Os que ousam ser discípulos e discípulas de Jesus, profeta crucificado, morto e ressuscitado, vivo e estradeiro conosco, inseridos num Continente ainda marcado pela violência da desigualdade e opressão cultural, religiosa, econômica e sociopolítica, mas também numa terra fecundada pelo sangue de tantos mártires da defesa da justiça, da liberdade, dos direitos humanos, da democracia cidadã, do equilíbrio ambiental, não podem se esquecer do que ouvimos da boca do próprio Jesus: “Se me perseguiram, perseguirão a vós também” (Jo 15, 20) e “virá a hora em que todo aquele que vos matar, julgará estar prestando culto a Deus. Agirão assim por não terem conhecido nem ao Pai, nem a mim” (Jo 16, 2-3), mas atenção, a perseguição por causa da justiça, na ordem do Reino de Deus, é bem-aventurança (Cf. Mt 5, 10), “pois foi deste modo que perseguiram os profetas que vieram antes de vós” (Mt 5, 12).
Acontece que o anúncio/ testemunho profético do Evangelho do Reino, Evangelho da justiça, numa sociedade de conflitos, desigualdades e injustiças sociais, não é tarefa fácil. Implica necessariamente a denúncia do anti-reino, a opção pelos pobres e marginalizados, a postura de defesa incondicional da dignidade e o colocar-se ao lado das vítimas do sistema opressor. É isso que provoca a perseguição aos/às discípulos/as de Jesus. É o que suscita as ações virulentas dos filhos das trevas. Foi assim com Jesus, com todos os homens e mulheres que ousaram levantar bandeiras de luta e transformação socioeconômica, política e cultural, e será igualmente com os discípulos e discípulas de Jesus que continuam a assumir posturas proféticas.
Tive a alegria de conhecer a pessoa de Dom Geremias Steinmetz durante o 14º Encontro Intereclesial das CEBs, em Londrina, no Paraná. Lembro-me da serenidade evangélica e da firmeza profética em sua postura de defesa da caminhada das Comunidades Eclesiais de Base em meio ao turbilhão de calunias e perseguições perpetradas nas mídias digitais por pessoas que se dizem cristãs, mas que agem de forma virulenta, cruel e imoral contra quem ousa contestar seus privilégios de classe ou ameaça a margem crescente de seus lucros. Certamente, nessa nova onda de perseguição por posturas proféticas, em sintonia com o papa Francisco e com a CNBB, contra a perversa reforma trabalhista recentemente aprovada e o igualmente perverso projeto de reforma da Previdência que não corta privilégios, não corrige distorções e aumenta ainda mais o sofrimento e a dor dos mais pobres e excluídos quando estes mais precisam do amparo do governo.
Esses “cristãos” não acolhem o fermento transformador do Evangelho de Jesus que nos irmana e iguala em dignidade pela experiência da boa nova da gratuidade do amor de Deus, amor exigente que nos transforma por dentro e nos desafia a concretizar socialmente a centralidade do amor, a partilha solidária dos bens e a conviver de outra maneira já aqui rumo à plenitude futura de comunhão junto de Deus.
Esses “cristãos” que se julgam guardiões da ortodoxia e da sã doutrina, por isso não concordam com a caminhada dessas comunidades cristãs e, sobretudo, dos que acolhem a reflexão da Teologia da Libertação que, por usar mediações sócio-analíticas advindas das ciências humanas e sociais, colocou o dedo na ferida e explicitou as contradições de quem diz acolhe a pessoa de Jesus e o Evangelho do Reino e permanece indiferente, seja ao grito dos pobres e sofredores, seja diante das estruturas sociais injustas geradoras de destruição da nossa Casa comum, miséria, exclusão e morte de inúmeros irmãos. Abominam um cristianismo que acolhe o grito dos pobres e marginalizados, indígenas, negros, mulheres, migrantes, refugiados, ciganos, LGBTs e que promove a justiça social e a cultura da paz que é fruto da justiça entre os homens e os países, povos e nações.
Esses “cristãos” acusam de comunistas, marxistas, revolucionários, subversivos, baderneiros, esquerdopatas, petralhas etc. os membros das CEBs, aos que, como Dom Geremias, apoiam essas comunidades cristãs proféticas do Reino, a luta dos movimentos populares em defesa da justiça e da igual cidadania e aos defensores da teologia latino-americana brotada da caminhada da Igreja dos pobres. Julgam que, ao procurarem acolher as interpelações do Evangelho e dinamizar a vida cristã a partir da unidade Fé-vida, assumem uma fé cristã deturpada e impura. Por isso se irmanam e caminham de mãos dadas com os cristãos de outras igrejas, com fiéis de outras tradições religiosas e com pessoas sem vínculos religiosos, comprometidos com a justiça social e a cultura da paz, com as lutas em defesa da vida, tendo como culto agradável a Deus o compromisso eucarístico e sociopolítico de participar da construção de uma sociedade justa, com partilha solidária dos bens e com inclusão de todos na mesa da dignidade cidadã e que seja ecologicamente sustentável e eco-éticas.
Em tempos sombrios de perseguição, ajuda-nos o cultivo da memória viva do caminho de Jesus, ter presente a sua prática libertadora, os ensinamentos e gestos proféticos, os conflitos que ela suscitou junto aos poderosos e as violentas consequências de sua prisão e morte na cruz. Do mesmo modo, ajuda-nos o cultivo da memória de tantos homens e mulheres de nosso Continente injusto que trazem em seus nomes, corpos e história, as marcas da calúnia, da perseguição, da violência e da morte. Ajuda-nos igualmente a fé teimosa e incondicional no Deus da ressurreição, cujo projeto salvífico universal é mais forte que a força bélica e violenta dos poderosos deste mundo.
Entre os desafios de quem se tornou discípulo missionário numa Igreja em saída, semeador da utopia do Reino numa sociedade de conflitos, sobressaem tanto o da coragem-firmeza profética, quanto o da perseverança militante, esperançada, resiliente e teimosa. Implica, por isso, o cultivo de uma espiritualidade libertadora e a confiança na presença do Espírito de Cristo, a fonte fecunda que faz o trigo brotar e produzir frutos, mesmo diante do joio semeado pelo inimigo.
Não devemos ceder diante da perseguição dolorosa e cruel, muitas vezes desferida por aqueles que se infiltram e se colocam no seio da Igreja de Jesus Cristo. Por isso lanço aqui um discernimento para aumentar a responsabilidade do perseguidor ante da lógica do Reino de Deus: uma coisa é o diálogo franco ou a correção fraterna, tão necessários em toda caminhada humana, outra é a calúnia e a agressão, covardes e anti-fraternas, de quem visa destruir o nome e eliminar a pessoa do outro.
Desse modo, termino convocando a todos os cristãos comprometidos com a evangelização a se unir na mesma prece ao Deus da vida, para que com a luz e força do Espírito Santo, Ele conceda o dom da fidelidade ao Reino e da perseverança na defesa da justiça e da cultura da paz, a Dom Geremias e a todos os que, como Jesus, estão sendo caluniados, perseguidos e violentados por terem assumido as causas do Evangelho da Justiça.
Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães
Teólogo leigo e secretario executivo do Observatório da Evangelização.
Parabéns pela firmeza e coragem do comentário. De fato, vivemos tempos difíceis para todos que desejam construir uma sociedade mais justa e solidária.