Por José Comblin
O documento de Aparecida proclama com muita força que quer situar-se em continuidade ao de Medellín. Esta afirmação alegrou a muitos católicos que tinham a impressão de que na América Latina a Igreja tinha se afastado de Medellín. No entanto, olhando com mais atenção os documentos das duas conferências, é impossível não perceber diferenças fundamentais.
O documento de Medellín pretendeu ser uma aplicação do Vaticano II para a América Latina. Porém, em Medellín a mensagem básica do Concílio estava na Gaudium et Spes. Além disso, Medellín era também uma aplicação do Pacto das Catacumbas, assinado por 40 bispos numa catacumba de Roma no final do Concílio. Por esse Pacto, os bispos assumiam o compromisso de uma vida pobre a serviço dos pobres. Muitos dos que assinaram o Pacto eram bispos do Terceiro Mundo e havia entre eles um grupo importante de latino-americanos. Claro está que Dom Hélder estava na origem desse Pacto. Esse Pacto estava em ação no momento de Medellín, embora, por razões óbvias, nunca tenha sido mencionado.
A Cúria Romana estava desconfiando da proposta da Conferência de Medellín, ainda que Paulo VI a tivesse aceitado com muita satisfação. Mudou algo da programação da Conferência para reduzir o tempo de fala de bispos como Dom Leonidas Proaño, concedendo a metade do seu tempo a Dom Eugênio Sales, que, naturalmente, seria muito mais moderado. Também a Cúria Romana suprimiu da lista dos assessores quatro belgas, todos associados à Universidade de Lovaina, julgada perigosa. Eu era um dos quatro. Mesmo assim, a Cúria, representada em Medellín pelo cardeal Antonio Samoré, um dos três presidentes, não conseguiu orientar os debates e a redação do documento. Este foi publicado imediatamente no final da Conferência tal como tinha sido redigido pelas comissões. O cardeal Samoré não conseguiu suspender a publicação até que o texto fosse enviado a Roma para ser corrigido. De volta a Roma, o cardeal Samoré foi severamente castigado. Porém, o texto já estava nas mãos dos latino-americanos.
Depois da Revolução Francesa, que iniciou o processo de destruição da cristandade do Ocidente (romana) até o Vaticano II, os documentos da Igreja estavam centrados na reafirmação da identidade católica, identificada com a instituição, definida no Concílio de Trento e no apelo à conversão dos povos que se afastaram da Igreja. Achavam que a formulação do catolicismo integral levaria a uma conversão do mundo pecador este voltaria ao seio materno da Igreja. O movimento desejado era a conversão do mundo para a Igreja. E o mundo não se converteu.
João XXIII quis mudar essa orientação. Quis que a Igreja olhasse para o mundo de maneira mais positiva e proclamou o fim da era das condenações. As condenações caíam sobre os católicos que procuravam uma aproximação com a sociedade nova nascida das revoluções modernas. João XXIII criou no Concílio um ambiente favorável a essa atitude, mas nem todos os que aprovaram os textos entenderam ou aprovaram interiormente. Por sinal, os textos conciliares são muito heterogêneos, porque a maioria quis dar satisfação à minoria conservadora e introduziu nos textos ideias que eram contrárias àquilo que se proclamava por outro lado. Cada um podia escolher os textos que lhe agradavam.
O Concílio foi avançando cada vez mais na orientação dada pelo papa João XXIII, a qual foi reassumida por Paulo VI. O passo final e definitivo foi dado na Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Nesta Constituição, a Igreja tomou como orientação o serviço à humanidade. Implicitamente, o tema dominante é uma conversão da Igreja para o mundo. Foi o que Paulo VI sublinhou e defendeu claramente no seu discurso de clausura. O centro era o homem, e a Igreja estava a serviço do homem.
Centralidades distintas
Conversão do mundo à Igreja ou conversão da Igreja ao mundo? Este era o dilema.
Desde a introdução, o documento de Medellín define claramente o propósito da Conferência:
A Igreja latino-americana, reunida na II Conferência Geral do seu Episcopado, situou no centro de sua atenção o homem deste continente, que vive um momento decisivo de seu processo histórico.
