Economia de Francisco: o projeto do papa Francisco para a economia

Por Eduardo Brasileiro

1. A proposta de Francisco

O papa Francisco faz um percurso imprescindível em seu sexto ano de pontífice da Igreja Católica, completos em 2019, trata-se do Congresso Economia de Francisco, inspirado a partir de uma ponte criada com o economista, Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel da Economia e Robert Johnson, presidente do Instituto de Novo Pensamento Econômico.

A reunião com os economistas e com o Francisco, teve a presença da Fundação de Direito Pontifício Scholas Ocurrentes (Escolas dos Encontros), fundada pelo Papa em 2013, que verte o desejo de uma cultura do encontro, a partir da educação, do esporte e da arte.

A reunião tornou concreto uma articulação global por meio de Scholas Ocurrentes em realizar na cidade de Assis – terra de São Francisco –, na Itália, um Congresso reunindo pessoas e sobretudo, jovens do mundo inteiro que desenham uma nova economia ou alternativas econômicas dentro do capitalismo neoliberal.

É fundamental trabalhar a partir da educação em sistemas alternativos que não tenham como premissa a ideia de idolatrar o dinheiro. Temos que buscar desenvolver programas e estudos em torno do conceito de economia circular, que contribuam para uma educação consciente da sustentabilidade ambiental, que requer devolver ao meio ambiente o que lhe é retirado”, disse Stiglitz, durante o encontro.

2. Integra da Carta do papa Francisco convocando o Congresso Economia de Francisco. (2)

Caros amigos, estou escrevendo para convidá-los a uma iniciativa que tanto desejei: um evento que me permita conhecer quem hoje está se formando e está iniciando a estudar e praticar uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda. Um evento que nos ajude a estar juntos e nos conhecer, e que nos leve a fazer um “pacto” para mudar a atual economia e dar uma alma à economia do amanhã.

Sim, precisamos “re-almar” a economia! E qual cidade seria mais adequada para isso do que Assis, que há séculos tem sido símbolo e mensagem de um humanismo da fraternidade? Se São João Paulo II a escolheu como ícone de uma cultura de paz, a mim parece também um lugar que pode inspirar uma nova economia. Aqui, de fato, Francisco se despojou de todo o mundanismo para escolher Deus como estrela guia de sua vida, tornando-se pobre com os pobres e irmão universal. Sua escolha da pobreza também deu origem a uma visão da economia que permanece muito atual. Pode dar esperança ao nosso amanhã, para o benefício não só dos mais pobres, mas de toda a humanidade. É necessária, aliás, para o destino de todo o planeta, a nossa casa comum, “a nossa Mãe Terra”, como Francisco a chama em seu Cântico do Irmão Sol.

Na Carta Encíclica Laudato si’ enfatizei como hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente conectado e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações.

Infelizmente, continua-se surdos ao apelo para tomar consciência da gravidade dos problemas e, acima de tudo, para pôr em prática um novo modelo econômico, fruto de uma cultura da comunhão, baseado na fraternidade e na equidade.

Francisco de Assis é o exemplo por excelência do cuidado pelos fracos e de uma ecologia integral. Lembro-me das palavras dirigidas a ele pelo Crucifixo na pequena igreja de São Damião: “Vá, Francisco, conserte a minha casa que, como você pode ver, está toda em ruínas”. Aquela casa a ser consertada diz respeito a todos nós. Diz respeito à Igreja, à sociedade e ao coração de cada um de nós. Também diz respeito cada vez mais ao ambiente que necessita urgentemente de uma economia saudável e de um desenvolvimento sustentável que cure suas feridas e garanta um futuro digno.

Diante dessa urgência, todos, todos nós mesmo, somos chamados a rever nossos esquemas mentais e morais, para que possam estar mais em conformidade com os mandamentos de Deus e com as exigências do bem comum. Mas pensei em convidar especificamente vocês, jovens, porque, com vosso desejo de um futuro bom e feliz, vocês já são uma profecia de uma economia atenta à pessoa e ao meio ambiente.

