Nesses dias de Sínodo para a Amazônia em Roma, diversas Comunidades Latino-americanas nos pedem para fazer essa memória história a partir do pensamento e práxis de dom Pedro, profeta e fiel discípulo do Nazareno.
(O artigo é de Jaime Escobar Martínez, publicado por Reflexión y Liberación, 10/10/2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo)
No dia de sua consagração como bispo em 1971, dom Pedro Casaldáliga publicou o que seria a primeira denúncia mundial sobre a situação da Amazônia. Essa ação pelo bem dos pobres e despossuídos lhe custou várias ameaças de morte.
A Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, denominada “A Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e marginalização social”, é um interpelante documento histórico que marcar um antes e um depois na defesa dos povos indígenas, do meio ambiente, da situação da mulher e na luta contra a pobreza e marginalidade. É a primeira vez que um bispo de posiciona tão abertamente na bela Amazônia.
Recordando a jornalista Beta Compurbí: “naqueles anos, as terras de Mato Grosso estavam dominadas por superposições de título de propriedade, em herança principalmente, da Lei de Terras de 1850 que repartiu ilegitimamente territórios ancestrais indígenas criando imensas propriedades agrárias de até 7 mil km². Eram terras de pistoleiros, de desamparo jurídico e institucional”, onde a violência era o método com que se resolviam os conflitos. Dom Pedro Casaldáliga enterrou muitos campesinos, sem-terras e indígenas, naqueles tempos.
Ao longo de 30 páginas de Carta Pastoral, o bispo Pedro analisa rigorosamente a situação de escravidão e violência em que viviam os povos e comunidades da Amazônia, denunciando os problemas ambientais que, já então, se começavam a perceber e, claro, o genocídio dos Povos Indígenas que os latifundiários estavam levando a cabo com o beneplácito do Governo militar brasileiro.
Explicita isso em sua profética Carta Pastoral, citando o professor Hélio de Souza Reis: “Indiferentes a tudo, [os campesinos] tratam de ganhar o pão de cada dia, pois para eles somente existem dois direitos: o de nascer e o de morrer”.
Um texto profético
Em tempos em que quase ninguém falava da causa indígena; quando a preocupação pelo Meio Ambiente não estava em pauta de nenhuma discussão; e quando a pobreza extrema dos peões, frequentemente escravizados, era um assunto longe de qualquer foco midiático ou eclesiástico, a Carta Pastoral de 1971 de dom Pedro, se converte em um documento que sacode o Brasil e que internacionaliza e põe luz sobre a cruel situação econômica, social e ambiental da Amazônia.
O documento eclesiástico teve que ser impresso na clandestinidade, fora da região do Araguaia, pela fiel colaborada de Pedro, a irmã Irene Franceschini: Aquela mulher que, em plena ditadura, levou em uma caixa envolta com um pano, a primeira Carta Pastoral de Pedro Casaldáliga em um avião militar! Quando lhe perguntaram o que levava, ela respondeu “medicamentos, alguma roupa, coisas sem importância… se quiser pode abrir…”!
A carta do bispo Pedro teve eco na maioria de periódicos e publicações de todas partes do Brasil e desencadeou uma revolução em plena repressão militar, quando os interesses econômicos afins ao regime estavam se repartindo pelo Centro Oeste do país nas costas dos povos indígenas, dos peões e do meio ambiente. Assim descreve com precisão o sociólogo José de Souza Martins (1995), “o documento é um dos mais importantes na história social do Brasil”.
Obrigado dom Pedro por este legado que difundimos com alegria no coração, dando Graças por teu bonito testemunho de vida boa para todos e todas em tua querida Amazônia que hoje se expressa com liberdade, canta e dança na mesmíssima Basílica de São Pedro no Sínodo convocado pelo indomável papa Francisco. Graças a Deus!
A seguir, a profética Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga na íntegra:
Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social
Pedro Casaldáliga
bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia Carta Pastoral
São Félix do Araguaia, 10 de outubro de 1971
Depois de três anos de “missão” neste norte do Mato Grosso, tentando descobrir os sinais do tempo e do lugar, juntamente com outros sacerdotes, religiosos e leigos, na palavra, no silêncio, na dor e na vida do povo, agora, com motivo da minha sagração episcopal, sinto-me na necessidade e no dever de compartilhar publicamente, como que a nível de Igreja nacional e em termos de consciência pública, a descoberta angustiosa, premente.
Para dar a conhecer esta Igreja às outras Igrejas irmãs, à Igreja.
Para pedir e possibilitar, também desde esta Igreja, uma maior comunhão, uma colegialidade mais real, uma mais decidida corresponsabilidade. Talvez também para despertar e chamar respostas e vocações concretas…
Nenhuma igreja pode viver isolada. Toda igreja é universal, na comunhão de uma mesma Esperança e no comum serviço do amor de Cristo que liberta e salva. “…Cada parte cresce por comunicação mútua e pelo esforço comum em ordem a alcançar a plenitude na unidade”. (Lumem Gentium, 13).
O “momento publicitário” de projetos e realizações que a Amazônia está vivendo, e a opção de prioridade que a própria Igreja do Brasil fez por ela, através da CNBB, justificam também com nova razão esta minha declaração pública.
Se “a primeira missão do bispo é a de ser profeta” e “o profeta é a voz daqueles que não têm voz” (card. Marty), eu não poderia, honestamente, ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal.
Parte I Situação Geográfica
Esta Prelazia de São Félix, bem no coração do Brasil, abrange uns 150.000 Km2 de extensão, dentro da Amazônia legal, no nordeste do Mato Grosso, e com a Ilha do Bananal em Goiás. Está encravada entre os rios Araguaia e Xingu e lhe faz como de espinha dorsal, de Sul a Norte, a Serra do Roncador.
O decreto de ereção da Prelazia, “Quo commodius”, assinado por Paulo VI, aos 13 de março de 1970, define assim os limites estritos da Prelazia de São Félix: “Ao norte, os confins da Prelazia de Conceição do Araguaia, que atualmente delimitam os Estados do Pará e Mato Grosso; ao leste os confins da Prelazia de Cristalândia, e ao oeste os da Prelazia de Diamantino, ou seja os rios Araguaia e Xingu; ao sul a linha traçada em direção noroeste desde a confluência dos rios Curuá e da Mortes; e daí em linha reta até a confluência dos rios Couto de Magalhães e Xingu”.
Compõem o solo da Prelazia terras de mata fértil, florestas, grandes pastagens, margens de areia e argila, campos e cerrados, sertão e varjões. Duas estações, bem marcadas, de clima sub-equatorial, se repartem o ano todo: ” as chuvas”, de novembro até abril, e ” a seca” de maio a outubro.
Cruzam o território duas estradas “de terra”, de empreendimento da SUDECO, (a BR-158, Barra do Garças- Xavantina- São Félix, e a BR-80, em construção, Araguaia-Xingu – Cachimbo- Cuiabá/Santarém).
A Prelazia compreende todo o município de BARRA DO GARÇAS. Além da Ilha do Bananal, formada pêlos dois braços do rio Araguaia.
SÃO FÉLIX, a sede da Prelazia, é só distrito e pertence à Prefeitura de Barra do Garças, a uma distância de quase 700 Km2. (1)
Dentro da área do município de Barra do Garças, além da sede da Prelazia, com uns 1.800 habitantes, situam-se os povoados de Pontinópolis, Campos Limpos/ Cascalheira, Santo Antônio, Serra Nova, Garapu, barreira Amarela… O município de Luciara inclui a sede da Prefeitura (2) . e os lugarejos de Santa Terezinha (com o antigo núcleo fundacional de Furo das Pedras), Cedrolândia/ Porto Alegre, Lago Grande,” 2 de Junho”, São Sebastião”, … Dentro da Ilha do Bananal está Santa Isabel do Morro – “a capital”, com aeroporto oficial da FAB -, São Jõao do Javaé e Barreira de Pedra.
Exista na área da Prelazia as aldeias indígenas da metade leste do Parque Nacional do Xingu, à margem direita do rio, e as aldeias de São Domingos, Santa Isabel, Fontoura, Macaúba, Tapirapé, Canuanã, Cachoeirinha, Areões, Barra do Tapirapé e Luciara.
Localizam-se na região a maior parte dos empreendimentos agropecuários – Fazendas ou companhias – aprovados pela SUDAM.
Entre eles, a Suiá-Missu, Codeara, Reunidas, Frenova, Bordon, Guanabara, Elagro, Tamakavy etc.
Parte II Panorâmica Sócio-Pastoral
Torna-se praticamente impossível, por enquanto, dar uma estatística do contigente humano a que habita o território da Prelazia.
Os dados do IBGE para todo o município de Barra do Garças, no recenseamento de 1970, apontam uma cifra de 28.403. Entretanto a estimativa da população total, segundo os “Dados estatísticos do município de Barra do Garças, MT” (Secretaria municipal de Educação e Saúde, 23 de março de 1971), é de 52.000. Para o município de Luciara, o Censo de 1970, do mesmo IBGE, assinala o número de 5.332 habitantes…
A estimativa aproximada de toda a população flutuante ao lado da população relativamente fixa. (Pode-se considerar tônica de todo o setor humano da região, excluído o indígena, a instabilidade habitacional.)
A Maior parte do elemento humano é sertanejo: camponeses nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do Pará, do Ceará, do Piauí…, ou passando por Goiás. Desbravadores da região, “posseiros”. Povo simples e duro, retirante como por destino numa forçada e desorientada migração anterior, com a rede de dormir nas costas, os muitos filhos, algum cavalo magro, e os quatro “trens” de cozinha carregados numa sacola.
Adauta Luz Batista, filha da região e protagonista da história local, se refere a eles com este significativo depoimento: “Acostumados com a aspereza da vida agreste, desprezados pela esfera dos altos poderes, ludibriados na sua boa fé de gente simples, eles vêem os seus dias, à semelhança das nuvens negras, sempre anunciando um mau tempo. Ele (o sertanejo) é a vítima da ganância alheia, da inconsciência dos patrões, da exploração dos trêfegos políticos que na região aparecem de eleição em eleição para pedir voto e mais que tudo isto, da sua própria ignorância. É o homem que comete muitas das vezes um crime, porque embargando-se-lhes o direito, só lhe resta a violência. Esse infeliz, sobejo das pragas e da verminose, vive na penumbra de um futuro incerto.
“Indiferentemente a tudo, eles vão ganhando o pão de cada dia, pois para eles só existem dois direitos: o de nascer e o de morrer. O produto de seus esforços somado ao de seus sacrifícios, vai aparecendo lentamente nos grandes armazéns das vilas, ou numa cabeça de gado a mais nas fazendas circunvizinhas. Uma doença, uma boda, uma viagem, podem acabar com toda uma vida dolorosas poupanças. O sertanejo nunca conheceu a lei do protesto, das greves, do direito ou do uso da razão. Todo o seu cabedal histórico está dentro das quatro paredes de um mísero rancho e na prole que aparece descontroladamente. Desfaz as suas profundas mágoas entre um e outro copo de cachaça, ou num cigarro de palha, cujas baforadas se encarregam de levar bem longe a infelicidade que ele tem bem perto”. (Da “pesquisa Sociológica” realizada pelo professor Hélio de Souza Reis, em São Félix, durante o ano de 1970).
Os indígenas constituem uma pequena parte dos moradores. Os Xavante: caçadores, fortes, bravos ainda faz poucos anos quando semeavam o terror por estas paragens. Receosos. Bastante nobres Os Carajá: pescadores, comunicativos, fáceis à amizade, festeiros, artesãos do barro, das penas dos pássaros e da palha das palmas; moles e adoentados, particularmente agredidos pelos contatos prematuros desonestos com a chamada Civilização, por meio do funcionalismo, do turismo e do comércio: com a bebida, o fumo, a prostituição e as doenças importadas. Os Tapirapé: lavradores, mansos e sensíveis; mui comunitários e de uma delicada hospitalidade.
A várias tribos agrupadas dentro do parque Nacional do Xingu seriam oficialmente virgens se beneficiaram de um certo isolamento, depois de sofrer maior ou menor deportação. Foram porém afetadas por presenças e atuações discutíveis.