Assim sendo, não se acha “desviada”, mas “voltou-se para o homem”, consciente de que, “para conhecer Deus, é necessário conhecer o homem”. Pois Cristo é aquele em quem se manifesta o mistério do homem; procurou a Igreja compreender este momento histórico do homem latino-americano à luz da Palavra, que é Cristo. Procurou ser iluminada por esta palavra para tomar consciência mais profunda do serviço que lhe incumbe prestar neste momento.
Por outro lado, assim começa a introdução do documento de Aparecida:
Com a luz do Senhor ressuscitado e com a força do Espírito Santo, nós, os bispos da América, nos reunimos em Aparecida, Brasil, para celebrar a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Fizemos isso como pastores que querem seguir estimulando a ação evangelizadora da Igreja, chamada a fazer de todos os seus membros discípulos e missionários de Cristo, Caminho, Verdade e Vida, para que nossos povos tenham vida n’Ele.
Desde as primeiras palavras, a diferença é patente. Por um lado, o centro é o homem; por outro lado, o centro é a Igreja. Nos dois casos, havia uma opção de base e todo o trabalho das Assembléias consistiu em explicitar essa opção, examinando-a nos diversos aspectos.
Metodologias distintas
Outra diferença importante aparece na metodologia adotada. Em Medellín, as 16 comissões praticaram o método ver-julgar-agir. Em cada assunto, o ponto de partida era ver a situação; depois disso, se buscava na revelação cristã a norma que se aplicava a essa situação, o julgar. Em seguida, vinham as recomendações pastorais para a ação: o agir.
No documento de Aparecida, o conjunto está dividido em três partes: uma trata do ver, outra do julgar e outra do agir. Algumas comissões examinam a situação, outras a doutrina e outras ainda examinam o agir. O resultado é que não aparece nenhuma relação entre o ver, o julgar e o agir. O agir não tem nada a ver com o ver, e assim por diante. Oficialmente em Aparecida, os bispos adotaram o método ver-julgar-agir, mas de maneira que não era operacional. Não se pode dizer que a doutrina é a resposta à situação da América Latina. Ela vale para qualquer lugar no mundo. Também o agir não é a resposta à situação social ou eclesial latino-americana.
Em Medellín, cada comissão redigiu o seu texto. Em Aparecida, o texto foi obra de uma comissão de redação. O resultado é que há mais homogeneidade de estilo e de vocabulário, e mais coesão entre os temas no documento de Aparecida. Mas o discurso dos bispos fica apagado pelo discurso da comissão de redação. O texto é melhor, literariamente falando, e mais homogêneo, mas tem muito menos repercussão.
O documento de Medellín está, com certeza, centrado no tema da pobreza. Foi o prolongamento do Pacto das Catacumbas. Nessa opção, podemos discernir o reconhecimento da conversão de vários bispos e vários sacerdotes na América Latina que se aproximaram dos pobres, convivendo com eles, sentindo e vivendo os seus sofrimentos e as suas humilhações. Tudo isso já existia antes de Medellín. Já estava presente a trajetória de Dom Hélder e de vários bispos do Brasil que tinham feito opção pelos pobres. Já estava presente a luta de Dom Leonidas Proaño em favor dos índios no Equador, de Dom José Dammert no Peru, de Dom Samuel Ruiz no México, de Dom Enrique Angelelli na Argentina, e vários outros. Já estava presente a ida de vários sacerdotes para o mundo dos pobres em vários países. E havia a presença de Paulo VI animado pelo Concílio e muito comprometido, exortando os bispos para um maior compromisso com os pobres.
Lemos no Documento de Medellín:
A Igreja da América Latina, dadas as condições de pobreza e subdesenvolvimento do continente, sente a urgência de traduzir esse espírito de pobreza em gestos, atitudes e normas que a tornem um sinal mais lúcido e autêntico do Senhor. A pobreza de tantos irmãos clama por justiça, solidariedade, testemunho, compromisso, esforço e superação para o cumprimento pleno da missão salvífica confiada por Cristo (14. Pobreza da Igreja, 6).
Por isso, Medellín tinha acentos proféticos: “Um surdo clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte” (14. Pobreza da Igreja, 2).
A educação será uma “educação libertadora”, “isto é, que transforma o educando em sujeito de seu próprio desenvolvimento. A educação é efetivamente o meio-chave para libertar os povos de toda servidão” (4. Educação, II, 1).
