“Todos ficam tontos, sem entender.
E o fabricante de imagens fica decepcionado com o ídolo,
porque sua estátua é mentira; vida ela não tem.” (Jeremias 9, 14)
“Ontem um menino que brincava me falou
Que hoje é semente de amanhã.
Para não ter medo que esse tempo vai passar.
Não se desespere não, nem pare de sonhar.”
(Gonzaguinha)
Esperança. Palavra corriqueira, tão comum na boca do povo e tão necessária no coração da gente. O dito popular não nos deixa esquecer: “A esperança é a última que morre”. Nesses tempos de pandemia, a esperança tem sido nossa companheira, nossa aliada no meio da crise. É preciso esperançar, disse Rubem Alves.
Adoro esse verbo e vivo me esforçando para conjugá-lo corretamente, não conforme a gramática da língua portuguesa, mas conforme a gramática da vida. No passado, já esperancei muito. Agora, esperanço com dificuldades. E, no futuro, esperançarei também, apesar de no horizonte vislumbrar muitas desesperanças. Foi o fato de ter esperançado tanto que me fez resiliente. Por isso ainda continuo crendo no amor, lutando pelos direitos dos mais frágeis e sentindo aquela indignação diante da atitude dos perversos. É preciso continuar esperançando a esperança dos sonhadores, dos que sabem que tudo passa…
Estamos no momento meio tontos ainda, tentando entender a pandemia que assola o mundo em pleno século XXI. Faz parte da labilidade humana essa sensação de vertigem que acomete a gente como a pandemia do vírus. É que os fabricantes de imagens ficam sempre decepcionados com seus ídolos, diria Jeremias – o profeta do século VI aC. A gente colocou a esperança na nossa onipotência e, vendo agora que nossa estátua é só ídolo, a frustração é grande. Colocamos nossa esperança no capital, no progresso desenfreado, no esgotamento dos recursos naturais… Conjugamos errado o verbo esperançar? É que o verbo esperançar é intransitivo e pronto. A gente esperança e nada mais. Esperançar não exige complementos.
Quando a gente coloca nossa esperança naquilo que não tem vida, fazemos do verbo esperançar um verbo transitivo indireto. Sobre isso, nós – os brasileiros – temos aprendido muito. Esperançamos fora da esperança. Esperançar em significa mitar. Na verdade, mitamos ou idolatramos e não esperançamos. Se esperançar é verbo que gera vida; mitar é verbo que gera morte. O resultado só pode ser catastrófico. Não se trata de morte biológica somente, mas de morte da esperança. Fica difícil esperançar de novo, porque a esperança foi maculada.
Nossa gente mitou demais em 2018. Fez arminha com a mão, acreditou na imprensa golpista, até eleger o tal mito. Em 2019, o ídolo de sobrenome Messias começou fazendo estragos. Como muita gente não diferencia mitar de esperançar, continuou mitando contra toda evidência, como se cumprisse à risca Rm 4, 18, cuja tradução não faz jus ao gesto de Abraão: “Ele esperou contra toda esperança”. Bem melhor seria “Ele esperançou contra toda desesperança”. Mas, mesmo com toda desgraceira que se abateu sobre o país, ainda não foi o bastante.
Em 2020, o verbo mitar começou a cair no descrédito para alguns poucos. Primeiro foi a imprensa, por causa das ofensas a uma tal jornalista. Se não lhes pisa no calo, não sentem a dor do sapato apertado nos pés dos outros. Depois foi a vez da classe médica, por causa do descrédito da saúde e das irresponsabilidades do mito nesse campo. Pouco a pouco, alguns vão percebendo a bobagem que fizeram: a estátua que erigiram era mentira.
Bem parecida com a imagem do ídolo de Daniel (Dn 2, 31-47), nosso mito tem cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e quadril de bronze, pernas de ferro, pés de barro. Possui cabeça de ouro, pois suas invectivas e seus pronunciamentos politicamente incorretos – sempre propalados convenientemente na mídia – reluzem como o precioso metal atraindo os incautos. Estes não sabem que nem tudo que reluz é ouro. Seu tronco é de prata, pois nele não se ouve as batidas do coração, mas o tilintar do metais. Seu quadril de bronze não lhe permite rebolar nas crises, pois sua engrenagem não é lubrificada. Suas pernas de ferro pisam e maltratam os pequenos como carro de guerra sobre as cidades deixando rastro de destruição. Mas como todo ídolo ou mito é pura ostentação, os pés de barro revelam sua fragilidade e comprometem sua estrutura de preciosos metais.
