Assiste-se hoje a uma grande ascensão do pentecostalismo nas Igrejas cristãs. O fenômeno é complexo, gigantesco, largamente estudado e analisado a partir de abordagens teológicas, sociológicas, culturais, psicológicas e, recentemente, com o resultado das últimas eleições o fenômeno alcança também interesse das ciências políticas. No campo da liturgia cristã católica, chama a atenção o influxo das músicas de cunho gospel, oriundas do próprio meio pentecostal católico e, com menor penetração, das músicas gospel oriundas do meio pentecostal evangélico.
Cabe uma pergunta que delimita o interesse desse artigo: o que o repertório musical pentecostal das Igrejas tem a ver com a questão do seu estrondoso crescimento e com a experiência da fé cristã atual? Paradoxalmente, a pergunta comporta certa ironia e certa ingenuidade. É frequente subestimar, ou até suspeitar do aspecto litúrgico e de suas implicações eclesiológicas, o que talvez decorra de uma remota experiência marcada pelo clericalismo e pelo ritualismo de celebrações pouco permeáveis à participação dos fiéis, enrijecida por uma leitura fundamentalista das rubricas. Ademais, os ritos e símbolos sofrem de pungente suspeita, por parte de uma sociedade cada vez mais imediatista, racionalista e pragmática. Os elementos rituais e simbólicos são vistos, em tais horizontes, ou como inofensivos, ou como decorativos, escapando da ordem daquilo que se considera essencial, como a práxis pastoral, a moral, ou mesmo o pensamento teológico de corte especulativo e dogmático.
Uma música é composta de texto, melodia, ritmo e pelos instrumentos musicais, incluindo as vozes. [1] Cada um desses elementos musicais comporta um vasto campo explorado pelos respectivos especialistas. Assim, no campo da letra, os chamados “letristas” irão aprimorar e aprofundar com ferramentas próprias, as possibilidades e limites dessa tarefa. No campo da melodia, associado ao ritmo, os compositores se servirão de outro “texto”. Nas notas musicais com sua extensão melódica, organizadas e dispostas em compassos, tonalidades e combinações harmônicas, irão aprofundar outras tantas possibilidades e limites. Essas ferramentas musicais dos compositores, são como “ingredientes” usados simbioticamente para reforçar ideias, ou textos.
Pouco se pergunta pela motivação de seus autores e talvez aqui se enraíze a ingenuidade frente à essa ciência… Mesmo sendo verdade que música é para se ouvir, ou cantar, a sua principal finalidade musical pode, como uma deusa indiana, esconder uma infinidade de outros braços, dispostos ali para realizar outros interesses. Em geral, as pessoas não se perguntam, ouvindo um réquiem de Mozart, quando foi composta essa monumental obra clássica, em que contexto, ou inspiração que nos brindou com essa maravilhosa realização da arte. O corpo (audição) é que recepciona toda essa história contada e contida naquela partitura. Aos músicos deixamos a nobre tarefa de executá-la, aos musicólogos, num nível mais profundo e distante da maioria, a tarefa de perscrutar a tradução em notas musicais da psicologia e de toda a história do clássico compositor austríaco. Mas não nos enganemos! A melancolia, a tristeza ou mesmo a dor, expressas naquela obra, alcançam pela escrita musical e pela sua leitura (execução instrumental e vocal) – mesmo sem os estudos dos musicólogos – os ouvidos, as emoções e despertam a imaginação de gerações e gerações de ouvintes…
Em termos musicais, a liturgia cristã, desde tempos muito antigos, tratou de delinear seus princípios e propósitos. É o que nos relata o estudioso Xabier Basurko, em sua obra “O canto cristão na tradição primitiva”. [2] De um modo simples e conciso, a clara noção do mistério da fé cristã, celebrado nos ritos da Igreja, foi o eixo aglutinador dos critérios musicais da tradição da Igreja, por muitos séculos. Essa noção relacionou, de modo subordinado, a inspiração ao rito, o texto à Sagrada Escritura, a melodia e o ritmo à participação espiritual dos fiéis, o ofício ao ministério, o individual ao eclesial e a arte ao mistério. Essa unidade evoluiu e percorreu a história da música cristã, até o despontar moderno do valor da subjetividade, que conquistou em nossos dias, uma titânica proeminência. Hoje, no âmbito das celebrações, já não lidamos mais com a subjetividade, pois reina a ditadura do subjetivismo. Em tempos de pós-modernidade, a música “cristã” com todos os seus braços escondidos, alcança nossas assembleias com outros princípios e propósitos. Assim, a noção dada pela tradição é rompida no seu âmago: a música se subordina a outros ditames. A inspiração perde sua referência ritual, o texto descreve a relação pessoal com a experiência religiosa, a melodia e o ritmo obedecem aos ditames das necessidades psicológicas e catárticas, o ofício se submete ao sucesso e à conta bancária, o individual se sobrepõe ao sujeito eclesial, e a arte ignora o mistério. Temos, em nome de uma liberdade expressiva, a completa insubordinação ao mistério e, o que é mais temeroso, dentro das nossas liturgias.
