A opção de Francisco: como evangelizar um mundo em mudança? (2)

Nesta segunda parte do artigo, o autor dá continuidade ao esforço de mostrar como a opção Francisco foi o resultado de um sofisticado discernimento dos sinais da época da Igreja latino-americana, parte do qual foi um diagnóstico de onde a Igreja ocidental errara em sua resposta temerosa ao secularismo. Uma vez apreendido esse discernimento, fica mais claro por que o pontificado de Francisco coloca tal ênfase no encontro com a misericórdia de Deus, e por que ele está convencido de que a Igreja deve ser “próxima e concreta” para proclamar o Deus vivo em uma era de tecnocracia e secularização.

Na primeira parte anterior, já publicada aqui no Observatório, o autor explicita o discernimento dos sinais dos tempos na América Latina feito por Bergoglio antes e depois de Aparecida. E, agora, na segunda parte, explica por que uma parte desse discernimento era que a Igreja universal tinha sucumbido às tentações da desolação e estava deixando de evangelizar. Na terceira e última parte, ainda a ser publicada, o autor explica a tentativa de Francisco de refocalizar a Igreja e por que a misericórdia e as beatitudes são a pedra angular de sua evangelização.

(Cadernos Teologia Pública Ano XV – Vol. 15 – No 139 – 2018, p. 08-15)

2. A refocalização de uma Igreja voltada para si mesma

Por que Aparecida precisou conclamar para esse “repensar profundamente”, para essa “conversão pastoral”? O Vaticano II não tinha restabelecido a direção básica do catolicismo contemporâneo em resposta à mudança de era? Sim, mas algo tinha dado errado na recepção do Concílio por parte da Igreja. Para líderes eclesiásticos latino-americanos como Aguiar e Bergoglio, a tribulação do relativismo e secularismo pós-1968 tinha desencadeado na Igreja do mundo rico um estado de desolação espiritual. Em vez de discernir e reformar, como o Concílio a conclamara a fazer, ela reagiu, com demasiada frequência, por meio de uma defesa intelectual, ética e jurídica, tornando-se distante e abstrata. Ante a ameaça aos valores cristãos na cultura e no direito, a Igreja se concentrara na defesa desses espaços, em vez de atentar primordialmente para o acompanhamento do povo de Deus.

O resultado disso consistiu em um reforço da noção jurídica, pré-conciliar da fé como código moral ou filosofia, como ideia ou ideologia. Em sua maravilhosa biografia intelectual de Francisco, Massimo Borghesi chama isso de “desvio eticista”, que, sustenta ele, é uma estratégia para a resistência, não para o renascimento: a Igreja pode se opor, mas não pode oferecer a atração de Jesus de uma forma que seja mais forte do que os confortos materiais de uma sociedade opulenta. Trata-se, em suma, de uma postura incapaz de evangelizar a sociedade contemporânea. Bento XVI compartilhava esse discernimento, razão pela qual destacou, já no início de sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, que no “início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”. Esta citação aparece no Documento de Aparecida e, mais uma vez, em Evangelii Gaudium, onde Francisco diz que não se cansa de repetir essas palavras, que “nos levam ao centro do Evangelho” (6). Caso se precisasse de uma chave para esse pontificado, essa citação seria um bom ponto de partida.

Em 2004, o Cardeal Bergoglio proferiu, em Buenos Aires, uma alocução sobre o 10º aniversário de Veritatis Splendor. Embora louvasse a defesa corajosa feita por João Paulo II da verdade objetiva e da moralidade objetiva em uma cultura descristianizada condicionada pelo subjetivismo, utilitarismo e relativismo, ele focalizou uma parte da encíclica sobre a qual raramente se fala, a saber, a centralidade da graça na conclamação do Evangelho para a vida moral. Viver o amor ao qual Cristo nos conclama é impossível por nossos próprios esforços, disse Bergoglio, e só era possível “em virtude de um dom recebido” – o amor e a assistência de Deus que nos são disponibilizados na oração e nos sacramentos. Bergoglio citou João Paulo II, que, por sua vez, citava Santo Agostinho, que disse que não era o cumprimento dos mandamentos que fazia por merecer o amor de Deus, e sim o contrário: a misericórdia e o amor de Deus é que nos capacitam a também ser morais e santos, misericordiosos e amorosos (7).

Na sequência, Bergoglio se perguntava se era pelo fato de que a moralidade cristã fora tão frequentemente reduzida a um preceito elevado nos países ocidentais que a humanidade contemporânea tinha sucumbido à “grave tentação” contra a qual Veritatis Splendor advertia, a saber, ao relativismo, em que o ser humano se torna a medida do que é bom e mau. Em vez de tratar o relativismo como uma filosofia errônea contra a qual era necessário argumentar, Bergoglio discernia nele uma rebelião contra o autoritarismo moral, uma rejeição do cristianismo representado equivocadamente como um código moral que exigia um esforço titânico, e não uma resposta do coração à experiência da misericórdia de Deus. Muitos de seus escritos e discursos mostram essa preocupação com a maneira como a verdade havia sido desconectada da bondade e da beleza, do amor e da misericórdia, na formulação da proposta cristã. É a isso que ele se refere quando critica, em Evangelii Gaudium, um “eticismo sem bondade”, adverte contra “doutrinas às vezes mais filosóficas do que evangélicas”, e salienta que “uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir” (8).

Em novembro de 2012, durante um retiro, Bergoglio afirmou que o Evangelho não diz se a mulher adúltera que recebe o perdão em João 8 voltou à sua vida pecaminosa e promíscua, mas que se podia ter certeza de que ela não fez isso, “porque quem se encontra com uma misericórdia tão grande não pode se desviar da lei. Essa é a consequência”. Também disse que a verdade é semelhante a uma pedra preciosa que, ao ser oferecida na mão, seduz e cativa, mas fere quando é atirada em alguém. É a mesma pedra, a mesma verdade, mas o efeito é muito diferente: a verdade sem a misericórdia e a graça não é de Deus, assim como o amor sem a verdade não é de Deus. A “beleza” da verdade oferecida pela Igreja é a boa nova da graça, da misericórdia, a boa nova de que somos amados primeiro; tirando-se isso, o pão do Evangelho se torna uma pedra morta para atirar nas pessoas.

“Não basta que nossa verdade seja ortodoxa e nossa ação pastoral seja eficaz”, disse o Cardeal Bergoglio em 2011. “Sem a alegria da beleza, a verdade se torna fria e até desapiedada e soberba, como vemos acontecer no discurso de muitos fundamentalistas amargos. Parece que eles mastigam cinzas em vez de saborear a doçura gloriosa da verdade de Cristo, que ilumina com luz branda toda a realidade, assumindo-a assim como ela é a cada dia. Sem a alegria da beleza, o trabalho pelo bem se torna um eficientismo sombrio, como vemos acontecer na ação de muitos ativistas excessivos. Parece que eles revestem a realidade de luto estatístico em vez de ungi-la com o óleo interior do júbilo que transforma os corações, um a um, a partir de dentro.” (9)

Na leitura inaciana de Bergoglio, a Igreja em desolação se viu tentada a dar uma resposta ética e defensiva ante a liquidez – justamente a tentação que Aparecida rejeita. É por isso que, em Evangelii Gaudium, Francisco adverte contra o fermento dos fariseus, repreendendo aqueles que “sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos” e falam mais da lei do que da graça, mais da Igreja do que de Cristo, ou que sugerem que o cristianismo é uma forma de estoicismo, ou autonegação, ou código moral. Nosso “maior risco”, adverte ele, é de que “o edifício do ensino moral da Igreja se torne um castelo de cartas”.

Quais são as evidências para a ideia de que Francisco via a Igreja do mundo rico em desolação e sucumbindo às tentações que normalmente afligem as pessoas que estão em desolação? Porque nos anos 1980, como jesuíta, ele escreveu sobre as tentações com que se deparam organizações eclesiais em tempos de tribulação. Fez uso dessas percepções recentemente em sua resposta à crise da Igreja no Chile, citando uma delas especificamente nas palavras que dirigiu ao clero e aos religiosos na catedral de Santiago em janeiro. Esse discurso delineou um roteiro para sair da desolação da perseguição e do fracasso rumo à consolação e missão, através do exemplo do perdão dado pelo Cristo ressurreto à traição de S. Pedro. O que torna o discurso – e o que vem acontecendo desde semana passada, com a presença dos bispos chilenos em Roma – duplamente significativo é que logo de início ele mencionou as fontes da desolação da Igreja, que podem representar a Igreja em grande parte do mundo ocidental: a perda de status e deferência resultante de mudanças sociais bem como fracassos institucionais, sobretudo o clericalismo e a idolatria institucional na forma de lidar especialmente com o abuso por parte de clérigos (10).

Entre as tentações em tempos de tribulação identificadas por ele estão um voltar-se para dentro de si mesmo, um “ruminar” ou “remoer” a desolação, bem como um sentimento exagerado de perseguição e vitimização. Há uma tentação de adotar uma concepção maniqueísta de ver o outro como mau e a nós mesmos como bons. Em vez de se concentrar na confusão espiritual criada por ataques ideológicos, isto é, no discernimento, a tentação consiste em aumentar a atenção dada aos próprios ataques ao responder no nível de ideias. Desse modo, o diabo leva a Igreja a imitar o jeito de ser dele. Envolver-se em um ataque contra os maus espíritos no âmbito intelectual significa ser cúmplice de um engodo, pois a verdade não é uma ideia, e sim uma pessoa, Jesus Cristo, que também é caridade ou amor. Uma autodefesa intelectual corre o risco de retirar o foco de Cristo e, assim, de apresentar a verdade de um modo que não seja amo- roso, ou de modo amoroso ao mesmo tempo que se trai a verdade. (Esta é, naturalmente, a armadilha na qual a Igreja ocidental caiu em sua resposta à secularização, tanto em sua resposta liberal quando na conservadora). Em cada um desses casos, o problema é que o obstáculo ou ameaça – neste caso, a modernidade – torna-se o foco, e não Jesus; e, por um processo de contágio mimético, a Igreja acaba emulando a ameaça.

A tentação é aquela em que Pedro caiu, em Mateus 14, quando Jesus o convidou a descer do barco e ir na direção dele: o medo fez com que ele desviasse o olhar de Cristo e focalizasse as ondas. Pedro sucumbiu mais uma vez quando, confrontado com a hostilidade da multidão, negou a Cristo. A cura de Pedro, o caminho que o faz passar pela desolação e tribulação – a forma de resistir à tentação e passar por uma conversão – é renovar seu foco em Cristo e emular o autorrebaixamento ou synkatábasis dele. Em um artigo de 1984 intitulado “Sobre a acusação de si mesmo”, Bergoglio escreve que acusar-se a si mesmo diante de Cristo, receber sua misericórdia, é um antídoto eficaz contra a recriminação mútua e a busca de bodes expiatórios que são a tentação em tempos de tribulação. Uma refocalização na misericórdia de Deus deve começar encarando-se frontalmente as realidades do pecado e do fracasso e seguindo-se o exemplo de Jesus ao lavar os pés dos outros – servindo, e não dominando (11).

Encarando suas feridas ou vulnerabilidades, permitindo-se receber a misericórdia de Deus e então saindo para servir as pessoas que também estão feridas ou são vulneráveis, a Igreja se torna o sinal de uma comunidade “transfigurada”, capaz de evangelizar porque pratica e encarna a Boa Nova da qual fala. É isso que significa “conversão pastoral”. Ela é uma jornada que leva da introspecção institucional focada em uma resposta ética ou intelectual à secularização – que só exacerba o ciclo de descristianização – para um foco centrado em Cristo, em que o receber e dar a misericórdia de Deus recentraliza a Igreja nas necessidades concretas das pessoas que sofrem e passam privação.

Assim como ocorre na conversão de uma pessoa por meio da misericórdia de Deus, nessa conversão pastoral são os fracassos pecaminosos da Igreja – sua traição do Evangelho, sua negligência ou abuso para com os vulneráveis, sua obsessão com poder e privilégios – que, paradoxalmente, tornam-se a fonte de sua redenção. O conhecimento e a acolhida de suas feridas ou vulnerabilidades libertam a Igreja do foco em si mesma e da ilusão de superioridade. A salvação vem de Cristo, e não da força dela própria. “Uma Igreja com as chagas é capaz de compreender as chagas do mundo atual e de assumi- -las, sofrê-las, acompanhá-las e procurar saná-las”, disse Francisco em Santiago, acrescentando: “Uma Igreja com as chagas não se coloca no centro, não se considera perfeita, mas coloca no centro o único que pode sanar as feridas e que tem um nome: Jesus Cristo”. Dessa maneira, a jornada de Pedro se torna a jornada da Igreja. “Conhecer Pedro abatido para conhecer Pedro transfigurado”, como ele o formulou, “é o convite a deixar de ser uma Igreja de abatidos desolados para passar a uma Igreja servidora de tantos abatidos que convivem ao nosso lado” (12). Isso é a conversão pastoral, que é a precondição necessária para evangelizar um mundo em fluxo.

Estava claro, a partir do Sínodo de outubro de 2012 em Roma convocado por Bento XVI para discutir a nova evangelização, que boa parte da Igreja do mundo rico estava em desolação, enquanto a Igreja latino-americana mostrava sinais da consolação da conversão pastoral. Muitos dos discursos de delegados eu- ropeus e americanos culpavam a cultura pelo fracasso da evangelização, envolvendo-se em longos lamentos e denúncias – exatamente como Bergoglio tinha descrito anteriormente. Inversamente, a voz pós-Aparecida dos latino-americanos era pastoral, missionária, engajada, consolada e alegre. Ao passo que os primeiros culparam a cultura pelas congregações cada vez menores da Igreja, exigindo uma intensificação da proclamação desafiadora de posições éticas, ou depositavam sua confiança neste ou naquele movimento ou programa apologético, os bispos latino-americanos exigiram que a Igreja fizesse um profundo “exame de consciência”, admitisse suas falhas e se abrisse ao Espírito Santo. “Não falamos da nova evangelização simplesmente porque os outros mudaram”, relatou o grupo latino-americano no Sínodo. “Chegou a hora de nos perguntarmos: quais são os pecados da Igreja que levaram à nova evangelização?” Essa humildade era, ela própria, sinal de consolação.

