A santidade à luz da Exortação apostólica Gaudete et exsultate do papa Francisco

A santidade à luz da Exortação apostólica Gaudete et exsultate

Vaticano II: marco referencial

O magistério do papa Francisco está ancorado aos princípios teológicos e pastorais estabelecidos pelo Concílio Vaticano II. Seu intento vai além do mero desejo de uma reforma estrutural da Igreja. É preciso algo mais: propor a todos um caminho de renovação interior, que seja capaz de dar novo significado às estruturas eclesiais vigentes.

Assim, a Exortação apostólica Gaudete et exsultate – Sobre a chamada à santidade no mundo atual, do papa Francisco, pode ser lida à luz do quinto capítulo, da Constituição dogmática Lumen gentium, intitulado ‘Vocação universal à santidade na Igreja’. A leitura atenta da exortação papal, particularmente os artigos que compõem o seu primeiro capítulo – ‘A chamada à santidade’ – nos remetem ao pensamento dos padres conciliares.

Ao dirigir-se ao mundo em sua exortação, o Papa se apresentou como legítimo e fiel intérprete do espírito conciliar, um hermeneuta do Concílio Vaticano II, na busca incansável do diálogo entre a Igreja e os tempos modernos. Gaudete et exsultate expressa claramente a índole do programa evangelizador e reformador do papa Francisco, pois não haverá reforma estrutural na Igreja se antes não houver mudança de mentalidade ou conversão.

A conversão envolve todos os níveis da existência e se reflete na ação pastoral e evangelizadora da Igreja. Assim se expressou o Papa noutra ocasião: “Espero que todas as comunidades se esforcem por atuar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão” (EG 25). É a partir deste horizonte missionário que o Papa reflete sobre a urgência da santidade de vida, fonte de fecundidade para a ação pastoral e evangelizadora da Igreja, frente aos desafios sociais, culturais, econômicos e religiosos do mundo atual (GE 2).

O convite à alegria

A conclusão das bem-aventuranças – “Alegrai-vos e exultai” (Mt 5,1-12) é a porta de acesso ao documento, estruturado em cinco capítulos. O convite à alegria assemelha-se a um refrão que perpassa a exortação inteira. Destarte, o papa Francisco faz ressoar entre nós LG 41 e o seu ensinamento recente, proposto na Exortação apostólica Evangelii gaudium (EG 1).

Diz o Papa: “Não tenhas medo da santidade. Não te tirarás forças, nem vida, nem alegria” (GE 32). Continua Francisco: “O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança” (GE 122s). A alegria genuinamente cristã é fruto do Espírito Santo que produz nossa união com o Amado e nos dá a certeza da sua presença.

Um convite a todos

O convite à alegria é um apelo à conversão e à santidade de vida, e por isso se estende a todos. Bem recordou o Vaticano II em LG 40: “O Senhor Jesus pregou a todos a santidade de vida”. Este princípio universal do chamado à santidade de vida reaparece na atual exortação quando o Papa, citando LG 11, diz: “todos os fiéis, seja qual for a sua condição ou estado, são chamados pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um por seu caminho”. E ainda insiste Francisco: “Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos” (GE 14).

Em que consiste a santidade?

Abertura à transcendência

Para fazer ressoar hoje a chamada à santidade, o papa Francisco o faz, encarnando-a no contexto atual, com seus riscos e desafios. O conceito de santidade delineado pelo atual Sucessor de Pedro estabelece a ruptura com uma compreensão alienante e angélica da ‘vida em Cristo’, tão presente nos dias de hoje em diversos seguimentos da Igreja. Para Francisco vida santa não se confunde com um caminho retilíneo de acertos e êxitos. A santidade mais do que perfeição alcançada uma vez por todas, é vida que se abre em construção, inquietude que nos lança para frente rumo à meta: “A santidade é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração” (GE 146).

Na exortação, o termo santidade traduz o encontro da fragilidade humana com a força da graça, e por isso ser santo é tornar-se plenamente humano (GE 34), é ser fiel ao nosso próprio ‘ser’ (GE 32) original e querido por Deus.

