A memória do sangue dos mártires recorda-nos o chamado profético e revigora a nossa decisão batismal de deixar-se transformar pela acolhida do Reino e pelos desafios do seguimento de Jesus!
Muito já se escreveu sobre este acontecimento, que chocou a tantos, chamou a atenção para o papel da universidade no debate público, levantou uma série de protestos e inúmeras iniciativas de solidariedade, inspirou o compromisso profético na América Latina e em outras regiões. O que dizer ainda sobre este tema 30 anos depois? O que celebrar e por que celebrar? É preciso acreditar que o novo pode surgir, que aqueles que caem por amor ao advento de uma sociedade mais justa e solidária, merecem sim ser recordados, celebrados. Ai daqueles que esquecem seus mártires! O dever da memória, de uma “memória perigosa”, como a dos mártires da UCA, impõe-se, portanto, mesmo nesses tempos “líquidos”, aparentemente sem utopia e sem a “febre” da construção de “um outro mundo possível”. Neste tempo de incertezas pelo qual passa a América Latina e, em particular, nosso país, recordar Ellacuría, seus companheiros e colaboradoras, é um ato importante, sobretudo para nós enquanto instituição acadêmica. Ele nos leva à pergunta: nosso pensar contribui na formação de homens e mulheres que fazem a diferença, que incomodam os donos do poder, que colocam toda sua energia e inteligência ao serviço da justiça e da solidariedade? Confira:
30 ANOS DEPOIS: A MEMÓRIA REVOLUCIONÁRIA DO SANGUE DOS MÁRTIRES DA UCA
Por Geraldo De Mori SJ, Reitor da FAJE
No dia 16 de novembro de 2019 fazemos memória do 30º aniversário do martírio de Ignacio Ellacuría SJ, Ignacio Martín Baró SJ, Segundo Montes SJ, Amando López SJ, Juan Ramón Moreno SJ e Joaquín López SJ, como também de Elba Ramos e sua filha, Celina, que trabalhavam na residência dos jesuítas da Universidade Centro-Americana (UCA), em El Salvador, onde foram brutalmente assassinados.
Muito já se escreveu sobre este acontecimento, que chocou a tantos, chamou a atenção para o papel da universidade no debate público, levantou uma série de protestos e inúmeras iniciativas de solidariedade, inspirou o compromisso profético na América Latina e em outras regiões. O que dizer ainda sobre este tema 30 anos depois? O que celebrar e por que celebrar?
Numa cultura da imagem, onde o que mais se prima são o momento presente, o gozo e o consumo, recordar a violência à qual foram submetidos os jesuítas da UCA e suas colaboradoras parece um contrassenso ou algo ultrapassado. Aquilo no qual eles acreditavam e pelo qual apostaram a vida, a saber, uma sociedade justa, onde os pobres tivessem vida digna e fossem respeitados, parece não mais ter sentido. A utopia do Reino tampouco parece mobilizar o imaginário e o engajamento dos que lutam por sobreviver ou por ser incluídos num mundo em que o mercado dita suas regras. Por que sacrificar-se ou correr riscos se os poderosos sempre vencem e o mundo sempre foi assim?
Coincidentemente, o martírio da UCA aconteceu no mesmo ano da queda do muro de Berlim, que selou, segundo muitos, o fim da imaginação utópica e sua inspiração para o agir social e político de movimentos que lutavam por mais justiça e solidariedade. O mundo que emergiu desde então, globalizado, plural, fragmentado, centrado no presente, ignorando o passado e não se interessando pelo futuro, não se tornou, porém, melhor. Ao contrário, viu se acirrarem conflitos de todo tipo, fazendo crescer as ameaças à casa comum, produzindo homens e mulheres vulneráveis que, mesmo sem saber, continuam buscando dar sentido às suas existências, por meio de pequenos gestos que fazem irromper o novo.
Da adolescente Greta Thunberg ao professor Peter Tabichi, passando pelas inúmeras pessoas que, como as salvadorenhas Elba e Celina em 1989, gastam suas vidas nas tarefas mais cotidianas, muitas delas se confundindo com a luta pela sobrevivência, é preciso acreditar que o novo pode surgir, que aqueles que caem por amor ao advento de uma sociedade mais justa e solidária, merecem sim ser recordados, celebrados. Ai daqueles que esquecem seus mártires! O dever da memória, de uma “memória perigosa”, como a dos mártires da UCA, impõe-se, portanto, mesmo nesses tempos “líquidos”, aparentemente sem utopia e sem a “febre” da construção de “um outro mundo possível”.
Chama a atenção no martírio da UCA a preocupação dos assassinos em destruir os cérebros dos jesuítas. Esse ato chocante é muito simbólico. Ele mostra o quanto fazer pensar incomoda os donos do poder, qualquer que seja sua ideologia. Neste tempo de incertezas pelo qual passa a América Latina e, em particular, nosso país, recordar Ellacuría, seus companheiros e colaboradoras, é um ato importante, sobretudo para nós enquanto instituição acadêmica. Ele nos leva à pergunta: nosso pensar contribui na formação de homens e mulheres que fazem a diferença, que incomodam os donos do poder, que colocam toda sua energia e inteligência ao serviço da justiça e da solidariedade?
Que o martírio da UCA, como o de tantos discípulos e discípulas de Jesus ao longo da história, possa ser sementeira de homens e mulheres comprometidos com a construção de um mundo novo, que sua memória revolucionária nos estimule à entrega de nossa vida em tantas formas de serviço àquilo pelo qual Jesus apostou sua vida: o advento do Reino.
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