Os efeitos da negação

“Se fôsseis cegos, não teríeis culpa;
mas como dizeis ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece” (Jo 9,41)

E nessa loucura de dizer que não te quero,
Vou negando as aparências,
Disfarçando as evidências.
Mas pra que viver fingindo,
Se eu não posso enganar meu coração?”
(Chitãozinho e Xororó)

A crise civilizacional que passamos é assustadora. O coronavírus colocou a humanidade em xeque. Já fazia tempo que minha sobrinha bióloga vinha me dizendo que a humanidade é um projeto que não deu certo. Pareceu-me pessimismo. Bom, devo concordar pelo menos no que diz respeito ao modelo social vigente: alguns poucos se armando até os dentes contra uma multidão de explorados e esquecidos da história, uma pequena parcela usufruindo dos resultados do progresso em detrimento da fome e do desprezo de bilhões, o consumismo desesperado esgotando o Planeta e seus recursos sem pensar no amanhã, o sistema financeiro sendo idolatrado e colocado acima da vida. Fica difícil acreditar no humano nesse cenário.

A Covid-19, porém, veio piorar a cena. Ameaçou pobres e ricos diante dos mesmos riscos da contaminação, apesar – é claro – e ainda deixar os abastados em situação de total privilégio graças a seus recursos. Pôs o mundo em quarentena, obrigando-nos ao confinamento de nossas casas. Provocou a redução do ritmo frenético de pessoas nas ruas e nos shoppings. Fechou as escolas, os comércios… Fez desmarcar congressos, reuniões, viagens… Lotou os hospitais, necrotérios e crematórios. Fez chorar o mundo. E só quem é muito louco ou muito perverso nega a realidade cruel que vivemos. É próprio dos psicopatas viverem em mundo alheio. E cabe aos perversos negarem a crise, especialmente quando ela lhes cobra responsabilidade e ações de solidariedade e cuidado com a vida. É mais fácil negar que agir.

A estratégia da negação não é coisa nova. Acontece sempre quando a gente recebe uma notícia ruim. Quem nunca se disse diante da notícia da morte súbita de um amado: “É mentira. Isso não está acontecendo”? Ou quem nunca passou pelo processo de negação de uma doença que o tenha acometido ou a um de seus familiares? Faz parte da vida negar. Negamos porque a realidade é tão avassaladora, que é melhor viver num mundo à parte, cheio de bolinhas multicores e borboletas azuis. Mas toda negação tem um fim; só não o tem em casos especiais, como acontece com a perversão e a psicopatia mental que fazem da negação um estágio constante.

Quando a negação se dá no âmbito pessoal, ela tem consequências funestas, mas é menos perigosa pois coloca em risco apenas o negador. Quando, porém, a negação se dá no campo social, sofre toda a sociedade. Por isso ela é criminosa e precisa ser contida.

Para os que são mentalmente incapazes de aceitar a realidade, a solução é o tratamento psiquiátrico. Quando não há retorno favorável, os que ainda tem sanidade aprendem a conviver com esse distúrbio e não dão mais importância ao que é dito pelo doente. Relevam, relativizam, fingem que não escutam, entram na deles para simplesmente amar e acolher ou ajudar-lhes a dar asas à imaginação por meio da arte, sempre tão terapêutica. Os “loucos” são quase sempre inofensivos. Quando fazem o mal, fazem-no normalmente mais a si mesmos que aos outros. É o caso de uma negação pessoal reiterada: uma mãe que perde a sanidade quando perde um filho; uma pessoa multimaltratada que se desliga do mundo real e vive num mundo só dela. É só lembrar de Arthur Bispo do Rosário confinado num hospício, capaz de tanta arte e sensibilidade.

Para os que são moralmente incapazes de aceitar a realidade, os perversos, a solução é bem outra, pois não se trata de um dispositivo mental, mas de uma incapacidade de amar e de ter empatia com os outros. Nesse caso, ignorar, relativizar e fingir não ver é tão criminoso quando fazer a negação social. Os perversos normalmente não fazem negações pessoais. Insistem em negações sociais que são capazes de matar, destruir e eliminar especialmente os pequenos. É uma cegueira da alma, ou do coração. São incapazes de ver a realidade porque a maldade lhes arrancou os olhos da solidariedade. Desumanizaram-se; coisificaram seus corações, passaram a ter a mente entorpecida por seus devaneios de grandeza, ganância e por interesses próprios. De tanto uma pessoa só olhar para si mesma, não vê nada mais além de espelho. É triste!

Na história humana, já tivemos casos de negações sociais catastróficas. Algumas com consequências seríssimas. Foi o caso da peste negra na Europa. As Igrejas se negaram a fechar as portas, pois os pastores negavam a realidade da peste, sua ameaça real. Insistiam que Deus traria a solução para a doença. Como escreveu Fernanda Torres em artigo recente na Folha da UOL, “foi necessário o alarmante milagre da multiplicação de óbitos para que a Igreja suspendesse missas, procissões e aglomerações de fiéis”.

É duro ver o que está acontecendo; manter a sanidade mental é exercício diário tão duro como o combate ao vírus. Mas é preciso continuar lendo, se informando, vendo vídeos instrutivos e terapêuticos… Toda ajuda é bem-vinda. Em meio tanta informação veiculada nas redes, não faltam, porém, verdadeiros absurdos. Não nos escapam algumas pérolas de crueldade, como é o caso do pronunciamento do presidente da república ontem em rede nacional transmitido (24/03/2020), do vídeo gravado por OdC, guru do desgovernante brasileiro (23/03/2020); da declaração do deputado JM, do Podemos, feita nas redes sociais sobre a chegada dos médicos cubanos na Itália (22/03/2020) e da decisão de Edir Macedo de manter seus templos lotados (com liminar judicial – 19/03/2020).