Caríssimos jovens, sei que vocês são capazes de escutar com o coração os gritos cada vez mais angustiados da terra e de seus pobres em busca de ajuda e de responsabilidade, ou seja, alguém que “responda” e não se vire para o outro lado. Se ouvirdes o vosso coração, sentireis que sois portadores de uma cultura corajosa e não tendes medo de assumir riscos e comprometer-vos a construir uma nova sociedade. Jesus ressuscitado é a nossa força! Como eu vos disse no Panamá e escrevi na Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit: “Por favor, não deixeis para outros o ser o protagonista da mudança! Vós sois aqueles que detêm o futuro! Através de vós o futuro entra no mundo. Também a vós, eu peço para serdes protagonistas desta mudança. […] Peço-vos para serdes construtores do futuro, trabalhai por um mundo melhor” (nº 174).

Vossas universidades, vossas empresas, vossas organizações são canteiros de esperança para construir outras formas de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do desperdício, para dar voz àqueles que não a têm, para propor novos estilos de vida. Enquanto o nosso sistema econômico-social ainda produzir uma vítima e houver mesmo que uma pessoa descartada, não poderá haver a festa da fraternidade universal.

Por isso desejo encontrar vocês em Assis: para promover juntos, através de um “pacto” comum, um processo de mudança global que veja na comunhão de intenções não somente aqueles que têm o dom da fé, mas todos os homens de boa vontade, para além das diferenças de credo e de nacionalidade, unidos por um ideal de fraternidade atento sobretudo aos pobres e aos excluídos. Convido cada um de vocês a ser protagonista deste pacto, assumindo um compromisso individual e coletivo para cultivar juntos o sonho de um novo humanismo que responda às expectativas do homem e ao projeto de Deus.

O nome deste evento – “Economia de Francisco”- tem clara referência ao Santo de Assis e ao Evangelho que ele viveu em total coerência também no plano econômico e social. Ele nos oferece um ideal e, de alguma forma, um programa. Para mim, que assumi seu nome, é uma fonte contínua de inspiração.

Junto com vocês e por vocês, farei um apelo para alguns dos melhores estudiosos e especialistas da ciência econômica, bem como a empresários e empresárias que hoje já estão empenhados em nível mundial com uma economia coerente com esse quadro ideal. Tenho confiança que eles responderão. E, principalmente, tenho confiança em vocês jovens, capazes de sonhar e prontos para construir, com a ajuda de Deus, um mundo mais justo e mais belo.

O encontro está marcado para os dias de 26 a 28 de março de 2020. Junto com o Bispo de Assis, cujo predecessor, Guido, há oito séculos acolheu em sua casa o jovem Francisco no gesto profético de seu despojamento, conto em acolher vocês também. Eu vos espero e desde agora vos saúdo e vos abençoo. E, por favor, não esqueçam de rezar por mim.

Do Vaticano, 1 de maio de 2019 – Memória de São José Trabalhador

3. Economia: projeto de ponte para os povos ou de muro do dinheiro?

Francisco abre as portas, pelo signo da misericórdia. Seu pontificado tornou-se chave que possibilita processos. O discurso convocando o Congresso Economia de Francisco, é um convite a desencadear processos que transformem a sociedade culturalmente. Em maio de 2018, no III Encontro Internacional de Jovens pela Cultura do Encontro (2), Francisco convidou a juventude a Pensar, Sentir e Agir, a insistência dele com a juventude passa pela renovação da esperança, pelo reencanto que provoca Pensar, quando se sente e age, sentir quando se pensa e age, e agir quando se pensa e sente. A consciência ao desencadear processos de Francisco está ligada a capacidade de oxigenar nas Igrejas particulares do mundo inteiro o sopro de mudança e de compromisso cristão.

