A missão da Igreja será melhor explicitada mais adiante, ao abordar a sua relação com o Reino de Deus e o Mundo. Limitar-nos-emos aqui e no artigo seguinte, à questão da fundação e da instituição da Igreja, assim como de sua razão de ser. Comecemos com a questão de sua fundação e instituição.
Já houve quem afirmou que Jesus pregou o Reino de Deus e, em seu lugar, os discípulos criaram a Igreja. Questões tais como se Jesus fundou a Igreja e, em que sentido ele o fez ou se realmente ele quis uma Igreja ou se, pelo menos, não a excluiu no futuro, só podem ser respondidas, abordando uma série de questões prévias.
As origens da Igreja
Onde está o começo da Igreja? Antigamente, para falar das origens da Igreja, se recorria aos escritos do Segundo Testamento. Entretanto, são textos escritos pela Igreja e quase uma geração depois de seu nascimento. Para isso, se evocava as aparições do Ressuscitado, crendo que elas foram ocasião para que os discípulos dispersos voltassem a congregar-se. Entretanto, a expressão – “Jesus ressuscitou” – já é uma afirmação de fé, própria de uma comunidade de fiéis. Também se recorria ao texto de Mateus – “tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”. Mas, é um texto tardio, uma profissão de fé de uma Igreja já atuante. As aparições legitimam a comunidade dos fiéis, mas não a criam.
Outro caminho que se costumava usar para identificar as origens e fundação da Igreja era evocar a efusão do Espírito de Pentecostes. Argumentava-se que foi com a efusão do Espírito que os discípulos inativos se tornaram ativos e, assim, teve início a Igreja. É verdade que, segundo a concepção de Lucas, a função histórico-salvífica dos doze consiste em transmitir a possessão do Espírito recebido em Pentecostes. Entretanto, seria o Espírito de Pentecostes uma realidade desconectada do evento histórico Jesus Cristo? Neste caso, a Igreja não teria nascido de Jesus, mas do Espírito.
Jesus e o Espírito Santo são constitutivos da Igreja
Estudos mais recentes mostram que, na realidade, a Igreja nasce nem só de Jesus e nem só do Espírito.
Para Lucas, a Igreja se faz presente sempre aonde se transmite, por tradição, o que foi recebido antes, na convivência com Jesus e na efusão do Espírito Santo que atuava em Jesus. Assim, o acontecimento de Pentecostes não é o único que constitui a fundação da Igreja, mas somente uma etapa da mesma.
Para Lucas, o acontecimento fundante da Igreja é a vocação ou a eleição dos doze (Lc 6,13), que são a Igreja em gérmen, que, pouco a pouco, vai se constituindo sob o dinamismo do Espírito.
Sem Pentecostes não haveria Igreja. O Espírito é constitutivo da Igreja. Mas também, sem Jesus, que chamou os doze como a Igreja em gérmen, tampouco ela teria nascido. Sem a obra de Jesus, por um lado, não teria havido a Igreja em gérmen no Cenáculo e, por outro lado, sem Pentecostes, os inativos não teriam se tornado ativos.
Será que Jesus quis fundar a Igreja?
Mesmo que a Igreja se remeta a Jesus de Nazaré, será que ele quis expressamente fundar a Igreja ou ela é consequência de sua obra?
Para W.G. Kumel, Jesus contava com a chegada iminente da parusia e, necessariamente, teve que excluir a intenção de fundar uma instituição para continuar sua obra. Para Kumel, ainda que relacionada com Jesus, a Igreja é posterior à Páscoa e considerada como uma solução intermediária. Como a parusia não veio e a segunda vinda de Jesus não aconteceu, os discípulos teriam criado a Igreja para esperar sua volta. A Igreja seria, por um lado, o resultado da dilatação da parusia e, por outro, da institucionalização da possessão do Espírito. Em outras palavras, pela possessão do Espírito os discípulos criaram a Igreja, que veio substituir o Senhor que não retornou.
Entretanto, como explicar uma continuidade, quase ininterrupta, entre a missão de Jesus e a atuação de seus discípulos, sem que Jesus tivesse querido um movimento para continuar sua obra?
Crer que a Igreja seja resultado da dilatação da parusia e uma solução intermediária, esbarra no fato justamente desta continuidade ininterrupta entre a morte de Jesus e Pentecostes, quando já aparece uma Igreja atuante.
A instituição da Igreja
E a Igreja, como instituição – sua organização, estruturas, ministérios, os sacramentos – vem de Jesus ou a comunidade dos discípulos foi criando de acordo com as necessidades que foram se apresentando na missão?
As duas coisas. Como a Igreja nasce nem só de Jesus e nem só do Espírito, também ela é instituída por Jesus e no Espírito. Os apóstolos e discípulos escolhidos e formados por Jesus já são a Igreja em gérmen, que no Espírito vai se constituindo em seu caminhar. Tradição é a história do Espírito Santo na história do Povo de Deus.
Da mesma forma que não há Igreja sem Jesus Cristo, também não há Igreja sem Espírito Santo. Igreja não é nem anterior e nem exterior ao Espírito Santo. Jesus e o Espírito são constitutivos da Igreja. Ela é, ao mesmo tempo, uma realidade histórica e escatológica. Como realidade histórica está referida ao mundo e como realidade escatológica está referida ao passado e ao futuro. Só desde este círculo histórico dialético-hermenêutico se pode entender a Igreja, como de fato ela é, fundada por Deus.
Sobre o autor:
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.
Fonte: