É possível cristãos de igrejas diferentes compartilhar da mesma ceia do Senhor? Com a palavra o teólogo Andrea Grillo

Há tradições diferentes, todas as quais se referem à ceia do Senhor e à fração do pão, e que vivem essa celebração, embora de modo diferenciado, como fonte e ápice da comunhão eclesial. O paradoxo é que, justamente no coração da comunhão, os cristãos experimentam a divisão e a hostilidade… Não é nada escandaloso que a busca da comunhão queira ter uma relação com a celebração da santa ceia, da sagrada liturgia… Pode ser verdade que tradições diferentes, linguagens diferentes, imaginários diferentes, que se reconhecem todos reciprocamente no batismo em nome de Jesus Cristo, podem relançar a sua comunhão a partir da ceia do Senhor. O fato de que a missa e a liturgia possam se situar não no fim, mas no início, deveria ser uma possibilidade a ser redescoberta e valorizada. Como um modo de iniciar, e de se deixar iniciar, e não como um modo de terminar… O verdadeiro divisor de águas não é um prévio acordo doutrinal, que seria capaz de habilitar uma práxis litúrgica comum. Em vez disso, como preâmbulo singular, deveria amadurecer nas diversas confissões a disponibilidade de ler as diferenças não como falta de comunhão, mas como diferenças na comunhão.

Confira o artigo do teólogo italiano Andrea Grillo:

É possível compartilhar a ceia do Senhor?

“Para nós, que comemos e bebemos com Jesus, depois que Ele ressuscitou dos mortos.” (At 10, 41b)

1. Premissas

Há tradições diferentes, todas as quais se referem à “ceia do Senhor” e à “fração do pão”, e que vivem essa celebração, embora de modo diferenciado, como fonte e ápice da comunhão eclesial. O paradoxo é que, justamente no coração da comunhão, os cristãos experimentam a divisão e a hostilidade.

Sabemos bem que as diversas tradições cristãs, depois de incompreensões, lutas, divisões até mesmo sangrentas, silêncios e indiferenças, há algumas décadas, trabalham também para recuperar a comunhão perdida. Não é nada escandaloso que a busca da comunhão queira ter uma relação com a celebração da santa ceia, da sagrada liturgia. E esta não deve ser considerada apenas como a “máxima ambição”: não é verdade, de fato, que a “comunhão eucarística” se coloque apenas no fim do percurso, como o prêmio final da comunhão reconstruída. Não, o contrário também deve ser verdadeiro. Pode ser verdade que tradições diferentes, linguagens diferentes, imaginários diferentes, que se reconhecem todos reciprocamente no batismo em nome de Jesus Cristo, podem relançar a sua comunhão “a partir da” ceia do Senhor. O fato de que a missa e a liturgia possam se situar não no fim, mas no início, deveria ser uma possibilidade a ser redescoberta e valorizada. Como um modo de iniciar, e de se deixar iniciar, e não como um modo de terminar.

Isso não descarta, no entanto, que o esclarecimento necessário – eu digo não para chegar, mas ao menos para prosseguir – diga respeito, pelo menos, a três níveis de experiência da liturgia eucarística, sobre os quais as tradições se diferenciaram altamente e que eu gostaria de esquematizar assim:

  • o Corpo de Cristo – sacramental e eclesial – do modo como é compreendido e vivido;
  • a estrutura da celebração e a sua relação com o “sacrifício de Cristo”;
  • os ministérios dotados de autoridade e o seu reconhecimento recíproco entre as diversas confissões.

O que podemos identificar como problemático, ou como inaceitável, nesses três níveis não deveria ser absolutamente resolvido antecipadamente, quase como uma condicio sine qua non: o verdadeiro divisor de águas não é esse “prévio acordo doutrinal”, que seria capaz de habilitar uma práxis litúrgica comum. Em vez disso, como “preâmbulo” singular, deveria amadurecer nas diversas confissões a disponibilidade de ler as diferenças não como “falta de comunhão”, mas como “diferenças na comunhão”. Diversas teorias sobre a presença, diversas compreensões da relação com o sacrifício e diversos modos de exercer a autoridade foram percebidos, na história, como graves motivos de “ruptura da comunhão”. Cada um se sentiu negado pelo outro. Hoje – na disponibilidade recíproca, que sempre custa muito a todas as partes envolvidas – essas mesmas diferenças podem se tornar motivos de “riqueza na comunhão”.