O restante da população está formado por fazendeiros, gerentes e pessoal administrativo das fazendas latifundiárias, QUASE SEMPRE SULISTAS DISTANTES, como estrangeiros de espírito, um pouco super-homens, exploradores da terra, do homem, e da política. Por funcionários da FUNAI e de outros organismo organismos oficiais, com as características próprias do funcionário “no interior”. Por comerciantes e marreteiros, motoristas, boiadeiros, pilotos, policiais, vagabundos, foragidos e prostitutas. E principalmente por peões: os trabalhadores braçais contratados pelas fazendas agropecuárias, em regime de empreitada. Trazidos diretamente de Goiás ou do Nordeste, ou vindos de todo canto do país; mais raramente moradores da região, que neste caso são comumente rapazes. (Muitos dos peões passam a ser moradores da região após se “libertar” do serviço das fazendas.)
Para uma apreciação pastoral do elemento humano da Prelazia seria preciso distinguir as diferentes faixas de população que acabo de anotar.
É interessante reconhecer aqui um trecho da apreciação que faz sobre o racismo na região a citada ” Pesquisa sociológica” : “Há uma série de degraus na consideração racistas das pessoas: Sulista-sertanejo (nordestino); Branco-Preto; “Cristão”- Índio. O Sulista fala em “essa gente”, “esse povo”, “aqui nunca viram, não sabem nem…”, “são índios mesmo”, etc… O índio não é considerado gente pelo sertanejo. Ninguém confia em índio. Expressões sintomáticas: ” O governo nos trata como carajá”. Quando um índio atua, reage, se comporta “normalmente”, o comentário é: “… que nem gente”, ” feito gente”… “Fulano tem cabelo bom”, “sicrano tem cabelo ruim”:… o branco é considerado superior e tem cabelo liso, logo o cabelo liso é bom, superior; e o cabelo pixaim é ruim, inferior, por se negro, considerado raça inferior…”.
Há umas constantes de conduta, mais ou menos comuns em todos os moradores desta região, derivadas da situação ambiente (clima, distâncias, mobilidade). Outras constantes talvez poderiam se considerar patrimônio comum da alma brasileira.
O povo da Prelazia, mais estritamente tal – o sertanejo – é o povo nordestino depois, de alguns anos – e até muitos – de vida retirante, e havendo incorporado à sua vida os condicionamentos da região.
É um povo de admiráveis virtudes básicas: a hospitalidade universal, espontânea, sem preço: levando mesmo à filiação adotiva. Uma hospitalidade que se sente e se pratica como dever natural. A Abnegação. “O sertanejo é antes de tudo um forte”, disse Euclides da Cunha. É um forte de espírito. A resignação, quando não for fatalismo e passividade. Uma resignação de última instância que a gente adivinha como sendo um abstrato de esperança teologal. O sentido religioso da vida, do universo. A maleabilidade, a capacidade de admirar, de escutar, de aprender. Uma profunda vida interior: de experiência, de silêncios, de reflexão – mesmo – elementar, de saudável astúcia. A simplicidade: uma pureza de espírito que se revela entre nos “pecados” e “crimes”. A coragem frente a natureza brava, contra o “destino” e a injustiça permanente, no total abandono sócia. (Um posseiro – moço novo – ameaçado de morte pelos poderes do latifúndio e com a perspectiva de deixar órfãos 7 filhos, crianças, expressava-se assim: “Confio em mim; e confio em Deus. A vida que eu tenho, eles têm. Eles têm o medo que eu tenho… Deus quando dá filhos confia nele mais do que no pai… Eu não vi pai na minha casa!”
É um povo religioso. Acredita em Deus, sem discussão. Com uma fé primitiva, entre o “terror de Deus” e a gratidão mais sentida. Aquele “graças a Deus”, tirando o chapéu e com os olhos levantados, é todo um símbolo. As promessas são cumpridas fielmente de geração em geração. Tudo vem de Deus. Diretamente. As “causas segundas” ou a secularização seriam para esta gente uma presunção temerária, uma monstruosa heresia. Toda desgraça é um castigo de Deus. Deus é um instrumento mágico. Pode-se até prescindir dos meios naturais: “Com fé em Deus…”
Transcrevo o julgamento, para ser meditado, da “Pesquisa Sociológica” do professor Hélio: “Os homens dos sertões brasileiros, ainda que batizados, foram e ainda são abandonados pela Igreja. São cristãos esparramados por estes sertões infindos, que passaram anos sem ver cara de padre, a não ser no tempo das desobrigas. A Igreja parece ter doado a atitude da classe dominante, que considera o sertanejo um sub-homem, sem direitos. E por analogia, um cristão de 2a classe. E hoje deparamos com o catolicismo das promessas, dos santos e dos espíritos: um verdadeiro sincretismo religioso, onde a ignorância e as superstições florescem viçosamente”.
O povo pratica, com zelo quase fanático na materialidade do ato, (com visível distância espiritual, em muitos casos, por parte dos homens e da gente nova), as características “rezas”, “bênçãos”, “novenas”, guarda de inumeráveis dias santos e ritos vários (nas doenças, nos encontros, no trabalho, no enterros, nos mil momentos da vida; até no jeito próprio de colocar as balas no revólver…).
A superstição (assombração, benzeção, mitos, feitiço, messianismo, fatalismo) domina profundamente a alma deste povo, mesmo quando encoberta por uma capa externa de conscientização, de machismo ou de modalidade.
A desobriga sacramentalizou sem evangelizar, sem edificar Igreja. Os sacramentos são mais uma “benção”. Procura-se o batismo dos filhos como uma saída automática do paganismo, como um salvo-conduto e até como um remédio. Pede-se até batizar os filhos já mortos. O crisma é apenas uma nova oportunidade de arranjar padrinhos: duvido que uma dúzia de pessoas de toda a região pudesse dar sua idéia certa do que realmente a Confirmação. A eucaristia é ignorada. A Missa é uma reza. Quando o padre passava, nas desobrigas, eram “batizados” sobre o altar os santinhos e as imagens. E escutava-se com fé, mas sem poder entender. E aquela era a oportunidade do encontro, dos noivados fulminantes, dos batizados, de casamento “no queima” (3) das festas e das bebedeiras, das brigas e tiros também. O casamento “no padre”, “pela Igreja”, “religioso”, é reconhecido como o verdadeiro matrimônio, porém aceita-se com a maior naturalidade o simples casamento civil, durante anos, ou o amigamento, e se “largam” marido e mulher com uma freqüência preocupante.
O sacerdote, o padre batiza e casa, traz remédios, dá carona, sabe muito. É diferente. Está de passagem. É respeitado, até o medo. (O povo conheceu muitos padres “bravos”). E quase sempre é um estrangeiro. Certamente esta imagem do padre, na Prelazia, está-se modificando, e essa mudança questiona e compromete a fé do povo.
A Moral sofre particularmente pelas leis primárias de vingança – hereditária muitas vezes, verdadeiro ônus familiar -, da justiça tomada por própria mão; pela valentia e pela embriaguez freqüentíssima. (Ao longo da estrada e em todo canto de rua surgem os botecos de pinga. O maior comércio da região é a cachaça). A infidelidade conjugal. A fragilidade da família, uma sexualidade entre primitiva e mórbida, tropical e de compensação, abalam também constantemente a Moral. A prostituição é praga. De São Félix têm-se feito cálculos e juízos alarmantes. O “Pingo” – cabaré local – funciona em plena cidade para escândalo das famílias e dos menores e para ameaça da saúde e da segurança pública. O mesmo acontece em outros povoados da região. A maioria das “raparigas” já foram casadas; são “largadas” do marido. A idade prematura com que as moças se casam – as que não se casaram antes do 18 anos se consideram ou são consideradas “coroas”, feita exceção das estudantes – pode ser uma explicação fundamental do caso.
O fatalismo e a irresponsabilidade se conjugam com um habitual preguiça tropical que não é possível qualificar de “defeito moral”, já que está condicionada pela desnutrição, pelo clima, pelas doenças endêmicas, pela falta de perspectiva social.
O mesmo fatalismo, sócio-religioso, explica o medo em falar a verdade e em reclamar os direitos mas elementares. (A alienação política e social é extrema. Segundo a referida Pesquisa local de São Félix, 42% ignora o nome do Prefeito; 80%, o do Governador; 79%, o do Presidente da República. À pergunta “o que acham dos políticos?”, 33% respondeu que, “não conhece esta gente, não se preocupa com isto, não tem opinião formada, não tem paixão por isto”.) Não se fala, por que nunca se pôde falar; porque as represálias – da política ou no comércio – são automáticas. “Pobre não tem vez”. “Peão não é gente”. “É fuá desse povo”… O Juiz de Direito vive as centenas de quilômetros e viajar a Brasília ou a Cuiabá supõe uma boa fortuna e boa influência.
A injustiça dominante, consubstancial à única estrutura conhecida, solo e suor da própria vida durante gerações, impossibilitam até mesmo a concepção da Moral como Moral cristã, a Nova Lei de Cristo, o Mandamento Novo.
A partir dos casamentos “no queimo”, ou pela imposição do noivo por parte dos pais, ou por causa da notável diferença de idade entre o homem e a mulher, ou pelo absoluto despreparo fisiológico, psicológico, sociológico, pedagógico e pastoral dos cônjuges, a família está em fácil quebra.
A situação da mulher, em geral, é humilhante. Ela nem decide, nem se apresenta, nem pode reclamar. O homem não é gentil com ela. Falta ternura.
Certamente não há planificação familiar nenhuma, nem “paternidade responsável”. Tem- se um filho por ano. A mulher deixa de ter filhos porque envelheceu ou porque -foi “operada”, já numa extrema precisão.
A educação dos filhos é ainda na base do “cipó”, do grito, do respeito e obediência inapelável, sem diálogo. Os filhos de criação é uma figura habitual neste interior, e cujas traumas psicológicos, profundos, não são reconhecidos e no futuro da vida dificilmente serão superados.
As famílias se desagregam facilmente: por separação conjugal, por motivos de serviço, por viagens, por uma inconsciente força de destino ou de aventura – que em última instância revelam sempre a inexistência da verdadeira família e uma pré-estrutura social desmantelada. O pai não tem onde ganhar, talvez; ou não possui terra. Os filhos mais crescidos, por falta de fontes de trabalho “têm que se virar” longe de casa. Quem sai “para se tratar”, em Goiânia, ou em Brasília, ou em Mineiros, ou quem foi espoliado no lugar por curandeiros ou “práticos” desonestos, desequilibrou fatalmente a fraca instabilidade familiar.
O retirantismo do povo sertanejo, e a instabilidade habitacional, familiar, total, dos peões flutuantes, colocam a Igreja local um interrogante angustioso na hora de concretizar a Pastoral em termos de comunidade de Fé e de Caridade, estável, acompanhada, promovida. Como se faz “comunidade de base” com um povo em constante dispersão?
Com respeito aos fazendeiros – que normalmente não moram na região – e aos gerentes e pessoal administrativo das companhias latifundiárias – que moram aqui com intermitência – a ação pastoral é praticamente impossível, sempre que não se aceite o poder de opressão social que eles encarnam; sempre que não se queira amancebar a Missa, esporádica, com a injustiça permanente, e a presença do padre – da Igreja – na sede da Fazenda (nos seus teco-tecos, nos seus refeitórios, nos seus escritórios paulistas ou gaúchos) com a ausência do Evangelho e da Justiça no conflito dela com os posseiros e nos barracões, nas derrubadas e na vida toda dos peões escravos.
Isso é o que a gente pensa depois de três anos de vida e de luta. Ajudar a libertação dos oprimidos é o meio mais direto e eficaz de contribuir para a libertação dos opressores. Nem todos “poderão” entender esta atitude. É uma opção dolorosa, de pobreza, de risco e de “escândalo” evangélico…
Outro setor da visão pastoral da Prelazia diz a respeito à vida e ao trabalho ecumênico. O Ecumenismo do sertão (do interior, de modo mais geral) mereceria um planejamento à parte.
A Prelazia tem apenas algum grupo da Igreja Adventista do Sétimo Dia, alguns membros das Novas tribos, principalmente, vários núcleos pentecostais – reduzidos – da Assembléia de Deus. Estes últimos, carismáticos, integristas e bem unidos com “os irmãos” conseguiram uma certa gozação por parte dos católicos “festivos” e uma natural consideração do povo. Entre o pastor pentecostal – e outros ministros, em menor grau – e nós, as relações são de respeito pleno e até de amizade. Porém não há, por enquanto, condições de trabalho ecumênico entre as comunidades, na fé, no culto; nem sempre na promoção humana, quando esta atinge os limites de uma luta pela justiça. O crente pentecostal é mais passivo ainda que o católico, na sua total confiança para no Deus que salva, e é mais desencarnado e espiritualista.
A falta de nível cultural e de conscientização sócio-política afetam gravemente as relações ecumênicas.
Parte III Latifúndio
Todo o território da prelazia está situado dentro da área da Amazônia lega, a cargo da SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA (SUDAM). E nesta opção de território estão localizados a maior parte dos empreendimentos agropecuários criados com os incentivos deste órgão.
As terras todas compradas – ou requeridas – ao Governo do Mato Grosso por pessoas interessadas, não os moradores, a preço irrisório, foram depois vendidas a grandes comerciantes de terras, que posteriormente as vendem a outros. Abelardo Vilela e Ariosto da Riva, dois destes comerciantes, tidos como pioneiros e desbravadores da Amazônia, segundo afirmações suas, já venderam mais de um milhão de alqueires (Jornal da Tarde, 21/7/71).
Até fins de 1970, tinham sido aprovados para os municípios de Barra do Garças e Luciara, 66 (sessenta e seis) projetos. De lá para cá muitos outros novos já foram criados, como a BORDON S/A, dos Frigoríficos Bordon, NACIONAL S/A, do Banco Nacional de Minas Gerais, cujo presidente é o ex-ministro das relações Exteriores, Magalhães Pinto, UIRAPURU S/A, do jornalista-latifundiário, David Nasser, etc…
As áreas de alguns destes empreendimentos, em território da Prelazia, são absurdas. Destacando-se entre todas a AGROPECUÁRIA SUIÁ-MISSU S/A com 695.843 ha. e 351 m2, que corresponde aproximadamente a 300.00 alqueires, área 5 vezes maior que o Estado da Canabrava e maior também que o Distrito Federal, de propriedades de uma única família paulista: a família Ometto. Destacam-se também a CIA. DE DESENVOLVIMENTO DO ARAGUAIA – ” CODEARA”, com área de 196.497,19 ha., AGROPASA, com 48.165 ha., URUPIANGA, com 50.468 ha., PORTO VELHO, com 49.994,32 ha. e assim por diante. (4)
Além se serem extensões praticamente inconcebíveis, muitos destes empreendimentos formam grupos somando assim suas já enormes áreas, como é o caso das conhecidas Fazendas Reunidas, “de propriedades do Sr. José Ramos Rodrigues, o “Zezinho das Reunidas”, dono da Empresa de ônibus “Reunidas” de “Araçatuba” (O Estados de São Paulo – 9/5/71). Tapiraguai, Sapeva e Brasil Central também formam um grupo. O Sr. Orlando Ometto é também sócio da Tamakavy S/A etc.
Esses empreendimentos latifundiários surgiram graças ao incentivo dados pelo Governo, através da SUDAM. É a provação oficial e financiada de grande latifúndio, com todas as conseqüências que dele advém. Somas fabulosas são investidas na região pelas pessoas jurídicas legalmente estabelecidas no Brasil, subtraídas ao Imposto de Renda devido.
“Eis os principais benefícios fiscais concedidos às pessoas Jurídicas sediadas no País:
– Dedução de 50% do Imposto de Renda das pessoas jurídicas sediadas no país, para financiamento de projetos aprovados pela SUDAM;
– Inserção total ou redução de 50% do Imposto de Renda devido, por 10 (dez) anos, para os empreendimentos instalados ou que venham a se instalar até 31 de dezembro de 1974;
– Inserção de quaisquer Impostos e taxas, incidentes sobre a importação de máquinas e equipamentos necessários à execução de projetos de empreendimentos que se localizem na área de atuação da SUDAM;
– Benefícios Estaduais e Municipais. (“A SUDAM revela a Amazônia”, publicação da SUDAM, pág. 15).
Isto significa estímulo ao capital particular, inclusive estrangeiro, com dinheiro do povo, que deixa de ser recolhido aos cofres públicos, e consequentemente deixa de ser investido a benefício do povo, para enriquecimento ainda maior do investidor. Do valor total do projeto aprovado a SUDAM financia 75%. Encontramos empresas que se dedicam aos mais diferentes tipos de atividades, que agora se lançam à agropecuária, como é o caso de Bancos (Bradesco, Nacional de Minas Gerais, Crédito Nacional, Brasul), de casa comerciais (Eletro-Radiodobraz), Indústrias etc. É a absorção dos bens todos por alguns pequenos grupos poderosos.
O total de incentivos empregados nos municípios de Barra do Garças e Luciara até fins de 1970 era da ordem de Cr$ 299.110.010,53. Só a CODEARA, empreendimentos ligado ao Banco de Crédito Nacional recebeu a importância de Cr$ 16.066.900,96 (cf. Documentação, no I).
Enquanto isto, a população, primeira desbravadora da região, se ha no esquecimento mais completo, ocupando áreas das quais freqüentemente é expulsa, pois na hora menos pensada aparece o assim chamado “tubarão”, dono das terras, que quer fazer valer o seu título de propriedade, como veremos detalhadamente mais adiante, Todas as terras deste imenso Nordeste Mato-grossense já estão vendidas. Mesmo as que pertecem ao Parque Nacional do Xingu. Por isto a esperança do povo por um pedaço de terra é quase nula, tendo em vista que o mesmo decreto presidencial declarado “indispensáveis à segurança e desenvolvimento nacionais” faixas de 100 quilômetros de cada lados das vias Amazônicas (entre as quais estão citadas a BR-80 -Trecho Araguaia-Cachimbo, e a BR-158 – Trecho Barra do Garças- S. Félix) (cf. O Estado de São Paulo 30/3/71) se refere unicamente a terras devolutas, o que na região não existe.
Parte IV Posseiros
Os primeiros desbravadores da região são os hoje chamados posseiros5. Localizados aqui há 5, 10, 15, 20 e alguns até 40 anos. Cultivando o solo pelos métodos mais primitivos, plantando arroz, milho, mandioca. Lavoura de pura subsistência. Criando gado. Sem a menor assistência sanitária e higiênica, sem nenhum amparo legal, sem meios técnicos à disposição. Aglomerados em pequenos vilarejos, chamados Patrimônios (que foram vendidos pelo Estado como terras virgens – Santa Terezinha, Porto Alegre/Cedrolândia, Pontinópolis) ou dispersos pelo sertão afora a uma distância de 12 a 20 Km uns dos outros.
Após o início das atividades agropecuárias ligadas à SUDAM, uma série de dificuldades surgiram para este abnegados e sofridos camponeses – desbravadores.
Vamos mostrar umas situações-tipo das gritantes injustiças praticadas contra eles.
SANTA TEREZINHA
O povoado de Santa Terezinha acham-se situado às margens do Araguaia, em frente a Ilha do Bananal, a 140 Km ao Norte de São Félix, não muito distante da divisa com o Estado do Pará. Santa Terezinha foi um dos lugares mais prejudicados da região devido à presença da CIA. DE DESENVOLVIMENTO DO ARAGUAIA – ” CODEARA”, de propriedade dos Srs. Armando Conde, Carlos Alves Seixas e Luiz Gonzaga Murat, que lá se estabeleceu em 1996, (cf. Documentação, no II, 1. e VIII) com o titulo de propriedade de toda aquela área, inclusive a urbana, numa extensão de 196.497,19 ha. A presença da Companhia veio trazer para os pacíficos moradores em número superior a 80 famílias, a intranquilidade e a insegurança, por causa das atitudes tomadas pela companhia que os vinha prejudicar diretamente.
Os primeiros habitantes chegaram ao local em questão em 1910 e se estabeleceram no chamado Furo das Pedras. Em 1931, já haviam sido construídas igreja, escola e casa para os missionários.
Quando a companhia veio a se instalar, estavam em pleno funcionamento também a ” Cooperativa Agrícola Mista do Araguaia”, que congregava os trabalhadores e posseiros da área, e o ambulatório médico. Apesar de tudo isto, aquela foi vendida como desocupada, como mata virgem. E a companhia se sentiu no direito de despojar os pobres moradores do pouco, da insignificância que possuíam. E começou contra eles uma guerra de ameaças, de invasões de terra, invasões de domicílio, prisões, etc. (cf. Documentação, no II, 1. F. L. G 5). A política estadual também esteve a serviços dos interesses da CODEARA. Era transportada, alojada e alimentada pela mesma companhia. (Documentação, no II, 1. A, I, J.). E, cinicamente, a CODEARA publicava em “EXPANSÃO”, órgão informativo do Sistema BCN-FINACIONAL, de abril de 1970, ano I no 6: ” Os elementos humanos típicos eram o índio e o caiçara (sic). Sua forma de vida eras das mais primitivas. Caçavam, pescavam e cultivavam milho e mandioca. Habitavam em casas de sapé, em nenhuma noção de higiene; resumindo, eram selvagens” (sic) … “Existe hoje o que se pode dizer conforto. A cidade de Santa Terezinha, também fundada (sic) por Codeara…”
Mas, diante da espoliação prometida e pretendida, o povo se uniu e juntamente com o Padre Vigário da Paróquia, Pe. Francisco Dentel, decidiram lutar para salvaguardar o que era seu. Foi feito relatório em 12/4/67 ao senhor Presidente da República, Mal. Arthur da Costa e Silva, sobre a situação e dando sugestões concretas de solução (cf. Documentação II, 1. A). Muitas viagens foram feitas. Muito dinheiro foi gasto. Muitas cartas foram escritas. (Documentação, no II, 1). Muito teve que se esperar para poder se vislumbrar alguma pista de solução, apesar de o Sr. Presidente ter despachado em 29/11/67, para o Sr. Ministro da Agricultura, para que providenciasse a solução. Todos os impecilhos foram colocados para se evitar o cumprimento do despacho presidencial. Autoridades policiais, do exército e do SNI foram movimentadas diante das acusações forjadas pelos donos da companhia contra o Padre e o líder dos posseiros, como sendo elementos subversivos (6). (Documentação, no II, 1. H).
Três anos de espera foram necessários até que a companhia, forçada e a contragosto, “doou” a migalha de 5.582 ha, em 05 de maio de 1970, que ainda serão repartidos entre mais de 100 famílias de posseiros.
Antes porém, em mancomunação direta com o Secretário de Segurança Pública do Estado do Mato Grosso, Cel. Diniz (após reunião havida no dia 1 de maio de 1970 na Fazenda Suiá- Missu entre os empresários, o Governador do Estado, o Ministro do Interior, Costa Calvacante, e outras autoridades), no dia da inauguração do Hospital da fazenda pelo Sr. Ministro do Interior e o Superintendente da SUDAM, Gal. Bandeira Coelho, os diretores da companhia, a 2 de maio, quiseram manifestar sua força contra os posseiros, fazendo prender seu líder, o Sr. Edvald Pereira dos Reis. E quem o prendeu foi o próprio Cel. Diniz (Documentação, no II, 1. I, J). O Sr. Reis esteve preso durante 72 dias em Cuiabá, sem acusação formada e foi libertado sem sequer ter sido julgado.
O caso de Santa Terezinha ainda não está solucionado. A área urbana pertence à companhia. Quem quiser construir ou fazer qualquer benfeitoria tem que pedir autorização à companhia plenipotenciária. Qualquer novo terreno tem que ser comprado dela; isto também devido à inoperância do Sr. Prefeito de Luciara, já que a Câmara Municipal em 17/9/70 aprovara a desapropriação da área urbana de Santa Terezinha e crédito especial para efetivar a referida desapropriação. (Documentação, no II, 2. B).
Atualmente a companhia está construindo prédio no meio da rua. Faz o que quer. Tudo lhe pertence.
PORTO ALEGRE
Porto Alegre (com Cedrolândia) é um povoado situado entre os rios Xavantin e Tapirapé, no município de Luciara, distando mais de 200 Km. da sede.
Em 12 de junho de 1970, os proprietários da AGROPECUÁRIA NOVA AMAZÔNIA S/A – FRENOVA, fixaram residência no povoado dizendo pertencer toda a área sede do patrimônio, bem como sua zona rural, à companhia. Porto Alegre possuía em sua sede 35 famílias e 180 na zona rural. Funcionava Escola com frequência de 120 alunos.
Logo começou a pressão dos proprietários, contra os posseiros, muitos dos quais estabelecidos há mais de 20 anos (Documentação, no II, 2. A). Queria-se a retirada dos mesmos. Que vendesse suas benfeitorias e abandonassem suas pobres posses.
O Pe. Henrique Jacquemart, de Santa Terezinha, passando por lá na oportunidade, esclareceu o povo quanto a seus direitos. O gerente-proprietário, Plínio Ferraz, ciente do acontecido, aconselhado pelo advogado Olímpio Jaime (o mesmo advogado que agira contra os posseiros de Santa Terezinha, ex-deputado cassado), prometeu pagar a dois “capangas”, Sebastião e João, para “dar uma surra até o fim” (sic) no Padre que estava missionando pela reunião. Os dois supostos capangas voltaram depois de algum tempo à sede da fazenda, dizendo ter executado a ordem e querendo receber o dinheiro prometido, que, aliás, era dívida que a fazenda tinha com eles. Receberam o dinheiro e montaria para fugir, com carta de recomendação para uma fazenda próxima a Conceição do Araguaia. Os dois ao chegarem a Santa Terezinha procuraram o Pe. Francisco e lhe contaram o sucedido e se dispuseram a prestar depoimento diante das autoridades. Pe. Francisco foi com eles até Santa Isabel onde duas declarações perante elementos da FAB.
O Sr. Prefeito Municipal, José Liton da Luz, acompanhado do mesmo advogado Olímpio Jaime, reuniu o povo de Porto Alegre em 30/7/70 e se dispôs a “defendê-lo”, dizendo ser necessário que cada um colaborasse, dentro de suas possibilidades, para pagar o advogado que iria advogar sua causa. Os posseiros presentes à reunião entregaram mais de 170 animais, entre reses e cavalos, e grande soma em dinheiro ao prefeito (Documentação no II, 2. A). Prefeito e advogado apoderaram-se das doações dos posseiros e nenhuma providência tomaram na defesa dos mesmos. A 17/9/70, em sessão extraordinária da Câmara Municipal, foi aprovada a desapropriação de uma gleba de 4.500 ha, onde se encontra o povoado. (Documentação II, 2. B). Apesar disso, os posseiros estão recebendo ordens do próprio Sr. Prefeito de abandonarem suas posses, entregando-as à FRENOVA. E mais. O Prefeito autorizou a fazenda a se apropriar do material escolar de Porto Alegre, transferindo-o para a companhia. O que realmente aconteceu. Os funcionários da FRENOVA, após terem apanhado o material escolar, derrubaram a escola do povoado.
Os que, cedendo à pressão da companhia, vendem suas posses, são transportados em avião ou caminhão da empresa e abandonados à beira das estradas sem o menor recurso e amparo. (Documentação, no II 2. C).
É a tão decantada agropecuária da Amazônia, “fator do progresso da região” espoliando o pobre e indefeso camponês, posseiro de uns poucos metros de terra, sem ter ninguém que se preocupe eficazmente com ele. A Polícia Federal esteve no local. Mas o povo não teve condições de se manifestar, temendo posteriores represálias por parte da prefeitura e da companhia.
A preocupação da região é o gado. O homem…
SERRA NOVA
Localiza-se o Patrimônio de Serra Nova, na Serra do Roncador, entre o rio das Mortes e a rodovia BR-158, no distrito de S. Félix, município de Barra do Garças.
Mas de 120 famílias lá residem, com número de habitantes superior a 800. Estão matriculados 113 alunos no curso primário.
Serra Nova nasce em plena floresta amazônica, à base do mutirão, do machado e da força de vontade. Sem assistência. Sem apoio. Surgiu da necessidade do povo de se reunir, visto viverem isolados uns dos outros, há 6, 8, 10 e 12 anos, sem possibilidade de se encontrarem, de terem escola e outros benefícios que a união traz. Alguns deles já foram “tocados” de outras posses até 6 vezes.
Este patrimônio, assim constituídos, defronta-se no presente com um grave problema com a “BORDON S/A AGROPECUÁRIA DA AMAZÔNIA”. Suas terras de lavoura foram cortadas pela “picada” demarcatória dos limites da fazenda, ficando várias das roças, indispensáveis a sua sobrevivência, dentro destes limites. O clima de tensão começou a reinar entre o povo. As terras, seu meio de vida, estava sendo ocupadas. Isto acontecia no dia 20 de abril de 1971. Tentou-se o diálogo com os proprietários, não se obtendo resposta (Documentação, no II, 3. A). Apelou-se para as autoridades: Presidente da República, Ministro do Interior, SUDAM, Ministério da Agricultura, SNI, Governo do Estado, Prefeitura Municipal, e nenhuma atitude concreta foi tomada (Documentação, no II, B).
Na hora de se fazer a queima das roças, a fazenda ameaçou seriamente a segurança de todos, prometendo que seria derramado muito sangue caso algum posseiro ousasse colocar fogo nas derrubadas. A 25 de setembro, data marcada pela própria fazenda para a queimada (já a houvera impedido no dia 27 de agosto), o empreiteiro Benedito Teodoro Soares recebeu do gerente, Antônio Ferreira da Silva, armas várias delas automáticas, de 15 tiros e munição, conforme pedido feito pelo Sr. Benedito ao próprio Sr. Geraldo Bordon, dias antes. (7)
A cerca de alarme está sendo colocada, isolando assim as roças abertas, cortando a área vital para o patrimônio. A ultrapassagem desta cerca por parte dos posseiros, para o cultivo de suas roças se apresenta com perspectivas bastante funestas. E ainda mais. A fazenda está prometendo semear capim nas terras que circundam as roças dos posseiros, fato este que emprestaria inexoravelmente as terras cultivadas, visto ser o capim praga fatal para a lavoura e sabendo-se também que, nas grandes fazendas, o capim é semeado por aviões.
É a vida de um povo que se está tentando impedir.
PONTINÓPOLIS
Situado a uns 120 Km de São Félix, há 10 anos está em conflito, aguardando solução muitas vezes prometida. Atualmente vivem na área deste patrimônio de posseiros umas 300 famílias.
A questão de Pontinópolis data dos idos 1961/62, época da criação da Agropecuária Suiá- Missu, então de propriedade do Sr. Ariosto da Riva. Foi feita a demarcação da atual Suiá-Missu e alguns dos moradores da redondeza foram empregados como mãos-de-obra para este empreendimento. Dentro da área demarcada, morava há uns três anos o Sr. Anastácio que foi convidado a retirar-se, tendo sido indenizado. “Grosso”, “Chicão”, Vicente e Pedro abriram naquele ano suas roças, construíram suas casas e, no momento de iniciarem o plantio, foram mandados embora, sem direito algum. Por um ato de “grande bondade”, Ariosto permitiu a “Grosso” tinha oito filhos pequenos. Pouco tempo depois, a Suiá-Missu foi vendida, continuando a pertencer a maior parte das terras circundantes ao Sr. Ariosto.
Em 1961/62 o Sr. Ariosto, comunicando-se com os posseiros da área, afirmava que não ia tirar ninguém do lugar, que precisava mesmo dos serviços do povo. Mas em 1965, “Pedrão” e “Joaquim Paulista” – este último carregando ostensivamente um revólver – apresentaram-se como enviados do Sr. Ariosto, intimando-os a deixar suas terras: “Ou sair ou morrer” era a ordem.
Muitas famílias, realmente intimadas, abandonaram as posses, por haver ameaças de que a Polícia interviria e poria fogo nas casas. Alguns até abandonaram criações, pois não havia quem as quisesse comprar.
Diante de tais ameaças, o povo reunido realizou uma coleta de dinheiro e incumbiu os posseiros José Antônio dos Santos e Antônio Batista Gomes de apelar para as autoridades. Em setembro de 1966, em Cuiabá, o Sr. Bento Machado Lôbo, funcionário da INDA prometeu-lhes 15.000 hectares de mata, acrescentado que se a área não fosse suficiente, seria aumentada. Foram feitas, por conta própria, mais de 8 viagens, a Brasília e Cuiabá para solucionar o caso do patrimônio.
Mas no momento de a demarcação ser feita,, a área de mata (terra boa para a lavoura) abrangeu apenas 20% do total, por ordem do Sr. Ariosto da Riva, contrariando a determinação explícita do INDA.
Em 29 de julho de 1967, 0 Sr. Ariosto falando com alguns posseiros dizia-lhes que não se preocupasse com a medição, pois ela serviria só como levantamento e atenderia às necessidades de todos. Em outra oportunidade, porém, afirmava que ele entregaria a área de terra demarcada e… “Vocês – acrescentou – fiquem brigando aí dentro”.
A maior parte do povo acha-se localizado com suas roças e benfeitorias fora dos 15.000 hectares demarcados, havendo ainda umas 30 famílias fora da área onde está a maioria.
Faz quase 5 anos que este povo aguarda a vinda do Sr. Ariosto para um encontro no qual sejam resolvidos as questões pendentes. Encontro que várias vezes foi prometido, mais não concretizado.
Após quase dez anos de luta este povo ainda se encontra em grande insegurança em área de milhares de hectares de terras incultas e que pertencem a latifundiários do sul.
ESTRADAS E OUTROS
Além dos casos citados há muitos outros ainda. São posseiros localizados á margem da estrada ou pelo sertão afora, que constantemente são oportunados pelos novos proprietários, ou seus propostos, para que abandonem as posses, oferecendo-se-lhes ridículas indenizações, conforme pode-se ver pela carta enviada ao Sr. Domingos Marques, um dos proprietários (Documentação, no II, 4).
Em situação idêntica encontra-se, há vários anos, os moradores – camponeses ou pequenos criadores de gado – da Ilha do Bananal, por causa da indefinição do destino da mesma Ilha e das ordens e contra-ordens que se vem dando a estes sertanejos.
Ao redigir estas linhas, tomamos conhecimento do recente Decreto Federal, com data de 22 de setembro de 1971, criando o Parque Indígena do Araguaia, que inclui a Ilha do Bananal. Não sabemos qual a sorte dos posseiros. Mais um interrogante e uma incerteza.
Parte V Índios
Se a problemática causada pelo latifúndio com relação ao posseiro é grave, não menos grave foi a situação criada com o índio e suas terras. Alguns fatos são bastante significativos.
XAVANTE / SUIÁ
A Suiá-Missu ao se estabelecer onde se encontra localizada defrontou-se com o problema da presença dos índios Xavante. Foram empregados diversos meios de aproximação com eles, procurando-se evitar um confronto direto. Quando o acampamento dos mateiros ficou pronto, os índios se aproximaram e se estabeleceram próximos ao mesmo (Jornal da Tarde, 21/7/71 – cf. Documentação, no III, 1. A).
Mas esta presença ia-se tornando pesada. Cada dia era um boi que era matado para os índios (O Estado de S. Paulo 25/4/69 – cf. Documentação no III, 1. B). Era necessário encontrar uma solução. Os índios poderiam permanecer em terras do latifúndio (!). E a solução encontrada foi fácil: a deportação.
Os proprietários da fazenda procuraram a missão de São Marcos, de Xavante, e persuadiram aos superiores da mesma a aceitarem nela os Xavante da Suiá. Isto acontecia em 1966. Os Xavante foram transportados em avião da FAB, em número de 263, tendo morrido boa parte deles aos poucos dias depois de chegados a São Marcos, vitimados por uma epidemia de sarampo.
Essa porém não é a versão publicada na imprensa, conforme se pode ver na Documentação (III, 1. B – Reportagem publicada por “O ESTADO DE SÃO PAULO” – Em 25/4/69). Essa deportação foi presenciada por “Última Hora” do Rio de Janeiro (cf. Documentação no III, 1. C). E quando o Sr. Ministro do Interior, Cel. Costa Calvacanti, em abril de 1969, visitou algumas das aldeias dos Xavante, estes lhe pediram que providenciasse a devolução da terra que lhes pertencia (cf. Documentação no III, 1. D).
Anualmente os Xavante voltam para sua a terra, roubada pela cobiça latifundiária, para apanhar o Pati, árvore por eles usada na confecção dos seus arcos e flechas.
Mas os proprietários da Suiá, família Ometto, gostam dos índios… (Jornal da Tarde – 21/7/71). Após a deportação doaram à missão um auxiliar na manutenção dos mesmos…!!!
TAPIRAPÉ / TAPIRAGUAIA
Os índios Tapirapé se acham localizados às margens do lago formado pelo Rio Tapirapé, quase na foz com o Araguaia. São agricultores. Estão acompanhados há mais de 15 anos pelas Irmãzinhas de Jesus, que com eles condividem o tipo de vida, o trabalho, os esforços, as tristezas e as alegrias da aldeia, num total respeito pela cultura dos índios. Uma das experiências de atendimento indígena mais significativas em todo o país, internacionalmente aplaudida por antropólogos e etnólogos.
Como em todo o Mato Grosso, essa área ocupada pelos Tapirapé também foi vendida: para a companhia Tapiraguaia S/A.
Os proprietários Dr. José Carlos Pires Carneiro, José Augusto Leite de Medeiros e José Lúcio Neves Medeiros espontaneamente doaram ao SPI (Serviço de Proteção ao Índio), na pessoa do Sr. Ismael Leitão, chefe da Inspetoria de Goiânia, uma gleba de pouco mais de 9.000 hectares. Acontece. porém que as referidas terras doadas, próximas à aldeia, ficam alagadas praticamente de dezembro a junho em quase sua totalidade, sendo o restante das terras composto de cerrado ou mata arenosa de pouca fertilidade. As terras boas, onde os índios já tinham suas roças ficaram propriedade da Tapiraguaia S/A. Os Tapirapé mantêm lá suas roças, não tendo sido até o momento molestados.
O Decreto de Criação do Parque Indígena do Araguaia, de 22/9/71, delimitou a área das terras dos Tapirapé. Ainda não tivemos oportunidade de verificar in loco estes limites.
PARQUE NACIONAL DO XINGU / BR-80
Exatamente metade do Parque Nacional do Xingu acha-se situado em território da Prelazia. Área até há pouco intocável. Muitas vezes controvertida. Mas uma experiência digna de nota, apesar de certas falhas e deficiências. A calma, a tranquilidade e o isolamento do Parque foram quebrados por uma estrada: a BR-80, empreendimento da responsabilidade da Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO). A Estrada veio cortar bem ao centro o Parque Nacional, apesar da oposição feita pelos irmãos Villas-Boas, responsáveis pelo Parque, e por certas áreas bem esclarecidas do cenário nacional (cf. O Estado de São Paulo – 13/5/71). A Estrada veio beneficiar diretamente só ao latifúndio.
Em 22 de abril de 1969, realizou-se, na sede da Fazenda Suiá-Missu, uma reunião da Associação dos Empresários Agropecuários da Amazônia (AEAA) com o Sr. Ministro do Interior, Costa Calvacanti, estando presente também o então Presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Sr. José Queiroz de Campos. Nesta oportunidade, os empresários reclamaram do Sr. Ministro contra o que eles chamavam de “ameaça” que era “uma grande reserva indígena – de aproximadamente 9 milhões de hectares de área”, pois, alegavam, há “grande desproporção entre o número de índios e o tamanho da reserva” que, além disso, fica sobre algumas fazendas, impossibilitando que seus proprietários as explorem. Um dos empresários classificava a zona como o “filet-mignon” da Amazônia. (cf. O Estado de São Paulo – 25/4/69 – Documentação no III, 2. B).
Conclusão: a estrada cortou o Parque, e toda a parte norte à mesma deixa de pertencer aos índios, devolvendo-se o “filet-mignon” ao latifúndio. A área do Parque foi estendida ao sul em terras bem inferiores…
ACULTURAÇÃO AGRESSIVA
Mas a problemática indígena ultrapassa uma simples questão de terras.
O Xavante da aldeia dos Areões encontra-se em notável abandono. Sem assistência concreta e regular, sem terras bem definidas para si, tendo várias vezes, chegado até lá parado caminhões e ônibus pedindo até mesmo comida.
Após os desmandos administrativos e humanos do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a FUNAI nem sempre conseguiu melhorar positivamente o atendimento real ao índio. Ás vezes, por causa do pouco preparo dos elementos do órgão e, sobretudo pela própria ideologia do FUNAI, não se levam em conta os avanços da verdadeira Etnologia e Antropologia e sacrifica- se impunemente a cultura do índio. Um exemplo flagrante disto é a criação da Guarda Indígena, preparada e formada por Oficial da Polícia de Belo Horizonte, em 1969, o que vem a transformar dentro das tribos todos os conceitos de autoridade.
A aldeia de Santa Isabel, a mais próxima de São Félix, de índios Carajá, é um exemplo da aculturação violenta a que foram submetidos. Facilmente encontra-se índios bêbados. Frequentam as casa de prostituição. Há entre eles 29 tuberculosos.
A aculturação rápida, sem se levar em conta os reais interesses dos índios, é proposta pelo próprio Presidente da FUNAI, Gal. Bandeira de Mello, que em suas declarações chegou mesmo a sugerir a extinção do Parque Nacional do Xingu (cf. O Estado de São Paulo – 6/5/71 – Documentação, no III, 2. D). A preocupação principal do Presidente da FUNAI, que é o órgão específico dedicado ao índio, é o desenvolvimento “nacional”, ficando em segundo plano o índio e sua cultura. São palavras suas: “O Parque Nacional do Xingu não pode impedir o progresso do país” (cf. Visão – 25/4/71. pág. 22).” No estágio tecnológico em que se encontra a sociedade nacional, há necessidade de desenvolvimento premente das comunidade indígenas como conjugamento ao esforço integral da política governamental” (id. ib.). “A assistência ao índio deve ser a mais completa possível, mas não pode obstruir o desenvolvimento nacional e os trabalhos para a integração da Amazônia” (O Estado de São Paulo – 22/5/71). E o Ministro do Interior, Sr. Costa Calvacanti: “Tomaremos todos os cuidados com os índios, mas não permitiremos que entravem o avanço do progresso” (cf. Visão – 25/4/71). “O índio tem que ficar no mínimo necessário” (O Estado de São Paulo – 25/4/69). (Documentação, no III, 2).
E projeta-se introduzir na FUNAI a mentalidade empresarial, conforme palavras do mesmo Presidente: “As minorias étnicas, como os indígenas brasileiros, se orientadas para um planejamento bem definido, tornar-se-ão fatores do progresso e da integração nacional, como produtores de bens” (cf. Visão – 25/4/71). E por isto muitos “fazendeiros da região acreditam que poderão conviver pacificamente com os índios. Pensam mesmo em empregá-los como seus trabalhadores “por um salário justo” (O Estado de São Paulo – 6/5/71 – grifo nosso. cf. Documentação, no III, 2. D).
Segundo esta política, os índios seriam integrados sem, mas integrados na desintegração da personalidade, na mais marginalizada das classes sociais do país: os peões.
Parte VI Peões
Um sério problema com que se defrontam as empresas Agropecuárias da região é o da mão-de-obra. Não conseguem entre os elementos locais esta mão-de-obra desejada que, além de ser escassa, já conhece os métodos de tratamento das companhias.
Vêem-se obrigadas então a procurá-la fora. E os lugares preferidos são o sul de Goiás, inclusive Goiânia, e o Nordeste. O método de recrutamento é através de promessas de bons salários, excelentes condições de trabalho, assistência médica gratuita, transporte gratuito etc. Quem faz este trabalho, são, geralmente, empreiteiros, muitos deles pistoleiros, jagunços e aventureiros que recebem determinada importância para executar tal tarefa.
Os peões, aliciados fora, são transportados em avião, barco ou pau-de-arara para o local da derrubada. Ao chegar, a maioria recebe a comunicação de que terão que pagar os gastos de viagem, inclusive transporte. E já de início têm que fazer suprimento de alimentos e ferramentas nos armazéns da fazenda, a preços muito elevados. (Na Tamakavy S/A, por exemplo, em junho de 1971, um quilo de cebola custava Cr$ 8,00; um saco de arroz de 3ª qualidade, Cr$ 75,00 a 78,00; um machado Cr$ 16,00; foice, Cr$ 15,00). (Documentação, no IV, 4. C).
Para os peões não há moradia. Logo que chegam, são levados para a mata, para a zona da derrubada onde tem que construir, como puderem, um barracão para se agasalhar, tendo que providenciar sua própria alimentação. As condições de trabalho são as mais precárias possíveis. Na Codeara, por exemplo, muitos tiveram que trabalhar com água pela cintura. A incidência de malária é espantosa, sobretudo em algumas companhias, de onde poucos saem sem tê-las contraído. Codeara, Brasil Novo, Tamakavy são bem conhecidas quanto a isso. Os medicamentos quase sempre são insuficiente e em muitas, pagos, inclusive amostra grátis.
Por tudo isto, os peões trabalham meses, e ao contrair malária ou outra qualquer doença, todo seu saldo é devorado, ficando mesmo endividados com a fazenda. (Documentação, no IV, 1; IV, 4. D; IV, 4. A). O atendimento é deficiente, sendo tomadas providências quando o caso já é extremo, não havendo possibilidade de cura. São levados então para as vilas onde também não há recursos, agravando assim a situação das próprias vilas. Aí morrerão anônimos. (Documentação, no IV, 1; IV, 6).
Esse trabalho pesado, e nestas condições, é executado por gente de toda idade, inclusive menores (13, 14, 15, 17 anos). Quando a Polícia Federal no ano passado interveio na Codeara, constatou este fato. (Documentação, no IV, 1).
Não há com os peões nenhum contrato de trabalho. Tudo fica em simples combinação oral com o empreiteiro. Acontece mesmo que o empreiteiro foge, deixando na mão todos os seus subordinados. (Documentação, no IV, 3). Os pagamentos são efetuados ao bel-prazer das empresas. Muitas vezes usa-se o esquema de não pagar, ou pagar só com vales, ou só no fim de todo o trabalho realizado, para poder reter os peões, já que a mão-de-obra é escassa. É o que acontece atualmente na BORDON S/A – AGROPECUÁRIA DA AMAZÔNIA. Até o presente, o que consta, bem poucos dos peões recebem qualquer dinheiro, mesmo após terem concluído as tarefas a eles designadas. Recebem unicamente vales. Alguns, necessitando de dinheiro com premência para atenderem às necessidades da família que está fora, chegam até a trocar seus vales de Cr$ 1.000,00 por Cr$ 500,00, em moeda, com seus colegas (Documentação, noV, 1; IV, 4. A. C. D. F. G.).
Outros muitos, doente, sentindo-se sem forças e temendo morrer naquelas condições, não conseguindo receber o que de direito, fogem para sobreviver. (Documentação no IV, 4. B).
Outros ainda fogem por se verem cada vez mais endividados. E nesta fugas são barrados por pistoleiros pagos para tanto. (Documentação, no VI, 1). Na Bordon tem um “tal de Abraão” que ” não faz nada”, segundo dizem os peões, mas que anda armado o dia todo com uma CBC 22, automática. Foi visto, com esta arma, no Patrimônio de Serra Nova, para intimidar também os posseiros. Gaba-se de ter dois processos por homicídio e vários por tentativa.
Além disso a própria polícia local é utilizada com freqüência para manter ainda mais escravizados os peões (Documentação, no IV, 1; IV, 5). Na Tamakavy, por exemplo, alguns peões chefes de “time” (turma), ao irem reclamar com o Capitão de Polícia de Barra do Garças, por mau atendimento, receberam dele uma carta para o Gerente, Geraldo, em que denunciava os peões. O Gerente, ao tomar conhecimento do que os peões reclamaram, solicitou a presença da polícia de S. Félix que, armada de metralhadoras, foi à fazenda e prendeu a Pedro Pereira dos Anjos, líder dos peões. (Documentação no à Delegacia dar parte de crime, de espancamento, de morte, de salário não pago etc., encontra o delegado sem querer ouvir a questão para não se meter em complicações com as companhias, os fazendeiros (Documentação, no IV, 4. F).
O peão, fechado na mata por muitos meses, nessas condições de tensão desumana, quando vai ou é levado à cidade (8), gasta, muitas vezes, tudo o que recebeu, em bebedeiras, prostituição e é facilmente roubado. (Essa é a oportunidade dos comerciantes inescrupulosos!) Vários chegam a São Félix depois de 4 ou 5 meses de trabalho na mata, com mais de Cr$ 1.000,00 e, ao saírem, dois ou três dias depois, necessitam vender até alguns pertences para poder comer.
Esta é, em linhas gerais, a situação do peão. Quando alguma denúncia chega a mobilizar a opinião pública, os proprietários lavam-se as mão dizendo desconhecer o que se passa, colocando toda a responsabilidade sobre gerentes e empreiteiros. Codeara é exemplo disto. (cf. O Globo, 16/2/71 – Documentação no IV, 3). E depois de a Polícia Federal ter desvendado uma série de crimes e barbaridades cometidas contra os trabalhadores, os donos não sofrem a mínima punição. Chegam mesmo a publicar: “Foi o primeiro projeto da SUDAM a contar com atividade regularizadora do Ministério do Trabalho” e que “foi investigada exaustivamente a possibilidade de trabalho escravo, ou de qualquer manifestação de abuso do poder econômico, nada tendo sido encontrado de irregular ou lamentável”. (O popular – Goiânia, 8/7/71). Não disseram, porém, que esta intervenção do Ministério do Trabalho deveu-se a fatos verdadeiramente comprovados, do que agora é negado após a intervenção da Polícia Federal.