Viver no Espírito

Nesta abertura do ser à transcendência, o Espírito derrama a santidade (GE 6) e ajuda o ser humano a interpretar o seu próprio caminho, fazendo com que ele traga à luz o melhor de si mesmo (1 Cor 12,7) e se liberte da obsessão, e até mesmo daquele peso de viver ou “imitar algo que não foi pensado para ele” (GE 11).

A santidade é fruto do Espírito (GE 15). Ele purifica, ilumina (GE 24), encoraja (GE 9.129), envia em missão (GE 26) ajuda a discernir os caminhos de santidade que o Senhor nos propõe (GE 23-24;150). Ele é força que nos impulsiona (GE 18) para que não caminhemos apenas dentro dos confins seguros, mas nos deixemos surpreender por Deus (GE 133). O dinamismo do Espírito Santo modela nossa existência sobre a vida de Jesus ressuscitado (GE 20.21.139) e enche de alegria a vida dos discípulos de Cristo (GE 124).

Viver em Cristo

No horizonte da fé cristã, recorda o Papa, não se pode falar de santidade sem uma referência explícita ao evento Cristo. Uma vida santa possui espessura cristológica e pascal: “No fundo, a santidade consiste em associar-se de uma maneira única e pessoal à morte e ressurreição do Senhor. Mas pode também envolver a reprodução na própria existência de diferentes aspectos da vida terrena de Jesus: a vida oculta, a vida comunitária, a proximidade aos últimos, a pobreza e outras manifestações da sua doação por amor (GE 20-21)”. Esta identificação com Cristo e os seus desígnios requer o nosso empenho e compromisso na construção do Reino, com Ele, este Reino de amor, justiça e paz para todos (GE 25.28).

Viver em fraternidade

Contrariando a forte tendência individualista que permeia até mesmo os espaços eclesiais, o Papa reafirma a dimensão comunitária da fé e da salvação, e o faz citando LG 9: “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente”. A salvação divina se dirige a um povo. “Por isso, ninguém se salva sozinho, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar em uma dinâmica popular, na dinâmica de um povo” (GE 6). Fomos criados para a comunhão, somos salvos e também nos santificamos na comunhão, pois a “santificação é um caminho comunitário, que se deve fazer dois a dois” (GE 141). Aqui se esclarece o princípio teológico delineado pelo papa Francisco: “A santidade é o rosto mais belo da Igreja” (GE 9). Ela aparece e atua no mundo enquanto “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4).

A Constituição dogmática Lumen gentium (40) e a exortação apostólica Gaudete et exsultate (118), são concordes em afirmar que a santidade que Deus dá à sua Igreja, vem através da humilhação do seu Filho, mediante a qual Ele derrama sobre ela o Espírito Santo.

O rosto da santidade

Ao dizer que a santidade é o rosto mais belo da Igreja, o papa Francisco recorda o testemunho e a vida de uma multidão de homens e mulheres que nos estimula a continuar a corrida rumo à meta (GE 3). No fundo, o Papa quer afirmar que o rosto da Igreja é Cristo mesmo, de quem a multidão inumerável é testemunha. “E entre tais testemunhas, podem estar a nossa própria mãe, uma avó ou outras pessoas próximas de nós” (GE 3).

O rosto de Cristo, qual um mosaico, torna-se visível pela ação do Espírito na vida de cada cristão. Podemos então nos perguntar:

Quem são estes homens e mulheres dignos de veneração?

São aqueles que refletem a presença de Deus no mundo, pois já chegaram à sua presença e mantém conosco laços de amor e comunhão (GE 4.7).

Que lugar eles ocupam na história da salvação?

Cada santo é uma missão, um projeto do Pai que visa refletir e encarnar um aspecto do evangelho (GE 19). Cada Santo é uma mensagem que o Espírito extrai da riqueza de Jesus Cristo e dá ao seu povo (GE 21). Eles refletem algo de Jesus Cristo para o mundo de hoje (GE 22-23).