O que muda é, acima de tudo, a percepção do outro e do seu mundo. Para entrar em sintonia, para perceber o outro na sua riqueza, para construir percursos reais de comunhão, não devemos apenas nos preocupar em traduzir as tradições alheias nas nossas categorias, e as nossas nas alheias, mas em “aprender a sua língua, com todas as suas regras”. Para usar a bela imagem proposta por George Lindbeck: faz-se ecumenismo não “traduzindo pensamentos e conceitos diferentes”, mas “aprendendo a falar línguas diferentes”. Para fazer isso, não devemos apenas estudá-las, mas também devemos praticá-las. A prática comum – da oração e da liturgia, da fé e da caridade – é uma das condições para esperar e para fazer a comunhão. Não se trata, portanto, de inventar uma “missa ecumênica”, mas de reconhecer que a eucaristia, a santa ceia, a santa liturgia é, em si mesma, visceralmente uma questão de unidade, uma questão ecumênica.

2. Uma autorreflexão católica, entre Ocidente e Oriente

Gostaria de aprofundar, em particular, alguns aspectos decisivos do desenvolvimento pós-conciliar. Evidenciando, acima de tudo, a profunda mudança da compreensão da “ação ritual” – como linguagem comum para toda a Igreja – e da forma de “participação” (actuosa participatio) que transforma a compreensão da liturgia e da eucaristia, recuperando o perfil eclesiológico do sacramento. Isso determina as seguintes consequências preciosas, estabelecidas com autoridade pela constituição litúrgica do Concílio Vaticano II:

  • A recuperação das múltiplas formas da “presença” de Cristo na liturgia (SC 7)

Não só a “presença real”, mas também a presença no ministro da eucaristia, presença na Palavra proclamada, presença nos sacramentos, presença na assembleia reunida para o louvor e para a oração. Essa ampliação de “formas” torna a comunhão mais ampla e articulada.

  • A reestruturação e requalificação da “liturgia da palavra” (SC 24, 35)

Entre essas formas, a experiência da “palavra proclamada” é posta novamente no centro da tradição litúrgica católica. Esse grande enriquecimento de textos e de sequências rituais requer uma profunda conversão pastoral e espiritual, que tem um impacto muito significativo também sobre a “inteligência teológica” da comunhão eucarística.

  • A contextualização da “consagração” no centro da oração eucarística

O “fazer memória” da eucaristia não se limita apenas às “palavras da consagração”, não é apenas repetição pontual de um ato, mas é retomada abrangente de uma “ação” do Senhor. Possibilitada pela “Palavra proclamada”, restituída como Palavra rezada na anáfora eucarística, em cujo interior são repetidas como narrativa instituinte as palavras da última ceia, e realizada com o rito da comunhão, que é fração de pão e participação no único pão partido e no único cálice compartilhado. Às “palavras” da instituição não corresponde apenas a “consagração”, mas sim a sequência “anáfora-comunhão”.

  • A sequência “oração-rito” como sucessão entre “anáfora-comunhão”

Essa recompreensão mais ampla da ação eucarística – que passa da lógica essencial da relação seca de um ato entendido como relação seca entre forma-matéria-ministro à sequência ritual entendida como “ação de Cristo e da Igreja” entre palavra, oração e rito – desloca a atenção da exclusividade da consagração, com a inevitável marginalização da comunhão e da Palavra proclamada, à correlação entre palavra e ação, entre anáfora e comunhão.

  • A recuperação da “participação mais perfeita” mediante a comunhão do pão e do cálice (mais do que “sob as duas espécies”).

No âmbito dos “pedidos de reforma” que o Concílio Vaticano II explicita acerca da eucaristia (SC 50-57), deseja-se, na SC 55, a recuperação da comunhão do único pão partido e do único cálice compartilhado. A relação entre pão, vinho, corpo e sangue pode ser pensada com o conceito de “espécie”, mas, para ser celebrado, precisa de categorias menos essencialistas. O sinal, para determinar uma “participação mais perfeita”, precisa de categorias conceituais menos limitadas. O contato ritual não é idêntico ao conceito teológico: certamente pode ser mais pobre, mas também pode se revelar mais rico.

