A ética social do papa Francisco: O Evangelho da misericórdia segundo o espírito de discernimento
Por Juan Carlos Scannone S.J.
(2ª parte)
3. Igreja pobre, dos pobres e para os pobres
Francisco assevera que se vê melhor a realidade em sua totalidade a partir da periferia do que a partir do centro.(5) Por isso, ele olha para a Igreja e o mundo a partir de Cristo em sua kénosis, a partir dos pobres e excluídos, a partir das margens. Então, nessa ótica e movido pela misericórdia, ele expressou, já no início de seu pontificado, “quero uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198).
Assim, ele retoma a agenda inacabada do Vaticano II. Pois, imediatamente antes dele, São João XXIII havia afirmado: “Diante dos países pobres, a Igreja se apresenta tal como é e deseja ser: a Igreja de todos, mas especialmente a Igreja dos pobres” (radiomensagem de 11 de setembro de 1962). Consequentemente, na primeira sessão do Concílio, o cardeal Giacomo Lercaro, de Bolonha, propôs que esse fosse o tema central dele. Não conseguiu isso, mas um grupo de bispos – liderados por Dom Helder Câmara, de Recife – assinou o Pacto das Catacumbas sobre o ser e aparecer pobre da Igreja, assim como provocou, mais tarde, aparentemente, a magnífica encíclica Populorum progressio (1967), do Bem-aventurado Paulo VI, sobre o desenvolvimento dos povos, que impactou imediatamente em Medellín.
Pois foi a Igreja latino-americana, especialmente a partir dessa Conferência (1968) até Aparecida (2007) e suas consequências, que retomou essa agenda inacabada do Concílio, levada depois pelos papas, incluindo Francisco, a um nível universal: pobreza da Igreja e opção preferencial e solidária com os pobres.(6) Agora, com a encíclica Laudato si’(LS), tal opção abrange também a frágil “irmã mãe terra”.
É importante lembrar que, depois do Sínodo sobre a Justiça (1971), que declarou a luta pela justiça no mundo como dimensão constitutiva da evangelização, surgiu a questão se se trata de um constitutivo essencial dela ou apenas integrante. Pois, por exemplo, minhas mãos, minhas pernas, meus olhos etc. são partes integrantes de mim mesmo, mas, se me faltarem, não perco a minha identidade; em vez disso, minha alma e meu corpo formam a minha essência. Tanto o Sínodo de 1974 sobre a evangelização quanto Paulo VI na Evangelii nuntiandi e o Documento de Puebla, que a aplica à América Latina, não dirimem a questão. Foi São João Paulo II que, em sua primeira encíclica, Redemptor hominis 15, afirmou:
A Igreja (…) considera esta solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra e, por consequência, pela orientação de todo o desenvolvimento e progresso, como um elemento essencial da sua missão, indissoluvelmente ligado com ela.
E a Igreja encontra o princípio de tal solicitude no próprio Jesus Cristo, como testemunham os Evangelhos. E ele volta a repetir esse caráter essencial do momento social da evangelização, com outras palavras, duas vezes, em Centesimus annus 5.
Em um artigo, o teólogo venezuelano Pedro Trigo compara a expressão de João XXIII “Igreja dos pobres” com a de Francisco e diz que a primeira pode ser interpretada de três maneiras distintas:
- 1ª) uma Igreja para os pobres, a seu serviço, mas não necessariamente ela mesma pobre, o que não corresponde ao ditado de Francisco;
- 2ª) uma Igreja na qual os pobres “se sentem como que em sua casa”, o que é explicitamente afirmado por João Paulo II e pelo próprio Francisco em EG 199 e, na minha opinião, já foi em grande parte alcançado;
- 3ª) se, além disso, os pobres se convertem em sujeitos ativos e privilegiados da vida e da missão da Igreja. Eu acho que o desejo expressado por Francisco visa a tornar realidade essa terceira interpretação, incluindo as outras duas.(7)
Em EG 198, o papa dá dois passos importantes para o nosso tema, especialmente o segundo. Primeiramente, ele afirma: “A opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus ‘manifesta a sua misericórdia antes de mais’ a eles”. Mas, depois, visa também a realizar a terceira interpretação proposta por Trigo, da frase de João XXIII. Pois Francisco expressa:
Como ensinava Bento XVI (Discurso inaugural em Aparecida), esta opção “está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”. Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a lhes emprestar a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles (ibid.).
A partir de um parágrafo tão rico, agora quero apenas assinalar dois pontos-chave. Primeiramente, o caráter de sujeitos ativos – não só pessoalmente, mas também comunitariamente ativos – que é reconhecido aos pobres. E, em segundo lugar, que é preciso “colocá-los no centro do caminho da Igreja” (ibid., grifo meu), isto é, no coração de sua vida e de sua missão.
