Diante do problema do escândalo do abuso sexual de menores, a chamada pedofilia, não cabe leituras simplistas, ingênuas, moralistas e fundamentalistas. Ao contrário, a questão precisa ser encarada e analisada com coragem profética, com o rigor da ética evangélica e com uma busca urgente e sincera de encontrar caminhos novos. Primeiro, uma imediata postura de acolhida, acompanhamento e com medidas de reparação para com as vítimas de abuso. Em segundo lugar, um compromisso explícito de tolerância zero, de contínua atitude implacável de combate, punição dos criminosos e de superação do problema por um cultivo do estudo científico, da reflexão crítica e autocrítica e da revisão da mentalidade, da postura, da formação cristã e, se necessário, da compreensão da própria doutrina cristã.
Apresentamos, a seguir, uma publicação do biblista Pablo Richard, com uma síntese do texto de Bento XVI sobre a Igreja e o escândalo do abuso sexual de menores, seguida de uma contundente e provocativa avaliação crítica do texto do papa emérito.
(O texto foi publicado no blog do autor, Pueblo Biblia, do site da Amerindia, www.amerindiaenlared.org, com tradução do espanhol por Edward Guimarães):
SÍNTESE DO TEXTO DE BENTO XVI
“De 21 a 24 de fevereiro, a convite do papa Francisco, os presidentes das conferências episcopais do mundo reuniram-se no Vaticano para discutir a crise da fé e da Igreja, uma crise palpável em todo o mundo, após as revelações chocantes de abuso clerical perpetrado contra menores. A extensão e a gravidade dos incidentes relatados intrigaram os presbíteros e os leigos e leigas e fizeram com que muitos questionassem a própria fé da Igreja. Era necessário enviar uma mensagem forte e buscar um novo começo para tornar a Igreja uma vez mais credível como uma luz entre os povos e como uma força que serve contra os poderes da destruição.
Esta reflexão está dividido em três partes. Na primeira, procuramos apresentar brevemente o contexto amplo da questão, sem o qual o problema não pode ser entendido. Intentamos mostrar que na década de 1960 ocorreu um grande evento, em uma escala sem precedentes na história. Pode-se dizer que nos 20 anos entre 1960 e 1980, os padrões obrigatórios até então em relação à sexualidade colapsaram completamente. Na segunda, procuramos esclarecer os efeitos dessa situação na formação dos presbíteros e em suas vidas. Finalmente, na terceira, desenvolvemos algumas perspectivas para uma resposta adequada por parte da Igreja.
A questão começa com a introdução de crianças e jovens na natureza da sexualidade, algo prescrito e apoiado pelo Estado. Na Alemanha, o então ministro da Saúde, tinha uma fita na qual tudo o que não tinha permissão para ensinar publicamente antes, incluindo relações sexuais, era agora exibido com o propósito de educação. Essa dissolução da autoridade moral do ensino da Igreja deve necessariamente ter um efeito sobre os diferentes membros da Igreja. Uma vez que tem a ver com o problema da preparação nos seminários para o ministério presbiteral, há de fato uma ampla decomposição no que diz respeito à forma prévia de preparação. Um bispo, que já havia sido reitor de um seminário, fez os seminaristas assistirem a filmes pornográficos com a intenção de torná-los resistentes a comportamentos anti-fé. A questão da pedofilia, se bem me lembro, não foi aguda até a segunda metade da década de 1980. Enquanto isso, já havia se tornado uma questão pública nos Estados Unidos, tanto que os bispos foram a Roma buscar ajuda e que o direito canônico, conforme escrito no novo Código (1983), não parecia suficiente para tomar as medidas necessárias. A princípio, Roma e os canonistas romanos tiveram dificuldades com essas preocupações porque, em sua opinião, a suspensão temporária do ministério presbiteral tinha que ser suficiente para gerar purificação e esclarecimento. Isto não podia ser aceito pelos bispos americanos, porque assim os presbíteros permaneciam a serviço do bispo e, portanto, estavam diretamente associados a ele. Lentamente, uma renovação e aprofundamento da lei criminal do novo Código estava tomando forma, que tinha sido deliberadamente construída de maneira confortável. Além disso, no entanto, havia um problema fundamental na percepção do direito penal. Somente a chamada garantia (uma espécie de protecionismo processual) significava que os direitos do acusado tinham que ser garantidos, acima de tudo, a tal ponto que qualquer tipo de condenação fosse completamente excluído. Como contrapeso às opções de defesa disponíveis aos teólogos acusados, e muitas vezes inadequados, seu direito à defesa foi estendido a tal ponto que as condenações eram quase impossíveis.
O que deve ser feito? Talvez devêssemos criar outra igreja para fazer as coisas funcionarem? Somente a obediência e o amor por nosso Senhor Jesus Cristo podem apontar o caminho. Então primeiro tentemos entender de novo e de dentro (de nós mesmos) o que o Senhor quer e deseja conosco. Um mundo sem Deus só pode ser um mundo sem significado. Porque existe um Deus Criador que é bom e que quer o bem, a vida do homem adquire então profundo sentido. O próprio Deus se torna uma criatura, de modo que os seres humanos falam com ele como se falassem com seres humanos. Uma sociedade sem Deus, uma sociedade que não o conhece e o trata como inexistente, é uma sociedade que perde sua medida.
Em nossos dias, a frase da morte de Deus foi cunhada. Quando Deus morre em uma sociedade nos é dito que se torna livre. Na realidade, a morte de Deus em uma sociedade também significa o fim da liberdade porque o que morre é o propósito que provê orientação, uma vez que desaparece a bússola que nos direciona na direção certa que nos ensina a distinguir o bem do mal.
A sociedade ocidental é uma sociedade na qual Deus está ausente na esfera pública e não tem nada para oferecer a ele. E essa é a razão pela qual é uma sociedade em que a medida da humanidade se perde cada vez mais. Em pontos individuais, de repente parece que o que é ruim e destrói o homem se tornou uma questão de rotina. Esse é o caso da pedofilia. E agora percebemos com surpresa que as coisas que estão acontecendo com nossas crianças e jovens ameaçam destruí-las. O fato de que isso também pode ser estendido na Igreja e entre os sacerdotes é algo que deve nos incomodar de uma maneira particular. Por que a pedofilia atingiu tais proporções? No final, a razão é a ausência de Deus. Nós, cristãos e sacerdotes, também preferimos não falar sobre Deus, porque esse discurso não parece ser prático.
Muitos casos de abusos de clérigos nos fazem olhar para a Igreja como algo quase inaceitável que temos que tomar em nossas mãos e redesenhar. A ideia de uma Igreja melhor, feita por nós mesmos, é na verdade uma proposta do diabo, com a qual ele quer nos afastar do Deus vivo usando uma lógica enganosa em que podemos facilmente cair. A Igreja de Deus também existe hoje e hoje é o mesmo instrumento pelo qual Deus nos salva. É muito importante opor com toda a verdade as mentiras e meias-verdades do diabo: sim, há pecado e mal na Igreja, mas ainda hoje há a Santa Igreja, que é indestrutível. Ao final de minhas reflexões, gostaria de agradecer ao papa Francisco por tudo que ele faz para nos mostrar a luz de Deus que não desapareceu, ainda hoje. Obrigado Santo Padre!
Bento XVI
COMENTÁRIO AO TEXTO DE BENTO XVI
O documento tem como referência central a Igreja e não as vítimas de abuso sexual pela Igreja. O documento está localizado apenas na Europa, especialmente na Alemanha e na Áustria, com algumas referências aos Estados Unidos.
O documento afirma que a sociedade ocidental é uma sociedade na qual Deus está ausente. Esta ausência também pode ser estendida na Igreja e entre os presbíteros. Por que a pedofilia atingiu tais proporções? No final, a razão, para Bento XVI, é a ausência de Deus.
Existe no documento uma interpretação da história recente muito reduzida à realidade da sexualidade. O contexto é reduzido à introdução de crianças e jovens na sexualidade, incluindo relações sexuais com o propósito de educação. Na avaliação da década de 20 anos entre 1960 e 1980, afirma-se que os referentes até então com relação à sexualidade colapsaram completamente. A educação sexual não é valorizada como legítima.
Também a avaliação da década de 1960-1980 é muito negativa e condenatória. Ao contrário, foi uma década amplamente criativa e positiva. Maio de 1968 é positivamente lembrado como um ano em que o mais valioso da “modernidade” explodiu. Lembremos que o Concílio Vaticano II foi entre 1962 e 1965 e que a Conferência de Medellín foi precisamente em 1968.
Em suma, o documento de Bento XVI é central europeu, fundamentalista, espiritualista, reducionista, pessimista e ignora a realidade teológica e espiritual da América Latina e do Terceiro Mundo. Temos a impressão de que o documento de Bento XVI não foi além do Concílio de Trento e do Concílio Vaticano I.
Sobre o autor:
Pe. Pablo Richard é biblista costarriquenho, formado pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e pela Escola Bíblica de Jerusalém. Ele é doutor em Ciências da Religião pela Sorbonne de Paris. Ele dedicou 40 anos à formação popular de biblistas na América Latina e Caribe. Algumas de suas publicações mais destacadas são: “O movimento de Jesus antes da Igreja” e “Apocalipse, reconstrução da esperança”.
Que análise simplista e preconceituosa desse infeliz Pablo Richard!