3. Consequências sobre os três pontos considerados

a) A presença do Corpo de Cristo na eucaristia é, ao mesmo tempo, sacramental e eclesial. Ou, melhor, precisamente o reconhecimento de Tomás de Aquino do significado de “unidade da Igreja” como “efeito principal” da eucaristia continua sendo um marco da tradição, também no momento em que a própria tradição se enrijecia em uma leitura da “consagração” como essência, em relação à qual todo o resto seria redutivamente apenas “usus” do sacramento. Hoje, nós temos a tarefa de interpretar de modo mais amplo essa relação entre sacramento e Igreja, que a tradição atesta com argumentações às vezes frágeis demais.

b) Essa recuperação da “unidade da Igreja” como conteúdo da eucaristia leva a uma recompreensão da “sequência abrangente” – comunhão-anáfora-comunhão – que substitui a centralidade “essencial” da consagração. Poderíamos dizer que a eucaristia tem (e deve ter) uma lógica “mais do que necessária” e “supraessencial”. A distinção entre “essência/uso”, que volta a atenção apenas à fórmula, matéria, ministro, é substituída pela articulação entre forma ritual, matéria simbólica e relação entre presidência/ministérios/assembleia. A “ação de Jesus” não pode ser reduzida a um único “ato”.

c) A mudança de perspectiva determina e, de certo modo, pressupõe uma mudança na concepção do ministério. Se a liturgia é, acima de tudo, ação de Cristo e da Igreja, que liturgicamente envolve uma “actuosa participatio” de todo o povo de Deus, tal recompreensão relê o papel do presbítero/bispo como “presidência de uma celebração da assembleia” e não como “celebrante”. Tirando das costas do presidente a responsabilidade da celebração, essa leitura pode possibilitar, imediatamente, também no campo católico, o caminho rumo ao reconhecimento da “comunhão nas diferenças”, em vez da “excomunhão das diferenças”.

4. Apartheid a ser superado e tolerância alegre/fatigante das diferenças

Se ampliarmos o olhar, acredito que podemos reconhecer que a raiz mais fecunda da tolerância tardo-moderna não é indiferença às diferenças, mas a não indiferença às diferenças. Como também reconheceu Paolo Ricca, no seu livro sobre a última ceia que é a primeira, no momento em que a “hospitalidade eucarística” puder ser formalmente permitida, deveremos exercer, de modo novo, uma forma de tolerância que eu chamaria de interessada. Gostaria de dar um exemplo sobre a compreensão diferente da “presença do Senhor crucificado e ressuscitado” na comunidade eucarística. Não quero falar aqui das “diversas doutrinas”, mas das “diversas práticas” que surgiram – ou que, talvez, inspiraram – diversas doutrinas.

O que acontece, em particular, com o pão “consagrado” depois do fim da ceia? Aqui, precisamente no nível da prática diferente, serão postas à prova as nossas compreensões e as nossas tolerâncias. Tento fazer uma descrição disso em “âmbitos confessionais”:

  • cristão católico certamente poderá continuar “guardando” as partículas consagradas e poderá continuar repondo-as no sacrário, fazer delas objeto de adoração e até mesmo participar das 40 horas, da adoração noturna… mas deverá respeitar a possibilidade de que outros cristãos, em um caminho de verdadeira comunhão, possam se abster de realizar esses atos, sem, por isso, negar a presença do Senhor na eucaristia.
  • cristão evangélico certamente poderá continuar habitando a santa ceia com o canto e com a pregação, com o sermão e com a caridade, e poderá reconhecer o Senhor presente no momento em que o pão partido e o cálice compartilhado são participados por cada um membro da assembleia. Mas deverá respeitar como uma possibilidade diferente que outros cristãos possam habitar a sala eucarística mesmo na ausência de celebração, para parar em oração ou para adorar o Santíssimo Sacramento.