Aliás a intervenção federal só se faz presente quando a opinião pública é mobilizada. Não há nenhuma fiscalização com relação ao trabalho nas fazendas. Significativa é a carta escrita por um peão da fazenda Suiá-Missu ao Ministro do Trabalho, carta que seria levada em mãos ao Ministro do Trabalho, carta que seria levada em mãos ao Ministério, mas que nunca o foi já que o portador (peão) não tinha condições para deslocar-se até Brasília. (Documentação, no IV, 8).
Outro problema que se prevê para um futuro próximo é o desemprego. (Problema para o qual “Visão” já chamava a atenção em sua edição de 18/7/70). Há necessidade de mão-de-obra abundante para as derrubadas e formação das pastagens. Quando estas estiverem prontas, o gado tomará conta de tudo. Os peões só terão uma recomendação, talvez não muito grata, do passado…
O peão, depois de suportar este tipo de tratamento, perde sua personalidade. Vive, sem sentir que está em condições infra-humana. Peão já ganhou conotação depreciativa por parte do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram o peão como raça inferior, com o único dever de servir a eles, os “desbravadores”. Nada fazem pela promoção humana dessa gente. O peão não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à família, a nada. É incrível a resignação, a apatia e paciência destes homens, que só se explica pelo fatalismo sedimentado através de gerações de brasileiros sem pátria, dessas massas deserdadas de semi-escravos que se sucederam desde as Capitanias Hereditárias.
Parte VII Política local
Causa principal, também, e sobretudo cobertura da injustiça reinante na região é a política local, decididamente. Política do interior, característica em muitas regiões do Brasil: coronelismo, poder hereditário, oligarquias locais (fazendeiros, políticos, comércio, polícia) perfeitamente entrosados no interesse e no domínio absoluto.
O voto é comprado da ingenuidade do povo, nas campanhas eleitorais exuberantes de promessas. Os votantes são trazidos em massa, em conduções coletivas. Nunca tiveram a possibilidade de escolher livremente um representante verdadeiro.
Há necessidade de adular os poderosos (para comprar fiado; para não ver filhos sem escola elementar; para conseguir um documento, uma influência, um cargo). Os manda-chuvas “servem” ao povo com um paternalismo triunfante e orquestram os seus dons – mínimos, atrasados, com freqüência fraudulentos. Há clima de terror, e o fatalismo passivo do povo que sabe que ” sempre foi assim” (“polícia é assim mesmo”), ou aquela falta de liberdade para se expressar, para prescindir, para reclamar. Tudo isto faz da política local destas regiões uma opressão estabelecida e legal.
Barra do Garças está nas mãos de um clã de famílias, desde a fundação do município, que controlam amplamente a Administração, o Cartório, o Ensino e a Polícia locais. O Sr. Ladislau Cristino Cortes é prefeito de Barra do Garças pela terceira vez. Fazendeiro, proprietário de 8 fazendas, a sua polícia é declaradamente de apoio e cobertura ao latifúndio da região.
Mesmo com uma extensão de 121.936 Km2, e densidade demográfica só de 0,22, (IBGE, 1970) a arrecadação é extraordinária. Os distritos, porém, com seus diferentes povoados, vêm reclamando inutilmente uma atenção mínima. (Para um simples aterro do trecho alagadiço da estrada de São Félix foi preciso escutar promessas durante anos).
A prefeitura de Luciara foi criada em 1966. A fraude e o terror mais notório vêm dominando a Administração Municipal. O primeiro prefeito foi o “velho Lúcio da Luz”, fundador da cidade, e o segundo, Leonardo Barros, está ainda foragido, depois de subtrair a importância de Cr$ 80.000,00. Com respeito ao atual prefeito, Sr. José Liton da Luz citar um caso mais diretamente vinculado com o problema latifúndio, veja-se o que escrevemos sobre Porto Alegre (Documentação, II, 2). Nas duas prefeituras, a escolha de professores, a remoção e pagamentos, estiveram normalmente ao capricho dos políticos locais. E nos dois municípios, a Prelazia entrou em conflito, neste ramo,. por tentar defender sua política de ensino, livre e desinteressada…
FALTA DE ASSISTÊNCIA BÁSICA
Os moradores da região, em condições de pura sobrevivência, submetidos às provas do clima tropical e desatendidos por parte das autoridades e dos organismos responsáveis, vivem numa falta habitual de assistência básica.
Dei já uma referência, em matéria de ensino, no que diz respeito à política local condicionante. Devo acrescentar que as irregularidades na nomeação e pagamento dos professores; na construção, manutenção e higiene das escolas; no fornecimento do material escolar mais rudimentar são muitas e constantes.
Grande porcentagem de crianças e rapazes da região não têm acesso às aulas. Há escolas com uma só professora ou duas, estando, os alunos de diferentes idades e graus, misturados. A prefeitura de Barra do Garças tem nomeado várias professoras conhecidas publicamente como prostitutas. O nível de preparação do professorado – fora os professores que a Missão conseguiu engajar é de 1º, 2º, 4º ano primários. Não há em toda região um só professor ou professora normalista. Geralmente é o povo ou Prelazia que deve enfrentar a construção do prédio escolar. Faltam carteiras, cadernos, livros, quadro negro, giz. Os professores do Curso Primário recebem um ordenado de Cr$ 100,00 e Cr$ 125,00, com atrasos de seis mês e até de ano inteiro. Os professores do Ginásio Estadual de São Félix – construído pela Prelazia – recebem Cr$ 120,00 por mês e com atraso superior a 4 meses. A Irmã diretora do Grupo Escolar de São Félix teve que desafiar, este ano, a política caprichosa do Secretário Municipal de ensino de Barra do Garças para a própria sobrevivência do Grupo.
A saúde é um problema trágico em toda a região. Um problema sem solução para 80% dos moradores. Dentro dos 150.000 Km2 do território da Prelazia – e numa imensa área circundante imediata – só existe o Hospital do Índio, em Santa Isabel, em condições precaríssimas de atendimento, e com um só médico, intermitente. O Hospital é propriamente só para o índio. Por concessão, atende-se, dentro dessa precariedade, o pessoal não indígena, à base de Cr$ 30,00, a consulta e de Cr$ 45,00, a diária. Os dois únicos postos de saúde existentes foram criados e são mantidos pela Prelazia. Os abusos de alguns farmacêuticos “práticos” ou de curandeiros descarados que vendem medicamentos a preço exorbitantes ou amostras grátis, provocando endividamento estrangulador, são habituais e notórios.
Os chamados “farmacêuticos” de algumas fazendas, na maioria dos casos não passam de aventureiros e irresponsáveis. O divulgado Hospital da Codeara nem médico tem.
“A higiene é precária; há poucos conhecimentos relativos à saúde. Um grande prejuízo são as crendices e as superstições… O povo não tem noção do alto valor da saúde, e desconhece os meios de evitar a contaminação, não tem consciência da existência de germes e vermes e não teme os insetos que tem abrigo comum com a família.
“As crianças andam nuas e descalças até os 6 anos; depois adotam uma tanguinha. Arrastam-se pelo solo de terra batida, contaminada pelas excreções dos animais e das pessoas, expostas assim às variadas infecções e infestações”.
“São comuns as conjuntivites que atingem todos os membros da família, assim como as gripes”.
“A carne em geral, mesmo nos açougues fica exposta à poeira, às moscas e mosquitos. fora da geladeira. Quando chega à casa já vem meio deteriorada e contaminada. A carne seca fica dias e dias ao sol, suspensa nos quintais, sem qualquer proteção. Quando surgem os problemas intestinais, ninguém pensa nessas carnes ingeridas, já em início de putrefação e infeccionadas por muitos tipos de germes”.
“A água retirada do poço ou do rio é colocada nos potes, sem torneirinha, sem qualquer tratamento. Aí ela fica fresquinha, mas é retirada com vasilhas já usadas, levadas pelas mãos, muitas vezes sujas, que mergulham com o copo e enriquecem a cultura dos germes dentro dos potes…”
“… Enfrentam a doença própria e alheia com grande sangue frio e a suportam como um mal contra o mal não vale a pena lutar. O mesmo se diga em relação à morte que eles “acolhem” como a chuva depois da seca. Nem mesmo o choro é comum. É um povo sofrido de verdade. Só mesmo quem testemunha pode falar e o faz com grande angústia, percebendo a vida infra-humana esta gente, que não tem consciência dos seus próprios direitos de pessoa humana. As crianças se apresentam com verminose e anemias; são poucas vivas, olhar parado e sem brilho, esclerótica amarela e mucosa descoradas; abdômem distendido, com intenso meteorismo..”
“… Os dentes ao nascer já se estragam e a segunda dentição tem o mesmo destino”.
“Os adultos poucos esclarecidos vêem-se logo atacados pela malária, hepatite e pelas doenças venéreas…”
“… Falta assistência ao recém-nascido e à criança em geral. Há grande mortalidade (infantil) por tétano umbilical e infecções gastrointestinais, nos 4 primeiros anos. Falta assistência à gestante, à parturiente e à puérpera. A paciente dá á luz no seu próprio barraco em condições higiênicas as mais precárias, não dispondo de condições elementares e humanas para uma atendimento condigno. Dá à luz rodeada dos demais filhos, de vizinhas e às vezes é assistida por uma “curiosa” que talvez complique mais a situação das crendices e superstições.”
“Nos casos de fratura de membros, o paciente repousa até conseguir andar ou movimentar-se, sem ter a noção de uma redução e contenção provisoriamente até a mobilização definitiva. E daí a conseqüência de pessoas coxas e com membros defeituosos, defeitos aceitos passivamente e superados com uma coragem impressionante…”
“… São comuns entre os povos as seguintes doenças: Malária; hepatite; infecciosa; úlcera de Bauru; desidratação aguda (adultos e crianças); verminoses de todos os tipos, principalmente ascaridíase, teníase, ancilostomíase, acarretando profundas anemias; afecções venéreas: blenorragia, cancro mole (“cavalo”), cancro duro, linfogranulomatose inguinal (“mula”), granuloma venéreo (“cavalo de cristal”); alguns casos de picadas de cobra, escorpião e aranha; tétano umbilical, geralmente letal; afecção dentárias, desnutrição”. (Relatório sobre a Prelazia, da Ir. Maria de Fátima Gonçalves).
Devem-se acrescentar a essa lista do relatório, o reumatismo, as afecções respiratórias, a leishmaniose. A perda da vista é muito frequente.
A habitação “em geral é feita de barro cru, algumas de barro cozido, outras de pau-a- pique. A cobertura é de folhas secas de coqueiro. Agora há algumas olarias (rudimentares) onde se fazem tijolos e começam a surgir casas de tijolo e cimento, com cobertura de telhas… Essas casas não têm forro”. As instalações sanitárias “são bastante precárias; em geral localizadas no fundo do quintal: fossa rente ao chão, base de madeira, sem qualquer cobertura, em local incômodo, sem porta; protegida por uma “cortina” de caso de estopa que se agita ao sopro do vento… e onde à noite se abrigam galinhas e muitos insetos rodeadores…”
“… Não há coleta de lixo. Quintais e ruas recebem o lixo que as pessoas menos cuidadosas não queimam. Não há mesmo o cuidado de coletar o lixo em latas. Em algumas pensões joga-se pela janela todo o tipo de lixo; os restos alimentares são rapidamente procurados e devorados pelos cães…” “… Galinhas, cães e porcos freqüentam os mesmos aposentos e muitas vezes usam as mesmas vasilhas (que as pessoas)”. “Os ambientes são infestados de moscas, mosquitos, baratas, e ratos. As fossas sobretudo, são verdadeiros viveiros de enormes baratas, afugentadas à noite pela chama de uma vela, ou lampião, dando um espetáculo. às vezes até dramático, quando a pessoa não está acostumada e é surpreendida por esta fuga das baratas que buscam aflitas o interior da fossa…” (Relatório sobre a Prelazia, Irmã Ma de Fátima Gonçalves.
“A alimentação básica é o feijão, arroz, carne, farinha (de mandioca), peixe, banha. Nota-se grande ausência de frutas, verduras, leite. O leite de vaca existe no início do inverno (chuvas), quando há pastos em abundância. Na seca desaparece o pasto; e no inverno fica tudo alagado e as estradas são intransitáveis. Não (se) comem verduras em abundância, devido as dificuldades de cultivo (pragas, época da seca, falta de adubo…) e também preguiça e ao preconceito: “Verdura é comida de lagarta”, “Capim é para boi”.