Medellín não tinha medo da palavra “libertação”. Usou-a muitas vezes, sem nenhum adjetivo. Adotou o tema da libertação quando a Teologia da Libertação ainda não existia. Quem lançou a Teologia da Libertação foi a Conferência de Medellín. Isto nunca foi escondido e todos os teólogos tomavam Medellín como referência privilegiada.
As recomendações práticas eram inspiradas no mesmo espírito. As palavras dos bispos tinham força porque expressavam a vida real de pelo menos uma minoria ativa que foi a alma da Conferência. Vários bispos tinham passado por uma verdadeira conversão, como Dom Hélder em 1955.
Quanto aos sacerdotes, os bispos disseram: “Estimularemos os que se sentem chamados a compartilhar da sorte dos pobres, vivendo com eles e trabalhando com suas próprias mãos” (14. Pobreza da Igreja, 9a).
Quanto à pastoral das elites, a posição foi de que “esta evangelização deve ser relacionada com os sinais dos tempos. Não pode ser atemporal nem a-histórica. Com efeito, os sinais dos tempos observados em nosso continente, sobretudo na área social, constituem um ‘dado teológico’” (7. Pastoral das elites, II, 2).
O documento de Medellín também não tem medo da palavra “justiça”. O uso ou não da palavra justiça é um bom sinal de identificação. As classes dirigentes têm horror da palavra justiça. Elas se sentem desafiadas. A pobreza ainda é uma palavra aceitável, mas nunca quando está associada à palavra justiça. É um bom exercício buscar quantas vezes um documento usa essa associação pobres-justiça. A opção pelos pobres não assusta tanto quando não está associada à palavra justiça.
A repercussão de Medellín foi extraordinária. A Conferência de Puebla pretendeu situar-se em continuidade com Medellín: “nos situamos no dinamismo de Medellín, cuja visão da realidade assumimos e que se tornou fonte de inspiração para tantos de nossos documentos pastorais da última década” (Puebla, n. 25).
José Marins fez um estudo dos documentos inspirados por Medellín até Puebla. Cita 457 documentos de conferências episcopais ou grupos de bispos que se inspiraram explicitamente no documento de Medellín. Na frente, está o Chile com 70 documentos. Em seguida, vêm a Bolívia com 53, Brasil com 50, El Salvador com 41, Colômbia com 33, e Argentina com 30. (1)
Era previsível que o Documento de Medellín não suscitasse apenas adesões. Foram-lhe feitas também críticas. As mais fortes saíram do próprio CELAM, cuja direção foi radicalmente mudada em 1973, sobretudo pela ação de Dom Alfonso López Trujillo, secretário geral e organizador da Conferência de Puebla. O grande argumento repetido sem cessar foi que Medellín tinha sido mal interpretado. Na ideia dele, a Conferência de Puebla devia retificar as falsas interpretações de Medellín.
Em Puebla, não se produziu a retificação esperada. Em muitos aspectos, Puebla explicitou mais o que estava em Medellín. Porém, o argumento da falsa interpretação de Medellín teve longa vida nos ambientes conservadores.
Muitos historiadores, observadores, sociólogos, teólogos ou pastores tiveram a impressão de que em Medellín a Igreja latino-americana atingia a plena maturidade. Pensou e falou em nome próprio. Olhou para si mesma com os próprios olhos e não por olhos de outros. Foi além do Concílio Vaticano II, sobretudo na questão pobreza. João XXIII queria que se proclamasse a Igreja dos pobres. Apesar dos esforços do cardeal Lercaro, não conseguiu ser entendido. Mas o tema foi assumido pelos líderes do Episcopado latino-americano e foi a alma e o centro da Conferência de Medellín. A Igreja latino-americana tomou uma atitude própria que lhe deu no mundo uma figura muito especial.
Nota:
1. José Marins e Equipe. De Medellín a Puebla. A práxis dos padres da América Latina. São Paulo: Paulinas, 1979.
(A adaptação e os grifos são nossos)
Fonte:
COMBLIN, Joseph. Conferência Episcopal de Medellín: 40 anos depois. In: Cadernos de Teologia Pública nº 36, São Leopoldo: IHU, 2008, pp. 5-10