Por Dom Sebastião Armando Gameleira
Cada vez mais, em nossos tempos, cresce a exigência de intensificar os processos de educação popular. É uma triste vergonha que, a esta altura, grande parte da humanidade ainda esteja nas trevas da ignorância, ausente dos processos históricos de transformação, sem se sentir agente de sua própria história.
Para nós é claro que o processo de leitura da Bíblia é necessariamente um desses processos. Afinal, a Bíblia nasceu da experiência do povo através de séculos. Nela está contida a riqueza de uma tradição cujas raízes estão na luta pela liberdade do povo (cf. Ex 1-15), na recusa da dominação dos poderosos (cf. Jz 4-5; 9) e no esforço de voltar sempre de novo às fontes de sua identidade (cf. Is 40-66).
Pela história, sabemos que o movimento popular medieval, que aflorou com tanta força em líderes eremitas nas montanhas da Itália, e em grandes personalidades tais Joaquim de Fiori, Francisco de Assis e Pedro Valdo, além do protagonismo de muitas mulheres injustamente condenadas como “bruxas”, aquele movimento achava suas origens últimas nas histórias bíblicas, nas antigas profecias, nos salmos e no exemplo sempre vivo de Jesus de Nazaré e de seus Apóstolos; chegava a se chamar de “apostólico”, imitador dos antigos discípulos de Jesus (cf. Mt 10 e Lc 10).
É verdade ainda hoje, quem se acostuma a frequentar a Bíblia não pode se recusar a reconhecer que se trata de uma “escola de liberdade”, a começar da descoberta de que cada pessoa humana tem a mesma dignidade e transcendência, ninguém é maior que ninguém (cf. Gl 4-5). Basta prestar atenção ao que se dá nas Comunidades de Base (CEBs), ambiente onde o povo redescobre sua dignidade e seu protagonismo na comunidade da Igreja e na sociedade.
“Educação popular” é um método já testado suficientemente no Brasil e em muitas partes do mundo. Tivemos, por exemplo, o MEB (Movimento de Educação de Base), parceria entre o Ministério da Educação e a Igreja; tivemos os “Círculos de Cultura” liderados e inspirados pelo método Paulo Freire de alfabetização, primeiro no Brasil e depois em outros países da Afroameríndia, nos próprios Estados Unidos e na África, com apoio do Conselho Mundial de Igrejas e da Organização das Nações Unidas.
Reavivar nos dias de hoje esse processo é necessário e urgente, como caminho de ascensão de nossos povos no rumo da participação democrática. Nas Igrejas cristãs, torna-se cada vez mais urgente retomar a leitura popular da Bíblia como método de educação popular, com a consciência muita clara do princípio proclamado pelo grande educador Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho; nós nos educamos em comunhão”. É claro que a trajetória da própria vida coincide com o “caminho” da educação, para que nos tornemos cada vez mais pessoas lúcidas (“ilustradas”), livres e sempre mais amorosas. A Leitura Popular da Bíblia é um desses caminhos, pois se trata de um método no qual o “popular” é protagonista e o terreno fértil é a vivência em “comunidade”. Por isso se fala de Leitura Popular e Comunitária da Bíblia. Educar vem do verbo latino “e-ducere”, a saber, conduzir a partir de dentro, tirar de dentro, fazer aparecer as potencialidades da pessoa.
Sabemos que o termo “método” vem da expressão grega “metà-hodós” que quer dizer “pelo caminho”, a saber, “método” é o caminho pelo qual nós nos aproximamos da realidade. Na Modernidade, no auge da embriaguez da ciência, “método” passou a designar procedimento “científico” para abordar a realidade. Quem sabe, devíamos voltar à noção antiga de simplesmente “caminho disciplinado”. A Teologia, por exemplo, que na Idade Média estava no topo da pirâmide do saber, não cabe na noção moderna de “ciência”, pois a ciência exige que se fique no campo da racionalidade, enquanto a Teologia se move nos terrenos da “racionabilidade” ou “razoabilidade”, não por defeito, mas por excesso, pois a “razoabilidade” nos concede um trampolim para ultrapassar as “razões da razão” e chegar a alcançar as “razões do amor”.
Para a leitura bíblica, é inegável, as ciências modernas trouxeram significativa contribuição, particularmente através do chamado “Método Histórico-Crítico” que se desdobra em diversos e grandemente úteis procedimentos científicos de observação e penetração do texto. Mas essa é só a primeira etapa no processo de interpretação.