“No tempo da seca as frutas desaparecem quase por completo. “Expressões, como esta denunciam a carência alimentar: “Comemos macarrão uma vez por ano”. As refeições normais do sertanejo são três: café, almoço e janta. Os de mais recurso tomam café com pão. A maioria é café com “isca” (alguma mistura) ou “Bolo de sopapo” (bolo de farinha). Muitos só café “magro”, sem “isca”. E isto foi constatado entre o aluno do ginásio. Muitos vêm à aula sem tomar nada de manhã…” “…A merenda não é adotada pelos mais pobres como denota esta frase: “Merenda só na época das vacas gordas”. Esta fome crônica, como dizia Josué de Castro, mata mais que as guerras. Um povo sub-alimentado é presa fácil das doenças, pois não há resistência para elas num organismo debilitado. Eu garanto que se houvesse higiene e boa alimentação, 80% das doenças desapareceriam nestes sertões…” (“Pesquisa Sociológica” citada).
Não há serviço normal de correio em toda a região da Prelazia. E as estradas de terra alagam perigosamente na época das chuvas, ou são materialmente intransitáveis. Nenhuma cidade possui luz elétrica (exceto Luciara, umas três horas por noite), nem esgotos, nem água encanada, nem ruas sequer encascalhadas…
Há dois ônibus por semana – a partir de outubro, 3 – de Barra do Garças a São Félix : dia e meio de viagem, e um ônibus semanal de Barra Luciara. A VASP – com aparelhos primitivos – serve a região em dois vôos semanais, ida e volta. O Araguaia e o Rio das Mortes são transitados por barcos, lanchas (“voadeira”) e canoas. Existe o serviço extraordinário dos teco- tecos (a Cr$ 1.200,00 de São Félix a Goiânia). A FAB presta vários serviços de emergência.
O COMÉRCIO facilmente é trust, também nesta região. E coincide com o poder dominante da política e das fazendas, em interesses combinados. As distâncias e os fretes “justificam” os mais exorbitantes abusos. Não há nenhum controle fiscal. O preço é geralmente 50% superior ao normal.
MÁ DISTRIBUIÇÃO ADMINISTRATIVA
Há extenção dos municípios já é uma estrutura de desequilíbrio social. A distância da sede do Município traz consigo o máximo desinteresse e esquecimento por parte das autoridades, a impossibilidade de recurso e protesto por parte do povo. (Barra está a quase 700 Km de São Félix).
Parte VIII Nossa atuação
A Prelazia conta 7 sacerdotes. O Bispo e quatro padres são espanhóis e Claretianos. Um deles ordenado na própria sede da Prelazia, no dia 7 de agosto deste ano. O novo ordenado e um companheiro, por motivos de estudo e de assistência à própria Prelazia, dirigem provisoriamente uma paróquia em Goiânia. O Bispo e os outros dois padres residem em São Félix.
Dois padres, franceses, de clero diocesano, pertencentes à antiga Prelazia de Conceição do Araguaia, vicularam-se à Prelazia de São Félix, com motivo da ereção da mesma, e residem em Santa Terezinha, faz dezesseis e cinco anos, respectivamente.
Um dado para não esquecer: o Bispo e os padres somos todos estrangeiros.
Na aldeia dos índios Tapirapé vivem – faz dezessete anos – três Irmãnzinhas de Jesus, plenamente encarnadas na pobreza e na simplicidade agrícola dos Tapirapé; sendo testemunho e fermento de Evangelho. Além da total convivência, as Irmãnzinhas prestam aos índios um discreto serviço de assistência sanitárioa e de enfermagem e de promoção pelo exemplo e diálogo.
No dia 16 de fevereiro de 1971, chegaram a São Félix, para trabalhar na Prelazia, cinco religiosas de São José; e em 18 de junho último incorporou-se à comunidade outra irmã. Elas se dedicaram à catequese, enfermagem, ensino e promoção humana em geral. Todas elas são brasileiras.
Uma Irmãnzinha de Jesus, brasileira também, “em experiência de apostolado direto”, colabora nas campanhas missionárias.
Tanto em São Félix, como em Santa Terezinha trabalham, vinculados à Prelazia, leigos brasileiros: No ensino “ginásio, primário e alfabetização”, nas Campanhas Missionárias, na catequese e na promoção humana. Em São Félix, este ano, leigos “universitários” são cinco. Em Santa Terezinha são cinco também: um casal, três rapazes.
No primeiro período de nossa chegada à missão, percorremos quase todo o território, em repetidas viagens e visitas, por água com muita freqüência. Sertão, beiras dos rios e povoados. Com as extraordinárias despesas que essas viagens significam. Era continuar, talvez com uma evangelização mais esclarecedora, as tradicionais desobrigas…
Assistíamos alguns povoados e algumas fazendas, com certa regularidade, todo mês.
Em 1970, interrompemos quase todas essas viagens. Por exigências do ginásio e pelo próprio descontentamento de um serviço que era rotineiro, ineficaz e até alienante. Independente das possibilidades que nos deu de conhecermos a região.
Nesse ano, estourou o conflito aberto entre a Prelazia – Igreja, devemos dizer – e as fazendas latifundiárias, que se materializou, no mês de setembro, com o relatório “Feudalismo e Escravidão no Norte do Mato Grosso” (cf. Documentação, no IV, 1). Não era possível ir às fazendas sem coonestar exteriormente a conduta dos donos, gerentes e capatazes. Nem era possível agir com liberdade. Os peões por outra parte, nunca poderiam ser atingidos pelo padre.
Além disso, era preciso refletir, reformular a pastoral toda. Sentíamos o impasse da situação religioso-pastoral do nosso povo. Faltava tudo: em saúde, em ensino, em comunicações, em administração e em justiça. Faltava no povo a consciência dos próprios direitos humanos e coragem e a possibilidade de os reclamar. E o que não faltava era gritante, acusador .
Contra os nosso primeiros propósitos – fruto da velha experiência educacional da Igreja, fruta da própria experiência pessoal – decidimos enfrentar o problema do ensino: e construímos o “Ginásio Estadual Araguaia”, de São Félix. Pago, em oitenta por cento (80%) da importância, com donativos dos nossos amigos da Espanha, e sem nenhuma contribuição oficial da Prefeitura, do Estado ou do Governo Federal. Foi uma aventura quixotesca, necessária porém. (As poucas famílias que antes pretendiam por os filhos no ensino médio, deviam mandá-los a Barra do Garças ou a Goiás. E as forças novas da juventude se distanciavam da família e do lugar, provavelmente para não voltar jamais. E toda a renovação humana-social precisaria tanto dessa juventude, mais maleável, mais aberta e crítica!). O Ginásio é Estadual: não queríamos que fosse nem da Prelazia nem de uma Congregação. Com muitas demoras e irregularidades, o Estado paga os professores bem pobremente. Funcionavam no ginásio as três primeiras séries. Por motivos de suplência inicial, um padre teve que aceitar a diretoria e uma irmã é secretária.
Depois de cooperarmos, com pressões e suplências, ao ensino primário de toda a região, este ano uma irmã é diretora do Grupo Escolar de São Félix; e a equipe de Santa Terezinha leva totalmente – “economia, matéria e professorado” – um Grupo Primário particular, e um Curso de Madureza Ginasial Noturno, vencendo as manobras da Prefeitura de Luciara.
Uma irmã enfermeira e outra auxiliar dirigem, a partir do mês de março deste ano, o ambulatório, criado e financiado pela Prelazia de São Félix. Ultimamente recebemos a promessa de uma ajuda econômica da Secretaria de Saúde Estadual de Cuiabá. No primeiro semestre de atuação o ambulatório atendeu 1995 casos. Em Santa Terezinha trabalha há quatro anos, no pequeno ambulatório da missão, uma enfermeira francesa, leiga, (este ano em férias, na França, e ajudada por uma moça do lugar, auxiliar de enfermagem). A partir de julho toma conta do ambulatório um laboratorista. Desde o início da missão – antes mesmo de ser criada a Prelazia – temos dado grande quantidades de remédios gratuitos, com mais ou menos paternalismo, por necessidade vital, na impossibilidade de fazer outra coisa, às vezes.
Na liturgua e na catequese agimos sempre com bastante liberdade, no intuito de adaptarmos ao povo e de traduzir para ele o culto oficial e a palavra tradicional. Demos sempre particular importância, na missa, à Liturgia da Palavra. Celebramos missas com “Liturgias das palavras” preparatórias, tidas no dia anterior. Missas por grupo. “Missas de rua”: nos barracões abertos, em âmbito de bairro ou de vizinhança.
Na pastoral dos Sacramentos, depois de ter que “agüentar”, nos primeiro meses, os batizados em massa e sem preparação, e os casamentos de gente muito nova e improvisadamente, viemos a exigir preparação e certas condições indispensáveis para os pais e padrinhos dos batizandos, e para os noivos – dos quais exigimos também o casamento civil. Atrasamos a idade para a Primeira Eucaristia e preparamos os candidatos durante tempo prolongado. Nestes três anos de missão, ainda não houve administração de Crisma. Achamos que o povo não está preparado, e queremos que este ao seja precedido de um autêntico catecumenato a posteriori, para possibilitar com isto um compromisso cristão adulto.
No intuito sério de superar a pastoral das desobrigas, iniciamos este anos as “Campanhas Missionárias”. Realizamos já a primeira em Pontinópolis, e estamos realizando a segunda em Serra Nova.
A Campanha Missionária é um “tempo forte” de pastoral – três meses – num lugar, e com trabalho em equipe – Padre, Irmãs e Leigo. A equipe missionária se instala numa casa do povo, e procura compartilhar, simplesmente, a vida do lugar, em tudo. Durante a campanha se dão aulas de alfabetização ou Círculos de Cultura; aulas de complementação para adultos e crianças. Acompanha-se o trabalho das professoras locais. Dá-se assistência de enfermagem e se promove uma ação permanente por todos os meios e em toda ocasião de higiene e saúde. Faz- se uma ação intensa de conscientização. E se tem palestras por grupo, sobre os temas vitais do povo do lugar. Três vezes por semana se celebra a eucaristia, em termos bem acessíveis, e com uma temática apropriada na liturgia da palavra e nas orações. Prepara-se os sacramentos do batismo, da penitência, da eucaristia e do matrimônio, com especial dedicação. Com o povo enfrentando-se os problemas e os riscos – às vezes graves – dos direitos dos posseiros frete ao latifúndio (cf. Documentação, no II, 3. A, B). E tenta-se assentar a vida dos patrimônios numa organização popular básica, humana. Criam-se ou os “Conselhos de Vizinhança” – autoridade popular de uma equipe livremente eleita (que em Pontinópolis, junto com o povo, elaborou a “Lei do Posseiro”) (Documentação no VI) – ou os “Grupos de Liderança”. Finalmente organiza-se a “Oração Comunitária dos Domingos”, que um grupo do próprio povo dirigirá toda semana, com a sistêmica mensal de algum membro da equipe da Campanha. (Futuramente, nasceriam aí uma “comunidade de base” e umas diaconias locais e, talvez, um sacerdote “indígena…”).
Mesmo assim sentimos que a liturgia e a pastoral toda – aqui como em outras partes, certamente – se ressentem de desencarnação, de intelectualismo, de conteúdo e ritmo urbanos e de um europeísmo dominante. Na própria estruturação, na formação que nos condiciona, no “preceito tradicionalista do povo” e na falta eclesial de corajosa criatividade.
Não podemos aceitar a dicotomia entre evangelização e promoção humana, porque acreditamos no Cristo, como o Senhor Ressuscitado que liberta o homem todo e o mundo todo e nos salva em plenitude: progressivamente e dolorosamente aqui na terra, definitivamente e com glória no céu. “Cristo veio ao mundo para libertar o homem de toda escravidão. A comunidade cristã, deve ser para todos os homens um sinal eficaz na realização da justiça, na libertação de toda forma de escravidão e na esperança para cada uma das gerações” (Esquema “A Justiça no Mundo”, Synodus Episcoporum, 6).
Para nós, evangelizar é promover o homem concreto – o próximo – e libertá-lo, sempre com aquele “plus” que a encarnação e a Páscoa trazem à pessoa e à historia humanas.
Por causa disso, bem ou mal, com tateios e em conflitos, sempre temos enfrentado a defesa dos direitos humanos e a promoção do povo ao qual fomos enviados. Nas campanhas higiênicas; no ensino – alfabetização em São Félix, em Santa Terezinha. E um conflito declarado da Prelazia com os latifundiários e dos núcleos políticos e de controle econômico da região, fazia de nós todos “subversivos” e “comunistas”. E “estrangeiros!”
Os dois primeiros qualificativos da acusação não merecem uma resposta séria, por excessivamente gratuitos e gastos.
