“De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10,8)
“Hoje eu não saio não
Hoje eu vou ficar em casa, meu bem
Hoje eu não saio não
Eu quero ver televisão
Hoje eu não saio não
Não troco meu sofá por nada, meu bem”
(Arnaldo Antunes e Marcelo Geneci)
Se tem uma coisa que me irrita é gente prestando desserviço à comunidade humana em nome da fé. Se isso é intolerável para qualquer pessoa de bom senso, quanto mais para nós teólogos, cuja função e profissão é pensar a fé, dar suas razões, fazer brilhar sua luz.
Nestes tempos de pandemia do Covid-19, desserviços à humanidade pululam por toda parte. Desde o tal mito que governa o país até o mais simples operário, todos podem contribuir para a salvação de muitas vidas com suas grandes decisões ou com suas pequenas atitudes. Do tal presidente, a gente não pode esperar muita coisa. Já vimos que ele não tem nem bom senso nem bom caráter. A pandemia lhe convém para fazer o genocídio dos pobres, velhos, doentes, população de rua e presidiários, pois esses dão muita despesa ao Estado. Além do mais, a crise do coronavírus cai como uma luva para esconder sua incompetência de governar, e também de seu braço direito, o ministro das finanças, que não consegue fazer um plano econômico que gere renda, empregos etc. O país caminhava para o caos desde janeiro de 2019, quando o tal subiu a rampa do planalto e agora está em queda livre, pois o vírus veio mostrar as verdadeiras intenções do verme presidencial.
Não tendo como contar com o Estado, “salve-se quem puder” é a ordem do dia. Assim, prefeitos, governadores e outros líderes vão se unindo sem esperar que a presidência da república – a quem caberia a tarefa de tomar as rédeas da crise – lhes indique um caminho plausível. Ninguém está a salvo, exceto os ricaços que podem construir uma UTI em suas mansões e contratar médicos particulares e outros profissionais de saúde para o atendimento domiciliar. Para o povo que depende do serviço público ou até mesmo dos planos de saúde, resta o caos. Sabe-se muito bem que, se não nos submetermos ao isolamento social, daqui a poucos dias não haverá leitos vagos nos hospitais, doentes estarão abandonados em macas, esquecidos nos corredores, sem respiradores, morrendo solitários sem alguém da família para lhes segurar a mão.
Nessa situação de total anarquia, só a solidariedade pode nos abrir uma brecha e, se não nos salvar da morte biológica e da falência econômica, pelo menos nos salvará do vexame do egoísmo e da insensatez. É tempo de solidariedade, apesar de todo dia ser ocasião para fazer o bem. Mas, nesse tempo chamado hoje, a solidariedade se tornou, mais do que nunca, nossa única arma contra o vírus e contra os vermes.
Tenho uma amiga querida, piauiense, pobre e sofredora, que é teóloga assim como eu. Já nos socorremos em muitas situações difíceis, cuidando uma da outra, pondo o pão partido uma na boca da outra. Certa vez, quando lhe entreguei uma sacolinha com uma maçã e um pedaço de broa, pois ela ia para o terceiro turno de trabalho (dois deles comigo, no seminário de Mariana – MG), ela me agradeceu e disse: “Grata, amiga. Um sofredor logo identifica o outro”. Guardei para mim essa frase e a tenho repetido exaustivamente para não me esquecer de seu sentido mais profundo. A vida nos separou; ela foi para Fortaleza cuidar de sua comunidade e derramar seu sangue e suor na lida pastoral e teológica no Nordeste. Eu fiquei por aqui em BH, na mesma peleja. Sangue, suor e lágrimas têm sido o alimento da gente, pois esse é o pão dos sofredores. Apesar da distância, nutrimos a esperança e a solidariedade sem desanimar.
Do mesmo modo, tenho feito a experiência da fraternidade com outros e outras que cruzam meu caminho e o tornam menos fútil, menos insignificante, menos caótico. Sou grata a Deus por eles e não me canso de repetir a frase de Jesus: “De graça recebestes, de graça dai. ” (Mt 10, 8) ou, como afirmou Paulo: “há mais alegria em dar que em receber” (At 20, 35). Como acredito piamente nessa máxima que Lucas, autor do livro dos Atos dos Apóstolos, colocou na boca do apóstolo Paulo, sigo insistindo que a fraternidade é o caminho da alegria e nossa única esperança.