3.1 Como a Igreja pode ser ponte para uma nova economia?

Para os cristãos três palavras vizinhas se enlaçam aqui: economia, ecologia, ecumenismo. As três compartilham o oikos: unidade básica social (casa, mas também mundo). Simplificando: economia → oikos + nomos (lei/norma); ecologia → oikos + logos (compreensão/estudo); ecumenismo → oikos + forma do particípio passivo feminino (habitado/habitantes). São assim três formas de estar no mundo e de organizar a vida no mundo. Enquanto a economia dispõe, normatiza sobre o modo de produção da vida na relação com o mundo, a ecologia se ocupa de entender essas relações suas lógicas e implicações e o ecumenismo se pergunta pelas formas (objetivas e subjetivas) de ocupação/vivência do mundo. Para seguir os passos de Francisco, essas três são sínteses desse papado, que confluí o desejo pelo cuidado da casa comum (Laudato Si), o diálogo entre fés (ecumenismo) e uma nova economia.

Então, tudo depende de como se entende a missão da religião, de modo especial, como entende-se a religião numa economia de mercado e suas relações com o mundo/planeta. Entendendo a economia como a forma básica de organização da sociedade e seus arranjos da vida material, seria importante perguntar pelas correlações entre crenças e as mobilidades/imobilidades sociais.

De um modo geral, a religião – de modo especial as novas formas religiosas dentro do cristianismo – cumpre seu papel hoje de “dar alma” para a lógica capitalista, liberando a acumulação privada de bens. Por isso, Francisco aponta para “Re-almar”. O capitalismo encontra na religião hoje um fundamento de justificação e legitimação das formas desiguais de usufruto do mundo. O dissenso se dá na apropriação da vida comunitária como objeto de manipulação do capital a partir da circulação dos bens religiosos. A teóloga e assessora da Comissão Pastoral da Terra, Nancy Cardoso (2010), alertou:

A crise espiritual e ética é também uma crise do modelo de apropriação do mundo pelas regras da propriedade privada que é antiética e idolátrica, porque coloca fora da história e da sociedade as legitimidades de posse do mundo. O desejo de conviver precisa se articular, então, com a ruptura da ordem da propriedade na afirmação dos direitos da terra e o direito dos povos”.

Nesse sentido, os sistemas de crença podem ser mais ou menos pressionados pelos conflitos econômicos e políticos, viabilizando narrativas de pretensão da norma, do conhecimento e da pertença. O reconhecimento dos impactos econômicos no corpo eclesial precisam ser revelados para um aggiornamento do anuncio do evangelho.

3.2 Essa economia mata: O Capitalismo como fim da utopia econômica.

a) A raiz econômica dos problemas sociais
Um dos aspectos presentes de maneira repetida e extremamente clara nos três pronunciamentos do Papa Francisco é a identificação da raiz econômica dos problemas sociais. A essencialidade da economia com relação à sociedade e ao ser humano é um dos pontos fundamentais desses discursos. Em nenhum momento o sumo pontífice se enreda em explicações abstratas e superficiais sobre os problemas, sobretudo em países periféricos.

Francisco rejeita os termos de uma economia assistencialista e individualista quando com os movimentos populares em 2014 convoca para uma solidariedade com caráter concreto de ação social transformadora que se dirige à base da organização social

Solidariedade […] é muito mais do que gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridades da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar pelas causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer frente aos efeitos destruidores do império do dinheiro (I Encontro dos Movimentos Populares, em Roma 2014)

Francisco vincula as causas estruturais da pobreza em relação direta com as causas econômicas:

Destaque para desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos laborais não são inevitáveis, são o resultado de uma previa opção social, de um sistema econômico que põe os benefícios acima do homem (II Encontro dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de La Sierra – Bolívia, 2015).

Ao falar do “elo invisível” que conecta as diversas formas de exclusão, o papa está expondo a essência que dá sentido aos fenômenos, que, caso não seja compreendida, tampouco avançaremos na compreensão das mazelas sociais. Quando aborda sobre a crise migratória, diz:

[…] Pude sentir de perto o sofrimento de numerosas famílias expulsas da sua terra por motivos ligados à economia ou por violências […] por causa de um sistema socioeconômico injusto e das guerras que não foram procuradas nem criadas por aqueles que hoje padecem a dolorosa erradicação de sua pátria (III Encontro dos Movimentos Populares em Roma, 2016).

b) A condenação profética ao sistema capitalista

Francisco retoma num discurso no III encontro com Movimentos Populares que sua revolta com o sistema está presente em toda a doutrina social da Igreja:

Há quase cem anos, Pio XI previu a imposição de uma ditadura global da economia, à qual ele chamou “imperialismo internacional do dinheiro”. Refiro- me ao ano de 1931! […] E foi Paulo VI que denunciou, há quase cinquenta anos, “a forma abusiva de domínio econômico nos planos social, cultural e até político” […] São palavras duras, mas justas dos meus predecessores que perscrutaram o futuro. A Igreja e os profetas dizem há milênios aquilo que tanto escandaliza que o papa repita neste tempo, no qual tudo isto alcança expressões inéditas. Toda a doutrina social da Igreja e o magistério dos meus predecessores estão revoltados contra o ídolo dinheiro, que reina em vez de servir, tiraniza e aterroriza a humanidade (III Encontro dos Movimentos Populares em Roma, 2016).

A idolatria do dinheiro não é para Francisco uma moral individual, um desvio de caráter relacionado na índole das pessoas, mas como um mal do próprio sistema. A economia – componente mais elementar da essência humana – degenerou-se quando o sistema colocou o capital (dinheiro) acima da vida e da dignidade humana.

Isto acontece quando no centro de um sistema econômico está o “deus dinheiro” e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que seja o denominador do universo. […] um sistema econômico centrado no “deus dinheiro” tem também necessidade de saquear a natureza, para manter um ritmo frenético de consumo que lhe é próprio. […] Porque neste sistema o homem, a pessoa, foi deslocada do centro e substituída por outra coisa. Porque se presta um culto idolátrico ao dinheiro (I Encontro Mundial dos Movimentos Populares em Roma, 2014).

A centralidade do discurso de Francisco nos três encontros mundiais com os movimentos populares, dão a tônica deste que se tornará o Congresso global para propor uma nova economia – a Economia de Francisco de Assis. Visitando as cosmologias do Sul, na América Latina, percorre o bem viver, filosofia em construção pelos povos latinos, que parte do modo de vida do povo ameríndio, mas que está presente nas mais diversas culturas. Está entre nós, no Brasil, com o teko porã dos guaranis, na ética e filosofia Africana do ubuntu – “eu sou porque nós somos”. Importante ressaltar que em nenhum dos três discursos do papa Francisco, pode-se encontrar alguma perspectiva de “melhorar” o sistema econômico existente, “este sistema vai contra o projeto de Jesus”(4). Por isso, é preciso negá-lo em nome da fé, dos povos da terra e da natureza. É o próprio capitalismo que não serve mais.

c) Qual caminho econômico não tomar?

Francisco em seu pragmatismo político, ao apontar os erros deste sistema, é também um exímio articulador de pensamentos. Ao pensar em quais fonte das ciências econômicas o papa recorre, ele aponta para as epistemologias do Sul, como diria o sociólogo Boaventura de Souza Santos, pensador que promove o debate sobre os abismos entre as epistemologias dos países do norte em relação a produção dos intelectuais do sul, nunca ouvidos pelo pensamento dominante. Ele aponta o padrão de hierarquização no qual, assim como as cultura, as epistemologias foram suprimidas com o processo de colonização. É necessário portanto, um diálogo das outras formas de saberes, propondo, portanto, uma ecologia de saberes.

Por isso, os teóricos de Francisco, são das periferias. Abaixo elenco os principais nomes que constroem o Congresso Economia de Francisco:

Amartya Sen, economista indiano, Prêmio Nobel de Economia em 1998 por sua contribuição às teorias da escolha social e do bem-estar social. Professor de Harvard (EUA), foi um dos idealizadores do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH e fundador do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do Desenvolvimento (Universidade da ONU). Sen é reconhecido internacionalmente por sua dedicação ao combate à pobreza com soluções concretas.

Muhammad Yunus, economista e vencedor do Prêmio Nobel, foi internacionalmente reconhecido pelo seu sistema revolucionário de microcrédito — a concessão de pequenos empréstimos a empreendedores demasiado pobres para se qualificarem para empréstimos de banco tradicionais — o que ajudou milhões de pessoas a escapar da pobreza. Nascido na cidade portuária de Chittagong em Bangladesh, a vida de Yunus é motivada pela sua visão de um mundo sem pobreza.