Estrangeiros somos, certamente, o Bispo e os padres. Talvez, porém, bastante mais dedicados ao bem do Brasil do que nossos acusadores. E mais desinteressante. Além de que não há homem estrangeiro na terra dos homens, e a Igreja no mundo é em todo lugar nossa pátria.
Depois de vários meses de boatos e calúnias, de ameaças de prisão, de morte, de “descida” da polícia federal e do exército, com prognósticos sucessivamente datados depois de várias tentativas de convencer-nos ou de intimidar-nos por meio de várias tentativas de convencer-nos ou de intimidar-nos por meio de mensageiros pessoais, na primeira semana do mês de setembro último, o Sr. Ariosto da Riva – pai e mentor de latifundiários – acompanhado de um sacerdote religioso, se apresentou ao Senhor Núncio, no Rio, para tentar impedir a minha sagração…
O GRITO DESTA IGREJA
A Igreja é, por natureza, tão católica como local. “A fim de poder oferecer a todos o ministério da salvação e a vida trazida por Deus, a Igreja deve inserir-se em todos esses agrupamentos (humanos), impelida pelo mesmo movimento que levou o próprio Cristo, na encarnação, a sujeitar-se às condições sociais e culturais dos homens como quem conviveu”. (Ad Gentes, 10). Cristo continua se encarnando, por ela e com Ela, no mundo concreto dos homens de cada tempo, de cada lugar. Deus ama em singular e com eficácia. A Salvação faz-se presente no dia-a-dia e atinge o homem real, principalmente por meio de sua Igreja – “sacramento universal de salvação” (ID. 1) – na medida em que esta se aproxima do homem – com seu testemunho, com a Palavra “traduzida” e com os Sacramentos vivenciados – e o convida e provoca nele – pela força do Espírito que sempre está pronto para agir – a resposta da Fé que transforma e liberta.
Nós – bispo, padres, irmãs, leigos engajados – estamos aqui, entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo, real e concreto, marginalizado e acusador, que acabo de apresentar sumariamente. E somo aqui a Igreja “visível” e “reconhecida”. Ou possibilitamos a encarnação salvadora de Cristo neste meio, ao qual fomos enviados, ou negamos nossa Fé, nos envergonhamos do Evangelho e traímos os direitos e a esperança agônica de um povo de gente que é também povo de Deus: os sertanejos, os posseiros, os peões; este pedaço brasileiro da Amazônia.
Porque estamos aqui, aqui devemos comprometer-nos. Claramente. Até o fim. (Somente há uma prova sincera, definitiva, do amor, segundo a palavra e o exemplo do Cristo). Eu, como bispo, nesta hora de minha sagração recebo como dirigidas a mim as palavras de Paulo a Timóteo: “Não te envergonhes do testemunho de Nosso Senhor, nem de mim, seu prisioneiro, mas sofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus” (II Tim 1,8).
Não queremos bancar heróis, nem originais. Nem pretendemos dar lição a ninguém. Pedimos só a compreensão comprometida dos que compartilham conosco uma mesma Esperança.
Olhamos com bastante amor a terra e os homens da Prelazia. Nada dessa terra ou desses homens nos é indiferente. Denunciamos fatos vividos e documentados. Quem achar infantil, distorcida, imprudente, agressiva, dramatizante, publicitária, a nossa atitude, entre na sua consciência e leia com simplicidade o Evangelho; e venha morar aqui, neste sertão, três anos, com um mínimo de sensibilidade humana e de responsabilidade pastoral.
O Vaticano II, Medellín, o Sínodo; a voz das Conferências Episcopais do Terceiro Mundo; o Evangelho – antes e sempre -, não só coonestam como também reclamam essa ação abertamente comprometida. Já passou a hora das palavras (não certamente a hora da palavra), das conivências e das esperas conciliadoras. (Será que alguma vez foi essa hora?). “Quem não está comigo, está contra mim; quem não recolhe comigo, espalha” (Lc 11, 23). “Não basta refletir, obter maior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação.” (Medellín, introdução).
Queremos e devemos apoiar o nosso povo, pôr-nos ao seu lado, sofrer com ele e com ele agir. Apelamos à sua dignidade de filho de Deus e ao seu poder de teimosia e de Esperança.
Chamamos angustiosamente a toda a Igreja do Brasil, à qual pertencemos. Pedimos, exigimos fraternalmente, sua decisão, e a corresponsabilidade plena na oração, no testemunho, no compromisso, na colaboração de agentes e meios pastoral. (Na mente de quase todos os que ainda lutam desinteressadamente, somente a Igreja parece ter uma possibilidade decisiva nesta hora). Da CNBB – na qual agora mais confiamos – pedimos o cumprimento, pronto e eficaz, de um programa decididamente realista no compromisso que ela publicamente assumiu sobre a Amazônia, com caráter de prioridade.
Aos “católicos” latifundiários que escravizam o povo de nossa região – eles mesmos alienados, muitas vezes pela conivência interesada ou cômoda de certos elementos eclesiáticos – pediríamos, se nos quisessem ouvir, um simples pronunciamento entre sua Fé e o seu egoísmo. “Não se pode servir a dois Senhores” (Mt 6, 24). Não lhe adiantará “dar Cursilhos” em São Paulo ou patrocinar o “Natal do pobre” e entregar esmolas para as “Missões”, se fecham os olhos e o coração para os peões escravizados ou mortos nas suas fazendas e para a famílias de posseiros que os seus latifundiários deslocam num êxodo eterno ou cercam sadicamente fora da terra necessária para viver. Leiam o Evangelho, leiam a primeira carta de São João e a carta de São Tiago…
É fácil, com muito dinheiro, encobrir com páginas inteiras de jornais, a verdade dos fatos, a realidade. Deus vê. E o povo sabe cada dia mais o que sofre, e não esquece.
Mais uma vez, com maior premência, publicamente, apelamos às supremas Autoridades Federais – Presidência da Republica, Ministérios da Justiça, do Interior, da Agricultura, do Trabalho, INCRA, FUNAI… (9) – para que escutem o clamor abafado deste povo; para que subordinem os interesses dos particulares ao bem comum, a “política da pata do boi” à política do homem, os grandes empreendimentos – sempre mais publicitários – das estradas, ocupação da Amazônia, a Mesopotâmia do gado”, a mal chamada “integração nacional do índio” (10), às necessidades concretas e aos direitos primordiais, anteriores, do homem nordestino, do retirante sem futuro, do homem da Amazônia, do índio, do posseiro, do peão…
Se os incentivos dados – e com fiscalização? – às oligarquias e trutes do sul do país que “ocuparam” esta região, tivessem sido investidos em favor do povo que a desbravou e a habita, a situação conflitiva que ” revelamos” aos ingênuos ou interesseiros estaria voltada para um futuro de esperança e desenvolvimento “do homem todo e de todos os homens” deste interior.
As soluções isoladas não resolvem os problemas gerais. E a esmola nunca é solução em sociologia. O conflito Codeara/Santa Terezinha, põe exemplo, depois de 4 anos de titânicos esforços por parte do povo e da “Missão”, tentou-se resolver com uma esmola de 5.582 hectares, para o povo dos posseiros, dentro de um latifúndio de mais de 196.000 hectares, e continuando toda a zona urbana do povoado em poder da Companhia.
O que vivemos nos deu a evidência da iniqüidade do latifúndio capitalista, como pré-estrutura social radicalmente injusta; e nos confirmou na clara opção de repudiá-lo.
Sentimos, por consciência, que também nós devemos cooperar para a desmitificação da propriedade privada. E que devemos urgir – com tantos outros homens sensibilizados – uma Reforma Agrária justa, radical, sociologicamente inspirada e realizada tecnicamente, sem demoras exasperantes, sem intoleráveis camuflagens. “Cristo quer que bens e a terra tenham uma função social, e nenhum homem tem direito a possuir mais que o necessário, quando existem outros que nem sequer tem o necessário, quando existem outros que nem tem o necessário para viver. Por isso o Papa Paulo VI, disse: “A propriedade não é um direito absoluto e inalienável” (Popularum Progressio)” (José Manuel Santos Ascarza, Bispo de Valdivia, Presidente da Conferência Episcopal do Chile, em carta à Organização dos Camponeses de Linares, em 19/5/70).
A injustiça tem um nome neste terra: o Latifúndio. É o único nome certo do Desenvolvimento aqui é a Reforma Agrária. (E segundo Paulo VI, na “Populorum Progressio”, “o Desenvolvimento é o novo nome da paz”…).
Esperamos que nenhum cristão com vergonha caia no cinismo de qualificar este documento como subversivo. Nos reportamos, mais uma vez, ao Evangelho. E também ao Vaticano II, a Medellín e ao último Sínodo. “O testemunho (função profética) da Igreja frente ao mundo, terá bem pouca ou nenhuma validade se não der, ao mesmo tempo, a prova de sua eficácia no seu compromisso pela libertação dos homens mesmo neste mundo. Por outra parte, a Igreja poderá fazer os maiores esforços para defender a verdade de sua mensagem, mas se ela não a identificar com um amor comprometido na ação, esta mensagem cristã corre o risco de não mais oferecer ao homem de hoje nenhum sinal de crediabilidade” (Esquema “A Justiça no Mundo”, Synodus Episcoporum, pág. 46).
Estas páginas são simplesmente o grito de uma Igreja da Amazônia – a Prelazia de São Félix, no noroeste de Mato Grosso – em conflito com o Latifúndio e sob a marginalização social, institucionalizada de fato.
Não deixamos de ver o que é belo na natureza ou no progresso da Amazônia, nem subestimamos o que o Governo do Brasil ou os particulares fazem de bom nesta região infinita. Há poesia publicidade em abundância para cantar tudo isso. O que nesta nossa Amazônia é trágico, o que nela se faz erradamente, ou se omite, o que já não se pode mais tolerar, isso é que nós – Por dever pastorear e por solidariedade humana – devíamos publicar. Dizer a verdade é um serviço. E o propósito de dizer a verdade nos faz livres.
Nossa amargura não é falta de Esperança. (Só a alienação ou o egoísmo podem viver comodamente felizes – no meio da injustiça estabelecida). Sabemos de Quem nos fiamos (II Tim. 1, 12). Sabemos que “lá onde o pecado ameaça a libertação e a humanização da vida, Deus nos envia seu Filho Único com o fim de libertar o coração humano do egoísmo e do orgulho” e que “é precisamente aqui, na encarnação, onde se encontra o fundamento máximo da esperança para o homem e seu universo”. “… É no seu Espírito e na sua Igreja que Ele (o Cristo) oferece aos homens esta luz de que precisam, esta confirmação dos valores humanos de dignidade e fraternidade, esta coragem para praticar mais, sabemos que “a justiça que os homens realizam neste mundo chega a ser uma antecipação da esperança final” (Esquema “A Justiça no Mundo”, 56 e 57).
Notas:
1. São Félix -na margem mato-grossense do Araguaia- foi fundada em 1941 pelo piauiense Servirano Neves, que se amparou sob o patrocínio de São Félix de Valois, como acreditado protetor “contra” os índios… Pelo Decreto Pontifício de ereção da Prelazia foi constituída titular Nossa Senhora no ministério da sua Assunção, e é agora Nossa Senhora da Assunção a padroeira também da cidade de São Félix.
2. Luciara foi fundada em 1934 pelo lendário Lúcio da Luz, vindo do Pará. Chamada inicialmente de “Mato Verde” passou a tomar definitivamente os nomes do fundador Lúcio e do Rio Araguaia em cuja margem está assentada.
3. Expressão popular para indicar um casamento improvisado, resolvido na hora.
4. Na Documentação damos uma relação completa de todos os projetos aprovados pela SUDAM até 1970, situado nesta região.
5. A publicidade faz dos fazendeiros os bandeirantes da região. O Sr. Ministro da Agricultura, Cirne Lima, porém, falando aos técnicos reunidos pela ” Semana do Veterinário”, em Brasília, diz que “o boi deverá ser o grande bandeirante da década…” (cf. O Estado de São Paulo – 15/9/71).
6. Por esta mesma causa deixamos de publicar boa parte da documentação pois, isto, com certeza, iria afetar gravemente as testemunhas.
7. Segundo testemunhas oculares do fato, cujos nomes preferimos manter em segredo.
9. À SUDAM, infelizmente, não podemos apelar, pois até o momento mostrou-se exclusivamente a serviço do latifundiário.
10. Somos os primeiros a reconhecer a necessidade das estradas, do desenvolvimento da Amazônia, e da verdadeira integração do índio. Sabemos, também, valorizar, em termos nacionais e internacionais, a pecuária. O que não podemos admitir á a inversão dos valores.
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