Horroriza-me, por isso, a atitude dessa gente egoísta e sem coração que só pensa nas suas ações na bolsa. As ações caindo fazem essa gente tremer, enquanto que a ameaça de morte de milhões de brasileiros não lhes diz respeito. É o caso do empresário R.J., aquele panaca que se diz apresentador do SBT, rede de TV tão panaca quanto ele, governada por um estelionatário que sempre saqueou o povo até ficar milionário e que dá apoio incondicional ao presidente B. Além do empresário-apresentador, ainda há outros. O dono daquela rede de sanduíches que tem nome parente de árvore e que anda afirmando por aí que todos devem voltar ao convívio social. Ah, tem também o dono daquela rede que tem uma estátua da liberdade, mas que coage seus funcionários e os força a votar em candidatos que apoiam os patrões em detrimento da vida dos subalternizados. E são muitos. O rol é interminável.
Essa gente não tem coração. No peito, existe um cofre; nas veias, corre puro interesse econômico e, no cérebro, em vez de sinapses neurais acontecem relações comerciais. A cifra é seu deus; na bíblia, Mamon, o deus dinheiro tão condenado por Lucas. Que eles sejam assim, a gente entende, apesar de jamais concordar, é claro. É compreensível, pois defendem seus próprios interesses. Agora, que pobres coitados, subalternizados e explorados, defendam as ideias dessa gente, isso é coisa repugnante.
Recebi hoje cedo um pedido de socorro de uma amiga do interior. Queria saber o que responder a uma mensagem de WhatsApp que defendia o fim do isolamento social. A argumentação é grotesca, mas confunde os menos periciados na teologia; “se o motoboy não pode fazer isolamento, se os profissionais de saúde não podem fazer isolamento, se os funcionários de supermercados, serviços de água e esgoto, energia elétrica etc., não podem fazer confinamento, é egoísmo alguns ficarem no confinamento”. Segundo eles, devemos todos nós voltar à vida social corriqueira para sermos solidários com os operários que estão na frente de batalha do coronavírus, expostos aí nas ruas, nos supermercados, nos hospitais, nas empresas. Dá tristeza ler isso. E pior, dá tristeza maior pensar que muitos acreditam e caem nessa falácia.
Para nós cristãos, a solidariedade é – ou deveria ser – um valor máximo. Então, ao ouvir tal argumentação, os cristãos de boa vontade têm aquela tendência heroica de romper o isolamento e achar que todos devem voltar ao trabalho em solidariedade aos que não podem se isolar.
Vamos por parte. Primeiro ponto. Nós não nos isolamos por nós mesmos, mas por causa dos mais fracos. As crianças não vão às escolas para justamente proteger os velhos; os sãos não vão à rua para proteger os doentes; os livres não vão aos presídios para proteger os presos; os que têm casa não saem de suas moradas para proteger os sem tetos, e nenhum de nós sai do confinamento exatamente para proteger quem não pode se confinar. Será tão difícil assim entender isso? Se eu vou para a rua, não arrisco a minha vida mas a de milhões de fragilizados. Eu, por exemplo, tenho dentro de minha casa uma irmã com doença degenerativa, autoimune, cuja saúde é mais frágil que um ovo de beija-flor. Estou confinada em casa, não por conveniência, mas por amor. Sou forte, saudável, faço exercício físico diariamente, só não chego a ser uma atleta como o presidente B., mas não ponho os pés na rua a não ser para o absolutamente necessário. Assim também as três pessoas que me ajudam nos cuidados com ela. Nessa hora de pandemia, a vida de uns está ainda mais do que nunca implicada na vida dos outros. Isso se chama solidariedade voluntária. Quem não assistiu o filme O Poço, disponível na Netflix, deve assistir. É um soco no estômago, mas é uma metáfora muito acertada sobre a sociedade neoliberal. Vale a pena.
Segundo ponto. Que falsa piedade cristã é essa que nos leva a uma solidariedade assassina? Como posso proteger o motoboy saudável e condenar os velhinhos do asilo ao cemitério? Se o coronavírus entra num asilo de idosos e os leitos de UTI não têm vaga para todos, será uma carnificina. Veremos se repetir a cena da Itália: caminhões e mais caminhões levando seus mortos, sem a família ter sequer o direito a um velório para deles se despedir. O mesmo seja dito sobre os presídios onde falta até ar para respirar quanto mais água, álcool gel, sabonete etc. Vale também a regra para os puteiros imundos, cheios de prostitutas que não têm outro lugar para se esconder. E o que dizer dos moradores de rua? E dos aglomerados, das favelas, dos cortiços, das comunidades de moradores nas palafitas à beira dos rios do Norte do país?