Vandana Shiva, nascida na Índia em 1952, é uma liderança socioambiental, ecofeminista, mundialmente conhecida. É uma das vozes mais expoentes na luta por alternativas ao capitalismo. A indiana defende a agroecologia como o ponto de partida para a realização das justiças social, econômica e ambiental. Sua luta vem de berço: nascida em 1952 em Dehra Dun, cidade do norte da Índia, aos pés do Himalaia, quase na fronteira com o Nepal e a China, Vandana é filha de mãe agricultora e pai guarda florestal. É doutora em física em seu país, com mestrado em filosofia da ciência.

Carlo Petrini é um jornalista italiano que fundou o movimento internacional Slow Food e foi uma das pessoas que encampou uma série de ações contra o fast-food, em especial contra o McDonald’s, quando este abriu uma lanchonete no centro histórico de Roma.

Tony Meloto, liderança nas Filipinas no combate a extrema pobreza.

Bruno Frey, economista suíço e professor visitante de Economia Política na Universidade de Basel. Ficou conhecido mundialmente por sua pesquisa de Economia da Felicidade.

Além desses, muitos outros teóricos e ativistas por uma nova economia. O sentimento: irrupção. Os movimentos populares em diálogo com o Papa, intelectuais, jovens vem apontando novos processos, sobretudo após o boom nas ruas de todo o mundo em reação a plutocracia internacional concentrado nas finanças globais contra o qual se levantou o movimento Occupy Wall Street em 2011.

As evidências se provam no desmanche do neoliberalismo e as sementes de revolta gerada nas populações do mundo inteiro. A crítica deriva da leitura da financeirização econômica do regime de acumulação ocorrida após a crise dos anos de 1970, com todas as suas implicações sobre a lucratividade das empresas e o aumento da desigualdade entre as classes sociais, como busca explorar a íntima conexão entre a mercantilização, a crise econômica e o Estado Neoliberal.

Desde o início dos anos de 1990, o Brasil foi tomado de assalto pelos ventos (neo) liberais, que já andavam assombrando o mundo havia uma década. Lá no centro do sistema, ou seja, nos países desenvolvidos, depois de anos de elevadas taxas de crescimento e forte presença estatal na economia, o aumento descontrolado das taxas da riqueza financeira começou a cobrar a conta e a exigir que fosse devolvido ao mercado o lugar de proeminência que o Estado havia lhe roubado (Welfare State – Estado de Bem Estar Social).

4. Neoliberalismo no domínio da racionalidade

O neoliberalismo se apresenta como um “movimento social ofensivo ‘dos de cima’” cujo objetivo é promover um amplo ajuste social capaz de concatenar as necessidades empresariais num contexto de crise de acumulação às exigências de reprodução da ordem política diante da crise de legitimidade promovida por um Estado nacional refém do poder das finanças globalizadas. O que se tem hoje é uma gestão da vida do povo a partir da flexibilização, com políticas de criminalização, punição e encarceramento massificado dos pobres.

Karl Polanyi, sociólogo austríaco, introdutor de uma nova sociologia econômica, percebeu o avanço descontrolado da mercantilização sobre mercadorias fictícias, isto é, o trabalho, a terra e o dinheiro, numa terceira onda da mercantilização, que num processo de espoliação, que é bastante visível quando se observa o aumento das desigualdades, a partir da precarização dos sistemas nacionais de saúde e educação pública.

Além da interpretação do neoliberalismo como espoliação, ganhou força na França, uma abordagem do neoliberalismo cuja ênfase recai sobre o povo à racionalidade neoliberal em duas dimensões decisivas, isto é, a dinâmica da concorrência e o modelo da empresa. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval (2016), uma “nova razão do mundo” teria resultado de processos políticos conduzidos por diferentes governos a partir dos anos 1980.

