O papa Francisco vai percorrendo o doloroso caminho da purificação da Igreja. Foi ele, como escreve o teólogo J. Maria Castillo, o primeiro papa, na longa história da Igreja, que teve a coragem, a liberdade e a sinceridade de reconhecer publicamente que houve (e há) clérigos que cometeram e continuam a cometer abusos de pederastia.
Como foi possível que homens de Igreja, pastores à imagem do Bom Pastor, se transformassem em lobos predadores do rebanho a eles confiado? Como pode a evangelização avançar sem uma profunda conversão dos pastores e das estruturas que geram e permitem esta monstruosidade?
Tolerância zero
Quando se torna clara uma série de ataques ao papa Francisco a partir da luta sem tréguas por uma Igreja mais evangélica, sobretudo no tocante ao clericalismo e aos abusos sexuais, é bom recordarmos o caminho percorrido desde o início de seu pontificado:
- Em 5 de Abril de 2013, na sua primeira audiência, insiste em que a Congregação para a Doutrina da Fé atue com decisão nos casos de abusos sexuais;
- Em 2014, cria a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores;
- Em julho desse mesmo ano, celebra a eucaristia com vítimas de pedofilia e pede perdão por esses graves crimes;
- Em novembro de 2014, cria um tribunal especial junto da Congregação para a Doutrina da Fé para acelerar os processos de pederastia;
- Em 2016, publica o “Motu proprio” Como uma Mãe Amorosa e determina que os bispos que, por “negligência ou omissão”, causam “danos graves a outra pessoa na comunidade” podem ser expulsos;
- Em 2017, pede a todos os bispos que “protejam a vida das nossas crianças para que estes crimes não mais se repitam” e para que se estabeleça “clara e honestamente a tolerância Zero”;
- Em 2018, convoca os bispos do Chile, depois de ter sido mal informado no caso de Fernando Barros encobrir o sacerdote Karidima. Todos os bispos apresentam a sua demissão;
- Em abril e junho de 2018, reúne-se com vítimas chilenas de abuso;
- Em junho desse ano, aceita a renúncia de cinco bispos chilenos e, em outubro, retira o exercício das ordens a dois bispos chilenos;
- Em julho de 2018, aceita a demissão de McCarrik que logo depois é suspenso de ordem;
- Depois da informação do Grande Júri da Califórnia com a documentação de 300 supostos casos de abuso, escreve uma carta ao povo de Deus na qual admite que “olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e para procurar e reparar o dano causado”;
- Convoca, para fevereiro de 2019, uma reunião no Vaticano com todos os Presidentes das Comissões Episcopais Nacionais.
Colocar a Igreja do lado das vítimas
Esta sucessão de intervenções do Papa ajudam-nos a perceber a necessidade de uma mudança radical da Igreja em relação a este “cancro com metástases por todos os lados”.
Colocar a Igreja do lado das vítimas e não dos prevaricadores é uma mudança de paradigma no agir da Igreja, em que o poder muitas vezes não foi um serviço, mas um domínio e opressão dos mais pequeninos do Reino. Nesse sentido, a questão dos abusos por homens de Igreja não pode continuar a ser escondida e ocultada em nome do prestígio da Igreja. A transparência passa ainda pela denúncia aos tribunais civis que devem investigar e julgar os crimes.
É evidente que esta ação de denúncia não resolve o problema se não houver “uma verdadeira purificação” e um renovado sentido de santidade nos pastores. As Conferências Episcopais de cada país são responsáveis por aplicar as diferentes normas e por não mais permitir que o silêncio cubra os prevaricadores.
Para terminar algumas notas da intervenção do P. Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, na Universidade de Comillas, no dia 6 de março de 2019. Um discurso duro e que desafia a Igreja a tornar-se sinal de esperança para os mais pequeninos, uma Igreja que, diante da perda de credibilidade, não se entrincheira em gueto, mas avança com medidas eficazes de mudança:
Nenhuma outra instituição está a abrir caminhos tão sérios de prevenção… É necessário que “as vítimas estejam no centro e que encontrem empatia e proximidade”, pois muitas vezes as pessoas não encontram o rosto misericordioso que proclama o Evangelho, mas encontram “uma porta fechada”. A Igreja não pode “esperar que passe a tempestade”, mas deve ser a “instituição que tem, como sua máxima, a proteção de menores.
Uma atitude assim “mudaria a opinião das pessoas acerca da Igreja e seria, além disso, uma forma de escutar o que Deus quer de nós e que nos está a pedir neste tempo”.
(Os grifos são nossos)
Sobre o autor:
Pe. Idalino Simões
Padre da Diocese de Coimbra. Nasceu em Tapeus, em 13 de março de 1939. Foi ordenado presbítero, em 28 de Julho de 1963. A atividade pastoral passou por uma experiência inicial de trabalho com estudantes e na pastoral universitária. Foi pároco de São Martinho do Bispo, de 1986 até 2005 e pároco na Unidade pastoral de Conímbriga, até 2019.
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