora por uma profunda reforma da Igreja. Não é esta a perspectiva eclesial que o papa Francisco vem tentando impulsionar e concretizar?
Francisco vem denunciando recorrentemente e com ênfase profética, como um “câncer” que penetrou e cresce no tecido eclesial, o clericalismo, ou seja, o poder centralizado e centralizador nas mãos dos clérigos, os ministros ordenados, diáconos, presbíteros (padres, sacerdotes) e bispos. Esta deturpação da forma de exercício do poder está mais entranhado na mentalidade e na dinâmica da vida eclesial do que, a princípio, se poderia imaginar. Com o clericalismo, continua a operar no seio da Igreja uma subliminar lógica de exclusão dos fieis leigos e leigas, sobremaneira das leigas das instâncias de poder e de deliberação, com consequências perversas na vida e na missão da Igreja na sociedade e no cuidado com a nossa Casa comum.
A consequência mais grave situa-se no impedir, na mentalidade religiosa da grande maioria dos cristãos leigos, a emergência da identidade batismal adulta e de sua consequente corresponsabilidade na dinâmica da vida eclesial e na concretização da missão da Igreja na sociedade, no mundo. Além de ser continuamente infantilizada no nível da vivência da fé, a maioria dos cristãos adultos não está sendo suficientemente evangelizada. Por isso experimenta-se geralmente submissa, dependente dos clérigos e reduzida a mera espectadora do dinamismo eclesial, consumidora de ritos sacramentais e, no máximo, chamada a ser financiadora das ações do clero. Pasmem, tudo isso para o seu benefício de salvação futura após a morte. É como se o submeter-se passivamente ao clero, abrindo mão da cidadania eclesial fundada no Batismo (enraizamento libertador em Jesus Cristo), garantisse “a salvação da alma no juízo final”.
Outra consequência tão grave quanto a que foi acima descrita, é a deformação na mentalidade dos próprios clérigos que, em grande número, se experimentam superiores e ordenados, legitimamente, para centralizar em si mesmos, cada qual em sua instância própria, as decisões e o que deve ou não, o que pode ou não, ser feito na dinâmica da vida eclesial. Acolhem, a partir de leitura fundamentalista e seletiva de textos da Escritura, que esta foi a vontade de Deus revelada em Jesus Cristo para a Igreja. É como se Jesus tivesse entregado uma dinâmica de poder centralizado e centralizadora na vida da Igreja a Pedro e aos demais Apóstolos.
Que a todos fique claro, o clericalismo não está nas funções e responsabilidades específicas na dinâmica eclesial atribuídas pelo magistério aos ministros ordenados, mas na forma, contraria e contraditoriamente ao Evangelho de Jesus, como estes exercem o poder: que deixa de ser exercido e compreendido como poder-serviço aos irmãos e irmãs do Caminho e assume a forma diabólica de poder-dominação sobre os demais. E é tão contagiante esta sedução para o poder-dominação que os evangelhos não esconderam a presença desta tentação já presente entre os primeiros discípulos e discípulas de Jesus. Ele seduz da mesma forma a muitos leigos e leigas, que talvez por contágio direto com a práxis deturpada de muitos clérigos, quando estes assumem algum ministério ou serviço eclesial acabam se tornando muito mais clericalistas que os próprios clérigos. Todos devem ficar vigilantes para não cair nesta tentação. Urge igualmente se concretizar outra estrutura organizava na dinâmica da vida da Igreja nas comunidades, paróquias, pastorais, movimentos, grupos, congregações religiosas.
Nesse sentido, pode-se dizer há 55 anos do término do Concílio, que a corresponsabilidade de todos os cristãos batizados na dinâmica missionária, continua a ser, no seio da Igreja católica, um dos maiores desafios à ação evangelizadora. Trata-se da utopia do Reino que, fundada no amor gratuito de Deus por nós, amor anunciado-testemunhado por Jesus, a todos irmana e responsabiliza.
II – Igreja doméstica: via privilegiada para a emergência de protagonismo inédito dos cristãos leigos e leigas na vida da Igreja?
A grande força simbólica do Domingo de Ramos está em situar, de forma significativa, no horizonte que se aproxima, a vivência da Semana Santa, cujo mistério celebrativo explicita o próprio núcleo da fé cristã. Estas reflexões nasceram impulsionadas por esta força simbólica da Semana Santa, que neste ano será celebrada na Igreja doméstica.