Quais são os propósitos de tais composições? O que oferecem seus compositores? Convém deixar claro a despretensão de julgar a boa vontade de muitos músicos, pois também por eles pode perpassar inadvertidas ambiguidades. Sob uma suposta aura espiritual, ou interesse evangelizador, determinados conteúdos musicais (melodia e letra) podem funcionar como um cavalo de Troia, um belo presente, mas com um conteúdo estranho e até nocivo para a fé. Tomemos como exemplos, algumas músicas como a de Nelsinho Corrêa, claramente composta para a liturgia eucarística / rito da comunhão, onde a proeminência da experiência pessoal da comunhão extingue por completo a referência eclesial tão clara e cara à revelação (cf. 1Cor 10,17). A teologia eucarística que perpassa a música está calcada num viés devocional Outro exemplo, é o Pai nosso, gravada por Pe Marcelo Rossi, [3] onde a invocação Pai Nosso está emparelhada com “Pai, meu Pai do céu”. Note que o enfoque melódico recai sobre a segunda invocação “Pai, meu Pai…”, de tal modo a reforçar a experiência vertical com Deus, comprometendo a dimensão fraterno-horizontal que a expressão “Pai nosso” em sua originalidade exprime.
Poder-se-ia objetar dizendo, “Mas é só uma música! Que mal há nisso?” Neste casos, a título de exemplo, o conteúdo religioso, abertamente focado na experiência religiosa pessoal desconstrói o âmago da revelação cristã que se dá no horizonte comunitário da fé, de um Deus que é Pai de todos e da Eucaristia como sacramento que edifica a Igreja, comunhão com Deus que resulta e pressupõe a comunhão com os irmãos. Atente-se ainda que, a música, por sua força simbólica, é um dos poucos veículos da teologia para muitos dos fiéis, penetrando até mais profundamente que muitas homilias, formações ou catequeses… Mas qual teologia subjaz e se veicula em tais canções? Como são moldadas as consciências religiosas dos fiéis e qual perspectiva eclesial pode nascer disso?
Difícil referendar uma teoria conspiratória, e mais ainda comprovar uma agenda ideológica de manipulação com finalidades eclesiológicas. Mas não é difícil intuir que algo está mudando o perfil religioso de nossas Igrejas e de nossos fiéis, de uma forma sutil e, quiçá, insidiosa. Sendo a lex orandi (norma da oração) a causa da lex credendi (norma da fé) – e o axioma já foi usado invertidamente com fins ideológicos – no momento, já cabem as perguntas, a observação do modus operandi dessa onda pentecostal que pela musicalidade e pela liturgia movimenta o cristianismo, bem como a observação dos efeitos que isso já produz no seio da Igreja. Como o desafio pentecostal é grande e complexo, convém não aguardar os resultados. A tarefa evangelizadora da Igreja impõe também cuidar e vigiar pela fé recebida.
[1] FONSECA, Joaquim. O canto novo da nação do Divino: Música ritual inculturada na experiência do padre Geraldo Leite Bastos e sua comunidade. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 29-47.
[2] BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Paulus, 2005.
[3] Compositor não identificado. Nos sites de divulgação aparecem os seguintes nomes, não claramente indicados como autores: Luis Chaves, Jaidiel, Nei Fernandes…
Sobre o autor:
Padre Danilo César é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte. Formado em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico, Santo Anselmo, em Roma. Professor de Liturgia na faculdade de teologia da PUC Minas e membro da Comissão episcopal para a Pastoral Litúrgica da CNBB e do Regional Leste II. Membro da Rede Celebra, Rede de Animação Litúrgica e Pároco da Paróquia de Santana, em Belo Horizonte.
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