Trata-se de uma racionalidade que mobiliza todas as esferas da atividade humana sem se reduzir, conforme a interpretação exposta anteriormente, ao domínio das dinâmicas econômicas ou das estratégias políticas necessárias à reprodução da acumulação capitalista. De acordo com eles, o neoliberalismo não seria propriamente uma renovação do velho liberalismo, mas uma racionalidade global de novo tipo engajada na criação de políticas de apoio às empresas, de redução de custos trabalhistas, de desmantelamento do direito do trabalho e de estímulo ao empreendedorismo individual. O neoliberalismo criou um novo sujeito: o homem empresarial. O grande adversário a ser batido são as formas de solidariedade classista que ainda resistem à investidas desta racionalidade concorrencial.

O resultado além do sufocamento do sujeito solidário, há o reflexo do adoecimento, do aumento do suicídio, e dos inúmeros casos de esgarçamento da ideia de bem comum.

5. Apontamentos para a discussão brasileira.

Além do Neoliberalismo como racionalidade humana, a economia brasileira passa por um profundo processo de mudanças, estando em curso um novo padrão sistêmico de riquezas, conhecido como financeirização, sendo a riqueza gerada prioritariamente na esfera financeira e especulativa, e não mais na esfera produtiva (trabalho), sendo assim, marcando a concentração riquezas de um lado e a crescente desigualdade do outro lado. Esses fatores foram levantados pelo professor da PUC de São Paulo, doutor em economia, Ladislau Dowbor, que sentencia esse momento como a Era do Capital Improdutivo. Ele afirma: 42 pessoas possuem uma riqueza maior que os 50% da humanidade (Relatório OXFAM 2018, A distância que nos une), o que equivale a 3,7 bilhões de pessoas. Os efeitos da financeirização são perversos, pois drenam os recursos das famílias, das empresas e do governo. No Brasil a taxa média de crediário é de 88% ao ano, a taxa de juros no cheque especial é de 297% ao ano, e no cartão de crédito ela chega a 318% ao ano. A segunda maior taxa de juros na América Latina é do Peru, sendo de 53% ao ano. Por outro lado, na França, a taxa de juros no crédito não chega a 4% ao ano.

O Brasil precisa realizar uma ampla e profunda reforma do sistema financeiro, que implique na desconcentração do crédito, aumento da oferta monetária e limitação das taxas de juros, com o resultado de um ajuste fiscal – não nos investimento público como foi feito recentemente -, e sim, promova o aumento da receita tributária por meio da cobrança de impostos progressiva dos mais ricos do país, com combate à sonegação de impostos, promovendo assim a justiça social.

O Brasil tem a possibilidade de reunir forças outrora divergentes, – pois caminhavam em linhas alternativas -, para uma convergência nova: O projeto de ponte para os povos na reconstrução de uma matriz econômica alternativa ao Brasil, distante do neoliberalismo capitalista.

O grupo de trabalho formado no Brasil para discutir a economia de Francisco, dos muitos que poderão surgir, pretende pensar as possibilidades que se abrem com este Congresso. O encontro ocorrido em São Paulo, em 10 de julho, na Paróquia São Domingos, dos frades dominicanos, acolhida pelo Frei Betto, teve a presença de José Maria de Corral, presidente da Fundação Scholas Ocurrentes, que apresentou o projeto do Congresso e ouviu os apontamentos do grupo presente. Dentre os encaminhamentos, foi tirado os seguintes tópicos para ser debatido:

Para a Igreja: 

Segundo José Maria de Corral, é desejo de Francisco que o projeto caminhe com as igrejas locais, – por isso do primeiro encontro com ele ocorrer numa comunidade católica -, portanto, criar uma articulação brasileira via as comissões da CNBB, abrindo duas possibilidades de diálogo:

  • Fomentar o Projeto Economia de Francisco na Pastoral Juvenil Brasileira, desmembrando no Setor Juventude dos Regionais da CNBB;
  • Incidência em documentos internos da Igreja que formulem essas reflexões dentro das pastorais, haja vista que para as pastorais operárias (bastante fragilizadas) retoma fôlego com esse movimento de Francisco, porque o trabalho é central no desmonte dessaeconomia neoliberal e do empreendedor (essa com o toque neoliberal precisa beber desse movimento do Papa) convoca a uma conversão;
  • Espaço de Fóruns de Pastorais, dos Regionais da CNBB que articulem a ida de iniciativas de Igrejas locais para o encontro de Assis, em 26 à 28 de Maio de 2020;
  • Produção teológica a partir de uma Economia de Francisco de Assis;