Dentre muitas outras maneiras, o núcleo da fé cristã pode assim ser explicitado: Jesus, que passou a vida fazendo o bem, sobretudo aos pobres e excluídos do sistema religioso, sociopolítico e econômico, anunciou-testemunhou profeticamente a chegada e a presença do Reino de Deus no meio de nós. Sua ação profética libertadora atraiu discípulos e discípulas, mas também suscitou poderosos inimigos, que lhe fizeram graves ameaças de morte. No entanto, por experimentar a proximidade libertadora do amor de Deus e a força do Espírito Santo junto d’Ele, depois de orar e discernir o caminho a seguir, decide permanecer fiel até o fim, assumindo todas as consequências de seu agir profético. Por causa desta opção Jesus foi perseguido, traído, preso, torturado, julgado na calada da noite, condenado e executado, de forma exemplar, impactante e amedrontadora, na cruz. No entanto, Jesus foi ressuscitado por Deus e, monstrando-se mais forte que os poderosos deste mundo que lhe decretaram a morte, apareceu aos seus discípulos e discípulas. Esta experiência de fé transformou completamente a vida dos seguidores do Profeta da Galileia. Estes, ao receberem o Espírito Santo, passam a anunciar-testemunhar a mesma fé de Jesus e sua fidelidade ao Reino de Deus como verdadeiro caminho de Salvação. Assim nasce a vocação e missão da Igreja de Jesus Cristo.
Explicita-se desse modo a identidade última, escatológica, da Igreja em sua relação constitutiva com a Trindade: nasce da força criativa dinamizadora do Espírito Santo, para anunciar-testemunhar a libertação da vida nova em Cristo Jesus, como projeto amoroso salvífico universal de Deus Pai.
Todos os anos a liturgia da Igreja nos convida a celebrar e reviver este Mistério da fé e, assim, renovar a disposição de todos para a conversão a Deus, deixando-se transformar por aquele compromisso batismal de ser Igreja viva no mundo, na sociedade em que vivemos e no enfrentamento dos desafios e urgências contemporâneas.
O que será diferente e singular na celebração da Semana Santa de 2020? Trará algo novo o fato dela ser vivida, pela imensa maioria dos cristãos católicos espalhados pelo mundo inteiro, em pequeninas comunidades familiares no interior de suas casas, confinados pela grave situação do contexto de quarentena?
Acredita-se que sim. Algo inédito acontecerá e, de tal forma que, pela luz e criatividade do Espírito Santo, fonte de renovação de todas as coisas, a Igreja não poderá mais voltar a ser do mesmo jeito, sob pena de trair ou ignorar os sinais do tempo.
A Semana Santa vivida no espaço sagrado da Igreja doméstica será fermento libertador de renovação profunda da dinâmica estrutural da vida eclesial. Será uma experiência capaz de impulsionar e acelerar avanços significativos que até então estavam travados diante do poder clerical.
Esta esperança de renovação tem fundamento e razão de ser em três fatores decisivos. Primeiro pela democratização da vivência eclesial via internet. Mesmo quando contemplamos inúmeros ministros ordenados – diáconos, presbíteros e bispos – continuarem a ser protagonistas da palavra e buscarem presidir os ritos litúrgicos tradicionais de forma virtual, via mídias digitais (e isso positivamente tem sido uma experiência fundamental para muitos cristãos manterem seu horizonte de sentido e de esperança nesse contexto de pandemia), a internet sutilmente tende a democratizar o poder de deliberação. Quando as pessoas fazem a experiência de ser sujeitos de sua caminhada, na segurança de seus lares, elas tendem a se transformar, pois, surge nova consciência de si mesmas. A experiência vivida no ambiente digital, ainda que muito vulnerável a manipulações perversas, vem oportunizando positivamente às pessoas profundas transformações. De usuários passivos e leitores-consumidores de informação, quase sempre sem se darem conta conscientemente do processo transformador, passam a ser construtores e elaboradores de informação e se tornam sujeitos da palavra, ainda que fazendo bricolagens de pedaços de narrativas alheias, banco de imagens disponíveis etc.