Uma Igreja verdadeiramente hospitaleira – ou seja, que vive a consciência de “ser hospedada” pelo seu Senhor – poderá descobrir nessas diferenças uma grande riqueza recíproca. Sem que um prejudique os outros e sem que ninguém se sinta desqualificado pelo juízo de uma experiência e de uma tradição diferente. A unidade fundamental no Senhor que vem em meio aos seus na Palavra e no Sacramento pode ser o princípio radical de uma fecunda e recíproca hospitalidade. Para continuar “comendo e bebendo com ele, por ele e nele”.

Ou, parafraseando Agostinho, para reconhecer que, na comunhão eucarística, todos fazemos a experiência tocante em que o Senhor “reza por nós, reza em nós e é rezado por nós”, como único Sacerdote, como Cabeça do Corpo e como Filho de Deus. Se soubermos nos mover nessa direção, exigente mas promissora, não tardaremos a nos encontrar em torno da mesma mesa, com o mesmo Senhor, no mesmo Espírito, rumo ao mesmo Pai.

Apêndice: sete teses sobre a “hospitalidade eucarística”

Sobre o tema que abordamos, Paolo Ricca lembrou um importante documento de 2003 [disponível aqui, em italiano], fruto do trabalho ecumênico de três institutos alemães, evangélicos e católicos.

Publico aqui as sete teses elaboradas pelo documento, omitido a ampla explicação que se segue a cada tese e que pode ser lida na versão completa do documento. Parece-me decisiva a primeira tese, que, invertendo o ônus da prova, muda o horizonte da argumentação teológica clássica, amadurecida em um contexto de radical conflito.

Tese 1: É preciso justificar não a admissão dos cristãos batizados na ceia/eucaristia comum, mas sim a sua rejeição;

Tese 2: A comunhão ecumênica vivida localmente e a falta de comunhão na ceia/eucaristia são realidades contraditórias. Isso enfraquece o testemunho confiado às Igrejas e as torna não credíveis diante dos desafios levantados pela sociedade;

Tese 3: Em muitos casos excepcionais, a comunhão eucarística já é permitida aos indivíduos hoje;

Tese 4: O batismo é a porta de entrada para a comunhão da Igreja, para o corpo de Cristo, que se reconstitui continuamente na ceia/eucaristia;

Tese 5: Jesus Cristo convida para a ceia/eucaristia. Ele é doador e dom. A Igreja dirige o convite apenas no seu nome e pelo seu encargo. Isso não pode ocorrer de modo indiscriminado, mas deve corresponder à vontade de Jesus;

Tese 6: A comunhão eucarística ultrapassa a comunhão eclesial;

Tese 7: A Igreja vive como comunidade no anúncio, no culto e no serviço ao mundo. A comunhão eclesial pressupõe essas ações e uma concepção comum de fundo, mas não uma determinada configuração histórica;

  • Tese 7.1: Comunhão na fé: as diversas representações do testemunho eclesial e da interpretação normativa da fé comum em Jesus Cristo como salvação do mundo não são necessariamente tais a ponto de dividir a Igreja;
  • Tese 7.2: Comunhão na compreensão da ceia/eucaristia: os diálogos ecumênicos chegaram a um profundo acordo sobre os temas tradicionalmente controversos em matéria de compreensão da ceia/eucaristia. Por isso, as diferenças que ainda permanecem não impedem uma celebração comum da ceia/eucaristia;
  • Tese 7.3: Comunhão na compreensão do ministério: apesar das diferenças que ainda existem sobre a questão do ministério, hoje se realizou, sobre os elementos fundamentais, uma convergência que torna possível a hospitalidade eucarística;
  • Tese 7.4: Comunhão no serviço ao mundo: diaconia, comunhão e eucaristia se condicionam mutuamente.

(Os grifos são nossos)

P.S.: Em Milão, em novembro de 2017, ocorreu um encontro sobre o tema “É possível compartilhar a ceia do Senhor? Esperanças e expectativas para uma mesa compartilhada no ‘fazer memória’ e testemunhar juntos o Evangelho”, organizado por diversas associações eclesiais, que contou com a participação do teólogo e pastor valdense Paolo Ricca e do teólogo italiano Andrea Grillo. A conferência de Grillo, revisada pelo autor, foi publicada por Come Se Non, 27-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Fonte:

IHU