- Com a chamada “Crítica Textual” temos a chance de poder, com mais segurança, analisar e comparar os manuscritos antigos e discernir para chegar aos textos mais primitivos da Bíblia.
- A “Crítica Literária” nos permite distinguir entre textos autênticos e interpolações ou acréscimos que não são do autor primitivo, de tal forma que assim se pode perceber como o texto cresceu ou se modificou ao longo do tempo, para melhor ou para pior. Além disso, nos permite perceber o que, na Antiguidade, significava realmente atribuir um texto a determinado autor: muitas vezes se trata mais de “patrono” de um escrito ou de uma corrente de pensamento do que de “autor” no sentido moderno do termo.
- A“Crítica Histórica” mediante subsídios da Arqueologia, da Geografia e da História, nos possibilita confirmar nos textos o que são notícias realmente históricas e o que são crenças, criações literárias, confusão entre épocas e lugares diferentes etc.
- Em época mais recente, temos tido a “Crítica ou História das Formas” que nos tem ajudado a identificar na Bíblia os diversos gêneros (ou “formas”) literários e, com “olhar sociológico”, perceber o “contexto vital” (o “Sitz im Leben”, ou “lugar na vida”, como cunharam os alemães) em que as comunidades antigas produziram seus testemunhos, tantas vezes orais e em seguida escritos: história, mitos, fábulas, prosa, leis, poemas, hinos, parábolas, provérbios, ditos e reflexões sapienciais, narrações de milagres, narrações “novelescas”, evangelhos, epístolas, apocalipses etc.
- Finalmente, ficou mais fácil distinguir entre o material que já vinha da “tradição” e o que é “toque redacional” posterior, com a possibilidade de estabelecer, em grande parte, a “história da tradição” e a “história da redação” de um escrito.
- Mais recentemente, temos tido a ajuda da “Análise Literária ou Retórica” que nos capacita a perceber melhor o jogo literário impresso na composição e estrutura do texto final que possuímos diante dos olhos, algumas obras são de alto valor de arte literária, como, por exemplo, a poesia de Isaías, de Jó, de Amós, de Oséias, dos Salmos, de João evangelista e tantos outros.
Isso aí, quanto a contribuições metodológicas mais recentes. Devemos, no entanto, reconhecer que já desde a Antiguidade sempre se buscou uma maneira sistemática de abordar os textos. O grande teólogo e analista da Bíblia, Orígenes, foi um dos mais famosos nessa tarefa. Na Era Patrística, chegou-se a estabelecer um procedimento de leitura bastante sistemático, que estabelecia quatro sentidos das Escrituras:
- Começava-se pela pesquisa do “sentido literal ou histórico” do texto, ou seja, o que diz imediatamente o “corpo” do texto que está diante dos olhos do leitor;
- Daí se passava ao “sentido espiritual”, ou seja, o que de espírito se comunica naquele “corpo”. Se as Escrituras são obra divinamente “inspirada”, deve haver um “sentido mais pleno” que é realmente o “recado” intencionado pelo Espírito. Isso se buscava em três níveis: o “sentido alegórico” (nele também se inclui o que se chama de “sentido tipológico”, quando uma figura ou acontecimento do Primeiro Testamento antecipa personagens e realidades que se dão no Segundo Testamento, ou seja, o que está em outro (“állos”) plano, para além da pura letra e, desse modo, nos fala acerca de Cristo e dos mistérios de Deus, revelados na história e em Sua Igreja);
- Em seguida, de que modo o texto nos pode orientar na prática da vida de acordo com o que aprendemos de Jesus, a saber, como orientar nosso comportamento à semelhança de nosso Irmão maior e de quem O seguiu, é o “sentido tropológico” (o “caminho” prático, ético);
- Finalmente, o que o texto pode nos dizer acerca de nosso destino, do futuro, de nossa plenitude, é o “sentido anagógico ou escatológico” (o que está adiante e nos eleva).
Na Idade Média, particularmente a partir do ambiente monástico, se formulou a chamada “Lectio Divina”, ou leitura que nos introduz nos mistérios divinos.
- Começa-se pela “Lectio”, pela leitura atenta da letra do texto, para que nos possa penetrar.
- O passo seguinte é a “Meditatio”, a ruminação ou penetração do texto, momento em que se busca compreender a mensagem que nos é endereçada, é o passo em que cabe aquilo que chamamos de “exegese” ou compreensão do texto, mediante elementos que o aproximem de nós.