Outro fator digno de reflexão é a experiência libertadora que o regaço da casa oportuniza. A vivência da privacidade tem efeito profundamente libertador. Oferece o poder de cada um ser ele mesmo, sem as máscaras sociais. Oportuniza experiência da dignidade de ser sujeito, ainda quando esta seja uma vivência circunscrita, parcial e limitada. A pessoa tende a tornar-se sujeito do próprio tempo, do espaço doméstico e do que-fazer. Quando se está em casa tende-se a ser mais subjetivo. Quando a casa se torna autenticamente um lar, geralmente, mais do que a pessoa se experimentar em terreno seguro, de se sentir amada e aceita, ao tirar as máscaras sociais, ela percebe e assume, a sua singularidade. Experimenta-se, assim, a própria dignidade.
Nesta Semana Santa, de um modo inédito, cada pai ou mãe de família que se assume cristão católico, vai experimentar o chamado de assumir a sua participação no sacerdócio de Cristo – somos em Jesus um povo sacerdotal – e, com a criatividade do Espírito Santo, assumir a presidência da celebração do Mistério da fidelidade profética de Jesus até as últimas consequências, a sua paixão, morte e ressurreição. Do mesmo modo, cada catequista, agente de pastoral, conselheiro/a, coordenador/a, cada liderança cristã assumirá este lugar de sujeito, participante ativo da liturgia da vida cristã.
No espaço da casa, o clero não pode arbitrariamente entrar. Ali, neste espaço, ele não tem o mesmo poder sobre os fieis ou, pelo menos, não pode exercê-lo do mesmo modo que no templo. No espaço da casa, o clero, como Jesus que está à porta e bate, pode ser acolhido e convidado a sentar-se à mesa, a entrar na roda, para juntos celebrar a partilhar da fé e da vida. E isso faz muita diferença, quando, ao redor da mesa ou na roda celebrativa, a experiência da Igreja doméstica se torna experiência refletida, acolhida e por todos legitimada. Quando a CNBB, assume a metáfora da casa – casa da palavra, casa do pão, casa da caridade e casa da missão – como imagem da Igreja que reflete, renova e organiza seu projeto de evangelização, ela oferece elementos significativos e fecundos para esta reflexão.
Defender profeticamente políticas públicas que garantam a dignidade das famílias e de seus membros – com igual cidadania para todos, acesso de todos a moradia digna e com saneamento básico, o funcionamento e acesso de todos ao eficiente Sistema Único de Saúde – SUS, o trabalho e salário dignos, a educação integral, a creche, a reforma agrária e urbana, o transporte, o lazer… -, é concretizar a missão evangelizadora da Igreja no mundo. Uma sociedade de casas dignas pode ajudar a concretizar uma Igreja de casas e nas casas. Assim, no fundo, defender a dignidade do espaço de cada família, de cada casa com a dignidade de casa-lar, a Igreja estará concretizando a sua missão de ser fermento, sal e luz, estará ajudando a reformar a sociedade e a si própria.
A rica experiência de capilaridade das CEBs, com sua miríade de pequenos círculos bíblicos e grupos de base, com sua dinâmica de rodas de conversa e troca de ideias, sendo recuperada, revitalizada e adaptada para os diversos contextos eclesiais urbanos, pode servir de modelo de inspiração.
Que esta Semana Santa seja tempo de graça de Deus, tempo de ação do Ressuscitado, tempo do Espírito Santo! Por isso tempo de profunda renovação da vivência da fé. Fé no Deus da vida, Emanuel, sempre estradeiro conosco. Tempo de ação do fermento transformador da dinâmica eclesial na experiência, em nossas casas, da presença de Jesus Ressuscitado conosco, aquele que vende as forças das trevas e da morte. Tempo de crescimento da corresponsabilidade batismal na missão de concretizar, na Igreja e na sociedade, a vida nova, libertada, em Cristo Jesus.
Uma abençoada Páscoa para todos!
Sobre o autor:
Prof. Edward Guimarães é doutorando em ciências da religião pela PUC Minas, mestre e graduado em teologia pela FAJE e licenciado em filosofia pela UFMG. É professor do Departamento de ciência da religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. É membro do Conselho arquidiocesano de pastoral e assessor do Vicariato episcopal para ação pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte.
Excelente artigo. Impressiona como ainda, muitas vezes, as pessoas se deixam comandar, como uma forma de se “livrar de suas responsabilidades”. Romper esta barreira e mostrar que se precisa assumir efetivamente a parte que nos cabe na grande missão de manifestar e completar o Reino no mundo é uma tarefa educativa que precisa ser intensificada.