Em que o Vaticano II mudou a Igreja? 6. Da salvação da alma à salvação da pessoa inteira. Por Agenor Brighenti

Em 2019, chegamos ao marco de 54 anos do término do importante Concílio Vaticano II (1962-1965). Na caminhada da Igreja da América Latina, em seu esforço de recepção do Concílio em nosso contexto profundamente desigual e injusto, há 51 anos aconteceu a Conferência de Medellín (1968), há 40 anos a de Puebla (1979), há 27 anos a de Santo Domingos (1992) e há 12 anos a de Aparecida (2007). Impulsionados pelo espírito do Concílio, a Igreja da América Latina suscitou, dentre outras concretizações originais, os círculos bíblicos, as pastorais sociais, as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e as Teologias do Povo e da Libertação.

Envolvidos e desafiados pelo projeto de reforma da Igreja encetado pelo pontificado do papa Francisco, que retoma no horizonte atual o vigor criativo do espírito do Concílio, como afirma o teólogo pastoralista Agenor Brighenti:

é oportuno revisitar o maior acontecimento eclesial do século XX e colocar em relevo, em que o Vaticano II mudou a Igreja. Apesar dos que tentaram minimizar seu alcance, o fato é que o Concílio mudou e mudou muito a Igreja.” 

No intuito de melhor compreender os rumos da Igreja que se prepara para o Sínodo da Amazônia, o Observatório da Evangelização compartilha aqui esta provocante e relevante reflexão do pe. Agenor Brighenti. Como serão apenas dez breves artigos, o autor selecionou o que julga ser as dez maiores mudanças na Igreja provocadas pelo Concílio Vaticano II . 

Confira:

VI

Da salvação da alma à salvação da pessoa inteira

Uma das grandes mudanças do Concílio Vaticano II está na concepção de salvação, com consequências muito concretas para a vivência da fé cristã e para missão da Igreja. Ser cristão e evangelizar, “antes” e “depois” do Vaticano II, é algo muito diferente. Em sua “volta às fontes”, o Concílio regatou a concepção bíblica de salvação, que havia pautado a ação da Igreja até a infiltração da mentalidade grega no cristianismo, no século V. Desde então, até o Vaticano II a fé cristã estará marcada por um dualismo que separa corpo e alma, espírito e matéria, sagrado e profano, céu e terra, religião e mundo. A ação da Igreja consiste na – cura animarum – a salvação das almas. É como se a Igreja cuidasse da alma e o corpo ficasse com a prefeitura… O Vaticano II e, posteriormente, a Encíclica Deus caritas est marcarão o fim desta postura.

A concepção de salvação no seio da cultura grega

Esta separação ou mesmo oposição entre corpo e alma entrou no cristianismo, primeiro de forma aberta através do gnosticismo, mas logo condenado como heresia; depois, de forma velada por santo Agostino, influenciado pelo estoicismo, corrente filosófica grega de onde ele era originário.  No seio do gnosticismo, o dualismo se funda na concepção de que o mundo não é criação de um Deus verdadeiro, mas de um deus inferior e invejoso do Deus superior – uma espécie de Demiurgo dos gregos.  Este roubou partículas do deus superior (almas) e as aprisionou na matéria por ele criada. Como a matéria é má, o corpo é a prisão da alma e a salvação consiste em cada um libertar sua alma das amarras do mundo material, tomando distância dos vícios pela prática das virtudes. 

Trazido para o seio do cristianismo, o dualismo grego contribuirá para a concepção do ser humano como um espírito encarnado num corpo, que é matéria má. O mundo e o ser humano, outrora criados bons, foram corrompidos pelo pecado original. Em consequência, a salvação consiste em salvar a alma, fugindo do mundo e reprimindo as paixões da carne. Para Agostinho, mesmo com a ressurreição de Jesus, o mundo continua mau e só será bom no juízo final, assim como o corpo do ser humano também continua mau e só será bom no juízo final, quando será ressuscitado e se unirá à alma.

A concepção de salvação no seio da cultura semita

O Vaticano II, através da Gaudium et Spes, resgatou a concepção bíblica de salvação, tal como foi recebida no seio da cultura semita, que não conhece dualismo. O mundo, por ser criação de Deus, é bom e continua bom, mesmo depois do pecado original. O pecado introduziu uma desordem na natureza, mas não a corrompeu. Por sua vez, o ser humano não é um espírito encarnado, dado que não existe alma separada do corpo, nem antes do nascimento e nem depois da morte. Ele é um todo, inseparável, também depois da morte. Tanto que para o apóstolo Tomé, um semita, se Jesus ressuscitou, tem que ter corpo, do contrário, é um fantasma. 

Fundada nesta antropologia unitária, o cristianismo professa que a salvação abarca a pessoa inteira. E como Deus quis nos salvar como povo, a salvação, além de comunitária, abarca toda a humanidade, incluída a obra da Criação. Ademais, ela não acontece depois da morte, mas na história, que é única, pois não há uma história profana e outra sagrada. Salvação não é algo espiritualizante, mas a promoção de mais vida, já a partir desta vida: “eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Por isso, pareceu evidente a santo Irineu de Lion, na aurora do cristianismo, que a “a glória de Deus é o ser humano pleno de vida” (gloria Dei homo vivens). O cristianismo, consequente com o mistério da Encarnação, propõe à humanidade nada mais do que sermos plenamente humanos.

Implicações pastorais da renovação do Vaticano II

João Paulo II, em Redemptor Hominis e Centesimus Annus, tira as consequências desta postura para a ação evangelizadora: “o ser humano é o caminho da Igreja” (RH 13, CA 53). Jesus é o caminho da salvação; o caminho da Igreja é o ser humano, pois ela existe para o cuidado, a defesa e a promoção da vida plena para todos, incluída a natureza, como pôs em evidência Francisco de Assis. Medellín dirá que salvação “é a passagem de situações menos humanas para mais humanas”. Evangelizar é humanizar, afirma o Papa Francisco em Evangelii Gaudium.  Paulo VI dirá em Evangelii Nuntiandi que entre evangelização e promoção humana, há laços intrínsecos e profundos. 

Nesta perspectiva, a Igreja na América Latina, coerente com o Concílio Vaticano II, testemunhará que fazer do ser humano o caminho da Igreja significa, antes de tudo, que ela seja uma Igreja samaritana, companheira de caminho de toda a humanidade, especialmente dos que sofrem. Uma Igreja acolhedora, solidária, movida pela compaixão, mas também profética, que denuncia os mecanismos de opressão e exclusão e toma a defesa das vítimas, que clamam por justiça, nos diferentes rostos do complexo fenômeno da pobreza e da exclusão.

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org