Qual o significado e legitimidade do culto a eles na Igreja?

A vida doada, simples e humilde destes homens e mulheres manifesta uma imitação exemplar de Cristo, e é digna da admiração dos fiéis (GE 5) “Os santos surpreendem, desinstalam, porque a sua vida nos chama a sair da mediocridade tranquila e anestesiadora” (GE 138).

Proclamar a santidade da Igreja 

Disto decorre a importância dos processos de beatificação e canonização na Igreja hoje. Os postuladores e membros dos tribunais instituídos nas diversas Igrejas particulares, presentes no mundo inteiro, são servidores do Povo de Deus. A eles se aplicam também as palavras do Papa: “a Igreja não precisa de muitos burocratas e funcionários, mas de missionários apaixonados, devorados pelo entusiasmo de comunicar a verdadeira vida” (GE 138).

Os postuladores, revestidos do espírito de serviço, são também missionários que anunciam em nossas comunidades a beleza da santidade de vida. Mesmo quando o trabalho de um postulador ou tribunal pareça algo muito burocrático, restrito ou privado, faz-se necessário banhá-lo com o entusiasmo missionário. É preciso comunicar a verdadeira vida que se manifesta na história pessoal daqueles (as), cuja investigação em vistas da beatificação e canonização, se realiza em nossos tribunais diocesanos.

Na Igreja, o postulador é o hermeneuta daquela palavra que o Senhor quer dizer ao seu povo através de um santo (GE 22). Daí a norma proposta pelo Papa, pedra miliar a nos conduzir ao longo do serviço que os tribunais prestam ao povo de Deus: “não convém deter-se nos detalhes, porque nisso pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autentico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto da sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa” (GE 22). Neste arco existencial e totalizante se inserem os “sinais de heroicidade na prática das virtudes, o sacrifício da vida no martírio e também os casos em que se verificou um oferecimento da própria vida pelos outros, mantido até à morte” (GE 5).

Chamados à santidade também

O contato quotidiano com a vida dos irmãos e irmãs que formam o elenco dos bem-aventurados se transforma naquele forte e suave convite à santidade, mas cada um por seu caminho. O Papa nos fala também acerca da atividade que santifica. Assim ele deseja nos recordar que nos santificamos no exercício responsável e generoso da nossa missão (GE 27), mas só isto não basta; é preciso cultivar os momentos de quietude, solidão e silêncio para o diálogo com Deus. A vida de oração é requisito indispensável para a vivência em profundidade das nossas tarefas. (GE 29). Na compreensão do Papa, sem oração não há possibilidade de vida santa: “Não acredito em santidade sem oração, embora não se trate necessariamente de longos períodos ou de sentimentos intensos” (GE 147).

Dentre os meios propostos pela Igreja para a nossa santificação pessoal, o Papa coloca em evidencia a Palavra e a Eucaristia. A Palavra tem a força de transformar a nossa vida e atinge sua plena eficácia na Eucaristia, presença real daquele que é a Palavra viva (GE 156-157; LG 42).

Precisamos de um espírito de santidade que impregne tanto a nossa solidão como o serviço que prestamos, tanto a intimidade como a tarefa evangelizadora que realizamos juntos aos tribunais instituídos em nossas dioceses, para que cada instante seja expressão de amor doado sob olhar do Senhor. Desta forma, todos os momentos serão degraus no nosso caminho de santificação (GE 31).

Portanto, “deixa que a graça do teu Batismo frutifique em um caminho de santidade. Deixa que tudo esteja aberto a Deus e, para isso, opta por ele, escolhe Deus sem cessar. Não desanimes, porque tens a força do Espirito Santo para tornar possível a santidade e, no fundo, esta é o fruto do Espírito Santo na tua vida [Gl. 5,22-23]” (GE 15).

Dom Geovane Luís da Silva
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, bispo referencial da Região episcopal Nossa Senhora da Piedade – RENSP