Para os Movimentos Populares:

  • Grande Congresso Economia de Francisco ocorrendo simultaneamente aqui no Brasil;
  • Fomentar um circuito de reflexões, encontros no Brasil inteiro;
  • Articulação Brasileira: levar iniciativas, formulações, acúmulos que o nosso Brasil possui na proposta de uma nova economia para o Encontro Internacional em Assis, em 2020;

Para Intelectuais, jovens e empreendedores:

  • Formar uma equipe de comunicação brasileira sobre ECONOMIA DE FRANCISCO;
  • Elaborar textos e outros insumos para reflexão de uma economia anticapitalista;
  • Buscar apoiadores e patrocinadores – para levar jovens e grupos de todo o Brasil para esse encontro;

Notas:

1. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa- francesco_20190501_giovani-imprenditori.html. Acesso em: 24 jul. 2019.

2. III Encontro Mundial dos Movimentos Populares em Roma, 2016:http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/november/documents/papa- francesco_20161105_movimenti-popolari.html

3 Scholas Ocorrentes: Projeto Político-Pedagógico de Francisco que atualiza as CEB’s. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579478-scholas-ocurrentes-projeto-politico-pedagogico-de- francisco-que-atualiza-as-cebs

4. FRANCISCO, Papa. Discurso Para o II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, 2015. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa- francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html

Sobre o autor:

Eduardo Brasileiro, sociólogo pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), professor de jovens e adultos num Curso Profissionalizante gratuito na periferia de São Paulo, articulador de projetos sociais na Zona Leste de São Paulo e membro da Coordenação Paroquial de Pastoral de Nossa Senhora do Carmo, da Diocese de São Miguel Paulista.

Informações:

Foram abertas as inscrições para o encontro de três dias desejado pelo Papa Francisco, que pretende reunir em Assis, de 26 a 28 de março de 2020, jovens economistas, empreendedores, protagonistas de mudanças, provenientes de diversas partes do mundo. O convite para participar do encontro “The Economy of Francesco. Os jovens, um pacto, o futuro” vem diretamente do Santo Padre, e é dirigido a jovens de até 35 anos. O Site Oficial de a Economia de Francisco foi inaugurado nesta semana (22/02/2020)

https://francescoeconomy.org/ Inscrições até o dia 30 de Setembro de 2019page12image45909120

Bibliografia:

– FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco aos participantes do I Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Roma, 28 de Outubro de 2014: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa- francesco_20141028_incontro-mondiale-movimenti-popolari.html

– FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco aos participantes do II Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, 9 de Julho de 2015: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa- francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html

– FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco aos participantes do III Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Roma, 5 de novembro de 2016: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/november/documents/papa- francesco_20161105_movimenti-popolari.html

– DOWBOR, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo. São Paulo. Autonomia Literária. 2018.- LAVAL, Christian. DARDOT, Pierre. A nova razão do mudo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo. Boitempo. 2016.

– SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo. Companhia das Letras. 2009.

Notícias
IHU: Papa Francisco e Joseph Stiglitz querem estimular uma economia social de mercado que dê voz aos jovens: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589135-papa- francisco-e-joseph-stiglitz-querem-estimular-uma-economia-social-de-mercado-que-de- voz-aos-jovens


IHU: Stiglitz e Rodrik denunciam os limites da economia dominante: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589084-stiglitz-e-rodrik-denunciam-os-limites- da-economia-dominante


IHU: Papa lança um pacto global para mudar o modelo de economia: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589067-papa-lanca-um-pacto-global-para- mudar-o-modelo-de-economia

1 Comentário

  1. Projeto que trouxe esperança para todos nós que lutamos pela justiça e equidade entre os povos e também pela harmonia entre as pessoas gerando equilíbrio ecológico. Fantástico! Estou divulgando e contém comigo!

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