Só poucos meses mais tarde veio o conclave na véspera do qual Bergoglio fez sua famosa alocução em que descrevia uma Igreja encurvada, paralisada, incapaz de evangelizar por causa de seu foco em si mesma; Jesus estava batendo no lado de dentro da porta, pedindo para sair. Citando Evangelii Nuntiandi, ele disse aos cardeais que a própria razão de ser da Igreja era “a doce e consoladora alegria de evangelizar”, e definiu a evangelização como a saída da Igreja de si mesma rumo às periferias geográficas e existenciais, onde quer que houvesse pecado, sofrimento e falta de proximidade com Deus. Ele propôs à Igreja uma opção hermenêutica – a pergunta dos Exercícios: onde estava o foco? Quando desviou seu olhar de Cristo, a Igreja ficou doente e autorreferencial, vivendo de sua própria luz, encurvada como a mulher em Lucas 13, 10. Mas quando o foco voltou para Cristo, a Igreja olhou para fora, tornou-se missionária.

O próximo papa, disse Bergoglio aos cardeais, “deveria ser um homem que, mediante a contemplação de Jesus Cristo, a partir da adoração de Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si mesma na direção das periferias, e a ajude a ser a mãe frutífera que vive da “doce e consoladora alegria de evangelizar”. Os cardeais que tinham estado com ele em Aparecida reconheceram essas palavras de 2007, quando Bergoglio disse que o Espírito Santo conduzia a Igreja na direção de “toda periferia humana” – de dor, injustiça, ignorância, solidão etc. – que clamava por ser evangelizada. O efeito do Espírito Santo, afirmou ele naquela ocasião, era libertar a Igreja da “suficiência de nosso próprio conhecimento que leva à gnose” e, ao impeli-la a evangelizar, “liberta-nos de nos tornarmos uma Igreja autorreferencial, como a mulher encurvada no Evangelho que não faz outra coisa a não ser olhar para si mesma, enquanto o povo de Deus está em outro lugar” (13).

Notas:

  • 6. BORGHESI, Massimo. Jorge Mario Bergoglio: una biografia intelettuale. Milano: Jaca Book, 2018, p. 280-281; BENTO XVI, Deus Caritas Est, 2005, n. 1; DA, n. 243; FRANCISCO, Evangelii Gaudium [EG], n. 7.
  • 7. BERGOGLIO, Jorge Mario. Es posible ser santos. In: SPADARO (ed.), 2018, p. 406-413.
  • 8. EG 35, 165 231, 3.
  • 9. BERGOGLIO, Jorge Mario. La verdad que más brilla es la verdad de la misericordia. In: SPADARO (ed.), 2018, p. 1013-1016.
  • 10. Discurso do Santo Padre, Catedral de Santiago, 16 de janeiro de 2018. Cf. também IVEREIGH, Austen. Discernment in a time of tribulation: Pope Francis and the Church in Chile, Thinking Faith, 8 de maio de 2018.
  • 11. BERGOGLIO, Mario Jorge. Sobre la acusación de sí mismo. Publicado originalmente em Boletín de Espiritualidad, Companhia de Jesus, n. 87, maio-jun. 1984, e republicado por Ed Claretiana, Buenos Aires, 2005.
  • 12. Discurso do Santo Padre, Catedral de Santiago, 16 de janeiro de 2018.

Austen Ivereigh. Escritor e jornalista britânico especializado na Igreja Católica e no papa- do de Francisco. Possui doutorado pela Universidade de Oxford sobre o tema da Igreja e da política na Argentina, no qual ele se baseou para escrever sua biografia autorizada do Papa Francisco, Francisco, o grande reformador: os caminhos de um papa radical.

Fonte: Cadernos Teologia Pública é uma publicação impressa e digital quinzenal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que busca ser uma contribuição para a relevância pública da teologia na universidade e na sociedade. A teologia pública pretende articular a reflexão teológica e a participação ativa nos debates que se desdobram na esfera pública da sociedade nas ciências, culturas e religiões, de modo interdisciplinar e transdisciplinar. Os desafios da vida social, política, econômica e cultural da sociedade, hoje, constituem o horizonte da teologia pública.