- Penetrar o texto, porém, nos provoca a sensação de estar diante de algo que nos ultrapassa, daí por que é como se interrompêssemos a leitura e tivéssemos de invocar o auxílio divino que nos abra para compreender de acordo com o Espírito, é o momento da “Oratio”, a oração que nos chama a escutar o Espírito.
- Finalmente, o texto nos conduz à “Contemplatio”, contemplação das obras de Deus narradas pelo texto, o que nos abre os olhos para perceber as obras que Deus já realizou na antiga História da Salvação e continua a realizar em nossa vida e em Seu mundo, por Ele criado; nosso mundo está em continuidade com o mundo antigo que nos é trazido pelo texto, e que é, em última análise, a Criação de Deus na qual estamos envolvidos/as como produto (obra particular) e, ao mesmo tempo, “macho e fêmea, imagem plural de Deus”, como cuidadores e cuidadoras de todo o conjunto (cf. Gn 1, 26-31; 2, 15). O texto de Gênesis nos convoca à mesma atitude contemplativa do próprio Criador: “E Deus olhou e exclamou: “Que bonito!” (cf. Gn 1 a 2).
Quando falamos de Leitura Popular e Comunitária da Bíblia, não estamos a pensar, primeiramente, num novo procedimento científico para abordar os textos. Temos a liberdade de tirar proveito de todos os “métodos” científicos já testados até hoje. Trata-se, isto sim, de uma nova perspectiva hermenêutica e de um novo “jeito” de ler o texto e utilizar os diversos “métodos” que nos ajudem a deixá-lo falar a nós hoje.
Sobre o autor:
Dom Sebastião Armando Gameleira
Nascido em São Miguel dos Campos, Alagoas, de família cristã, terceiro de cinco filhos, Dom Sebastião Armando Gameleira Soares fez seus estudos secundários no Seminário Metropolitano de Maceió e estudos de Filosofia no Seminário de Olinda, Pernambuco. Obteve o bacharelado e o mestrado em Teologia na Universidade Gregoriana, de Roma, com dissertação sobre Santo Anselmo, Arcebispo de Cantuária. Obteve também o mestrado em Ciências Bíblicas, no Instituto Bíblico, de Roma, com dissertações sobre o Livro dos Salmos e o Livro de Isaías, e o mestrado em Filosofia na Universidade Lateranense, de Roma, com dissertação sobre a obra do filósofo brasileiro Henrique de Lima Vaz. Ainda em Roma, fez Especialização em Sociologia, na Universidade dos Estudos Sociais, com trabalho sobre a obra de Gilberto Freyre. É também bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Olinda. No Nordeste, por vários anos, foi professor do Instituto de Teologia do Recife (ITER), do qual foi também Diretor de Estudos. Foi assessor membro da equipe do Departamento de Pesquisa e Assessoria-DEPA para formação teológica. Foi assessor da CNBB e da CRB do Nordeste II. É membro do Centro de Estudos Bíblicos-CEBI, do qual foi diretor nacional e coordenador do Programa de Formação. Foi ordenado presbítero na Comunhão Anglicana em 1997, já sendo professor e reitor do Seminário Anglicano no Recife. Em 1998 participou da Conferência de Lambeth, encontro mundial do episcopado anglicano, em Cantuária, na Inglaterra, como membro da equipe de assessoria no tema “Evangelização”, convidado pelo Arcebispo de Cantuária, por indicação dos Bispos do Brasil. Foi eleito bispo no ano 2000 para a Diocese Anglicana de Pelotas-RS, e em 2006 eleito para a Diocese Anglicana do Recife (Região Nordeste). Em 2008, voltou a participar da Conferência de Lambeth, dessa vez já como bispo. Tornou-se emérito em dezembro de 2013. É casado há 42 anos com Maria Madalena, também alagoana, assistente social, com quem tem três filhas e um filho. Hoje se dedica particularmente ao Ministério da Palavra (estudos bíblicos e teológicos, em especial Leitura Popular da Bíblia, Anglicanismo, Escolas de Fé e Política, e Espiritualidade) em fronteira ecumênica, e junto com Madalena coordena um projeto social (“Casa Ecumênica – Crer & Ser”) com crianças e suas famílias, no Alto do Moura, em Caruaru-Pernambuco, Brasil.
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