Realmente, é desolador ver que a solidariedade cristã é manipulada desse jeito e que os cristãos resolveram ser ingênuos como as pombas, mas se esqueceram de ser espertos como as serpentes (Mt 10,16). Nas palavras do evangelista Lucas, deixam que os filhos das trevas se tornem mais espertos que os filhos da luz (Lc 16,8). O dono da hamburgueria e o empresário da televisão, assim como tantos outros que vivem da exploração do pobre e só pensam nos seus investimentos na bolsa, conseguem convencer os pobres coitados das comunidades cristãs que sair do confinamento é atitude de amor ao próximo. Do mesmo modo, o dono da empresa de evangelização, cuja igreja tem universal no nome, convence seus fiéis que continuar indo ao culto para entregar suas ofertas é atitude de fé. Não pode ser verdade que os cristãos sejam tão patéticos assim. Não foi isso que Jesus nos ensinou, nem é isso que uma boa teologia ensina. Só para esclarecer: no momento, caridade cristã é ficar no confinamento, e crer é saber que todos podem se contaminar e transmitir o vírus. O resto é manipulação da boa fé do povo. É o tamanduá convidando as formigas para uma festa.
Para terminar, permitam-me um terceiro ponto. Se você é cristão e lê a bíblia, deve conhecer o texto do confinamento de Jesus no deserto por quarenta dias. Simbolismo à parte, pois não dá tempo de explicar, Mateus e Lucas relatam a quarentena voluntária de Jesus em solidariedade a humanidade. Após o batismo, fora levado pelo Espírito para o deserto e lá foi tentado (Lc 4, 1-13; Mt 4, 1-11). O diabo, porém, tentou demovê-lo de seu propósito, usando três tentações: transformar a pedra em pão, saltar do alto do monte e adorar o tentador. As duas primeiras investidas começam com o capcioso “se és filho de Deus”. Se és filho de Deus transforma pedra em pão (Lc 4,3). Se és filho de Deus salta do alto do monte, pois os anjos vão te carregar no colo como está escrito no Sl 91 (Lc 4, 5-6). Na terceira, ele propõe uma barganha: ajoelha e me adora, e te darei os reinos deste mundo. Apesar de a ordem das tentações serem diferente em Mateus e Lucas, elas são praticamente idênticas. Jesus resistiu a todas elas. Foi provado no confinamento do deserto e foi aprovado. Todos sentem fome, pensou Jesus: por que eu não? Todos gostariam de ter Deus a seu serviço, de viver dos privilégios divinos, de ser mais protegido por ele que os outros: por que eu não? Todos gostariam de ter os reinos a seus pés, de serem superiores, de terem domínio e poder, especialmente o poder que o deus Mamon dá. Por que eu não? Então Jesus resistiu bravamente, porque, sendo homem, não havia outra forma de viver a não ser a vida humana. Mas preferiu-a viver na fidelidade ao projeto do Pai, o Deus da vida. Permaneceu firme até que satanás desistiu. Para Lucas, o tentador vai voltar lá no fim da vida do Mestre de Nazaré na hora da paixão. Mateus achou que já era o bastante. Sou mais para pensar como Lucas. Vencida uma tentação, sempre o diabo acha jeito de tentar de novo; é questão de tempo.
A cada cristão e a cada pessoa que acredita na solidariedade, em nome da fé cristã, advertimos: O Espírito nos conduziu ao confinamento para salvar muitas vidas. Os adoradores do diabo querem nos tentar a voltar a encher as ruas. Resistamos, pois o cuidado com a vida precede à preocupação com a economia. E cantemos alegres para espantar o tentador:
“Hoje eu não saio não; hoje eu vou ficar em casa… Lá no boteco, não; Telecoteco; No trio elétrico, não; Teatro, não; Não vou no esquema não; Nem no cinema, não; Em Ipanema, não; No circo, não. Hoje eu não saio não; Hoje eu vou ficar em casa, neném… Na padaria, não; Na academia, não; Periferia, não; No centro, não; No casamento, não; No lançamento, não; No movimento, não; Na praia, não”.
Lugar de gente consciente que ama a vida e dela cuida, por enquanto, é dentro de casa.
(Os grifos são nossos.)
Sobre a autora
Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.
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