Bastou uma pedrinha rolar do alto da montanha, diz o profeta Daniel, e bater nos pés de barro, para a estátua se espatifar toda. A pedrinha foi rolada do alto, o que significa a ação divina, sempre a nos socorrer. No entender do autor, Deus não tolera tanta arrogância e age em favor dos oprimidos. Era uma pedra pequena. Não era uma bomba, nem um míssil, nem um exército de inimigos aramados até os dentes, nem uma montanha que veio abaixo por um terremoto. Uma pedrinha. Só isso. Nada mais.
Estou longe de crer que o coronavírus e a pandemia da Covid-19 sejam ação divina. Meus diplomas de teóloga teriam que ser jogados no lixo se eu fizesse essa afirmação. Deus não tem nada a ver com isso. Nem mandou o vírus; nem permitiu que o demônio ou os chineses – coitados! – o espalhassem pelo mundo (faz-me rir a teoria que culpabiliza os chineses). Muito menos Deus está usando essa pandemia para nos converter ou para revelar sua glória, pois ele não é um Deus cruel que castiga uns para correção dos outros ou que humilha a humanidade para se projetar e mostrar seu poder. Deus é bom, sempre; só sabe ser bom, dele só vem coisa boa (Tg 1, 13), pois é amor (1 Jo 4 ,8). Mas como, para quem crê, o olhar da fé é lançado sobre todos os fatos, não faz mal teologizar e comparar o vírus à pedrinha. Invisível, que não se destrói com navios ou aviões de guerra, o corona mostra que muitos acreditaram no mito. Quando vemos as possíveis consequências da pandemia no Brasil, com o SUS sucateado, a ciência parada e as relações de trabalho totalmente fragilizadas, dá para imaginar o estrago que o vírus pode fazer.
Fazer arminha com a mão não vai parar a epidemia. É preciso bem mais do que isso. É preciso investimento em saúde, para se ter leitos de hospital para todos na hora do imprevisto. É preciso investir em ciência, para se ter vacina e remédio para combater os inimigos da saúde. É preciso ter relações de trabalho estáveis para não se sentir ameaçado pela crise financeira. Torcemos e rezamos para estarmos errados em nossas previsões acerca do desastre que a pandemia de Covid-19 promete causar no Brasil, mas – em meio a tanta desgraça – que essa pedrinha nos sirva de lição.
De novo Jeremias: “o fabricante de imagens fica decepcionado com o ídolo, porque sua estátua é mentira; vida ela não tem”. Fabricamos um mito, aliás nós não. Eles fabricaram… Quem? As grandes potências: indústria armamentista, agropecuaristas, donos de mega-igrejas, mineradoras, grandes empresários e a grande mídia. Fizeram o povo esperançar como verbo transitivo indireto. Nossa gente esperou que a estátua pudesse fazer milagre: o milagre de não ter que lutar contra as injustiças sociais, de não ter que repartir os bens, de não ter que brigar pelos direitos de todos, de não ter que fazer uns perderem privilégios para o bem das minorias oprimidas. Com medo do bicho papão do comunismo, elegeram uma estátua de pés de barro. E chamaram-na de messias, pois até o nome favorecia. O teatro fora muito bem pensado, para enganar os mais ingênuos.
Que os pés eram de barro, a gente já sabia, mas muitos não conseguiram ver. Marielle Franco, a pedrinha negra da favela do Rio de Janeiro, já havia rolado sobre o mito e quase conseguiu mostrar para todos as fraquezas dele e de sua familícia. Mas antes que lhe acertasse o calcanhar, os poderosos esmagaram-na sob os pés. Ainda depois de morta, ela lhes amedronta e atormenta suas noites com pesadelos. Estou esperançando como Jean Willis, a pedrinha gay da Bahia, de que, mesmo assassinada, Marielle ainda o derrube. Não custa esperançar. Se nem ela nem o corona conseguirem, resta pensar como cantou Gonzaguinha: “Esse tempo vai passar. Não se desespere não, nem pare de sonhar”. Uma hora uma pedrinha acerta os pés do mito.
(Os grifos são nossos)
Sobre a autora;
Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.
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