O primeiro, o mito de sobrenome Messias, teve o descaramento de fazer pronunciamento em rede nacional, minimizando os efeitos do coronavírus. Afirmou mais uma vez que se trata de uma gripinha, culpou a mídia de fazer alarde e de deixar a população histérica, ridicularizou o confinamento social e se mostrou contra o fechamento de escolas e outras instituições. Sobre esse ser desprezível, há pouco o que falar a não ser que a pandemia lhe convém: tem um bode expiatório para a crise no país e ainda encontrou uma arma letal para eliminar os fracos sem precisar fazer a matança dos pobres com suas próprias mãos. O verme presidencial transfere ao vírus a função de realizar o seu sonho: a higienização do país. A União diminuirá muitos gastos com a morte de velhos, de doentes, de presidiários, de moradores de rua, de favelados e de todo ser humano que ele despreza. Para ele, isso seria uma maravilha. Sem mover um dedo sequer o limpa estará feito. Basta deixar o vírus se alastrar. E, ao final, bingo: um álibi perfeito para o fracasso da economia. A culpa é do coronavírus.

O segundo, o pretenso filósofo, nega a letalidade da Covid-19. Afirma não haver uma única morte comprovadamente causada pela doença. Para ele, são casos de gripe, coisa comum e corriqueira, que todo ano acontece. Trata-se de uma manipulação das informações com interesses escusos, é claro, enxergados somente por ele, o vidente do século XXI e o maior sábio do mundo. Sua teoria da conspiração se tornou tão verdadeira aos seus olhos, que não consegue ver as imagens de caixões enfileirados ou dos caminhões do exército transportando cadáveres ou dos hospitais lotados com doentes para todos os lados.

O terceiro, o tal deputado apoiador de B., nega a eficácia da medicina cubana e a generosidade do povo da Ilha. Seu idealismo político raspou seus neurônios e paralisou seus sentimentos. Em plena crise de dimensões planetárias, fez postagens racistas comparando o avião que trazia os médicos com os navios que transportavam escravos: “faz lembrar a chegada dos navios negreiros”, disse ele.

O quarto, insiste no mesmo erro da época da peste. Igrejas cheias e fiéis entregando dízimos por medo da Covid-19 e por coação dos líderes. O tal pastor afirma que Deus protege quem crê e que nada de mal acontecerá aos seus eleitos. Faz leitura fundamentalista da bíblia e convence os desavisados de que falta de bom senso é fé. Não sei se é mais insano quem vai às igrejas, o pastor dessas igrejas, o juiz que assentiu a tal decisão. Irresponsabilidades múltiplas provocadas pela negação das evidências.

Quando a ignorância, o obscurantismo, o preconceito e o fundamentalismo são maiores que a empatia, chegamos a um grau de perversidade que não é possível tolerar. Ou quando esses são maiores que os dados da ciência, esbarramos num grau de insanidade que não podem prosseguir socialmente. Suspeito que esses quatro personagens citados fazem-no por perversão, mas deixo-lhes o benefício da dúvida. Talvez o façam por loucura. Não sei se a incapacidade de ver a realidade é de fundo moral ou uma psicopatia grave. Suspeito da primeira. Só sei que nenhum deles pode continuar falando e escrevendo essas insanidades ou tomando decisões prejudiciais para a humanidade. Precisam ser detidos pela justiça. São um perigo público. Se for perversão, pura maldade e desejo de lucro, devem ser punidos exemplarmente. Se for distúrbio mental, devem ser isolados da sociedade, não podem ocupar cargos públicos, nem religiosos, nem podem ser influenciadores digitais. É desanimador ver essa gente solta ou sem punição por aí. Precisamos fazer coro com os sertanejos e cantar: Chega de mentiras, de negar as aparências, de esconder as evidências!

 Não falta, porém, quem numa tentativa hercúlea de otimismo veja um aprendizado positivo no final da batalha. Fico contente que seja assim. Que tenha mais gente com “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”! Eu, confesso, ando bastante descrente da humanidade. Não fosse a fé cristã, essa que move montanhas de arrogâncias e preconceitos, já teria desistido do ser humano. Mas se até Deus olhou para sua obra e viu que era muito boa, por que não continuar procurando essa bondade? Como cantam os Titãs, “quando não houver saída, quando não houver mais solução. Ainda há de haver saída, nenhuma ideia vale uma vida” (Sérgio Britto).

(Os grifos são nossos)

Sobre a autora

Solange do Carmo

Solange Maria do Carmo é teóloga-leiga, mestre em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Sua trajetória pastoral tem início nos anos 80, quando engajou-se em movimentos de juventude e, logo em seguida, descobriu a força da Palavra de Deus com grupos de reflexão bíblica na Universidade Federal de Viçosa, onde cursou engenharia agrícola. Durante dezesseis anos, ela serviu a Igreja como missionária leiga, engajada numa comunidade de vida que prestava serviços de evangelização e catequese nas dioceses onde morou (Mariana – 10 anos – e Paracatu – 6 anos). Sua trajetória catequética remonta o ano de 1991, quando juntamente com o Pe. Orione (diocese de Mariana), empreendeu um projeto de evangelização na cidade de Viçosa, na Paróquia Santa Rita de Cássia, onde residiam. Nasceu desta parceria um sonho de evangelizar crianças e adultos, proporcionando a todos a experiência cristã de Deus, por meio de encontros catequéticos semanais dos mais diversos tipos.

Fonte:

www.fiquefirme.com.br