Mas, para Francisco, não se trata somente da Igreja, Povo de Deus concebido como um poliedro em que os pobres ocupam um lugar central, mas também dos poliedros que cada povo e a comunidade global de povos deveriam formar, em uma globalização justa e solidária, alternativa à atual, em cuja construção os pobres devem desempenhar um papel não somente comunitário e ativo, mas também criativo e protagônico.
Daí a estima que o papa manifesta aos movimentos populares e à sua rede mundial. Por isso, quando os congregou pela primeira vez em Roma, em 28 de outubro de 2014, exortou-os dizendo:
Vocês sentem que os pobres querem ser protagonistas; organizam-se, estudam, trabalham, exigem e, sobretudo, praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem (…) Solidariedade (…) é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a 3falta de trabalho, a terra e a moradia, a negação dos direitos sociais e laborais. É enfrentar os destruidores efeitos do império do dinheiro: os deslocamentos forçados, a emigrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência…(8)
Francisco resume tudo isso com um conclusivo “fazem história” (ibid.). Pois ele contrapõe sua exclusão por parte do sistema – pior do que a exploração e a opressão de tempos anteriores – e as consequentes cultura do descarte e globalização da indiferença à criatividade e à criação de novidade na história, que ele constata nos movimentos populares. Portanto, disse-lhes então:
Vocês, trabalhadores excluídos, sobrantes para este sistema, foram inventando seu próprio trabalho com tudo aquilo que parecia não poder dar mais de si mesmo; mas vocês, com sua artesanalidade, que Deus lhes deu, com sua busca, com sua solidariedade, com seu trabalho comunitário, com sua economia popular, conseguiram e estão conseguindo… E, deixem-me lhes dizer, isso, além de trabalho, é poesia! Obrigado (ibid.).
Mais tarde, no encontro de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), em 9 de julho de 2015, ele usou a mesma metáfora, quando lhes reafirmou: “Vocês são poetas sociais: criadores de trabalho, construtores de moradias, produtores de alimentos”.
Por conseguinte, enquanto Francisco, na EG, se referia ao papel central ativo dos pobres na Igreja, em seus três encontros mundiais com os movimentos populares, ele mostra outro aspecto mais amplo de sua realidade. Pois leva a opção pelos pobres e a Igreja dos pobres a um nível mundial, sem distinguir fé ou não fé, esta ou aquela confissão religiosa ou não religiosa, abrangendo todos eles como fazedores de um futuro possível e melhor. É assim que ele constata:
Sei que entre vocês há pessoas de diversas religiões, ofícios, ideias, culturas, países, continentes. Hoje vocês estão praticando aqui a cultura do encontro, tão diferente da xenofobia, da discriminação e da intolerância que vemos tantas vezes. Entre os excluídos, se dá esse encontro de culturas em que o conjunto não anula a particularidade. Por isso, gosto da imagem do poliedro, uma figura geométrica com muitos lados distintos. O poliedro reflete a confluência de todas as parcialidades que nele conservam a originalidade. Nada se dissolve, nada se destrói, nada se domina, tudo se integra. Hoje também vocês estão buscando essa síntese entre o local e o global (Discurso citado na nota 8).
Novamente, ele emprega o modelo poliedro, mas agora conectado à cultura do encontro e com a interculturalidade – conceito que ele não usa explicitamente então, mas sim em sua encíclica Laudato si’ –, que se contrapõem ao paradigma tecnocrático. E são gérmen de um novo paradigma sociocultural emergente, graças também à rede global de movimentos populares.
Na minha opinião, tal figura do poliedro se completa com outra figura que Francisco aplica à Igreja, mas também pode ser empregada para a humanidade: a da sinodalidade. Pois essa palavra significa o caminhar juntos (syn hodós), cada um e cada povo com sua própria idiossincrasia e missão na história.
Daí que, à pergunta que cada um dos pobres e excluídos se faz: “O que eu posso fazer?”, o papa responde:
Podem e fazem muito. Atrevo-me a lhes dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, em suas mãos, em sua capacidade de se organizar e promover alternativas criativas na busca cotidiana dos três “T”. De acordo? Trabalho, teto e terra. E também em sua participação protagônica nos grandes processos de mudança, mudanças nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se apequenem! (Discurso em Santa Cruz de la Sierra, 2015).
Tais perspectivas confirmam o desejo bergogliano de reconhecer aos pobres um lugar privilegiado não só “no centro do caminho da Igreja”, mas também do futuro da humanidade.
4. Sinais dos tempos e discernimento inaciano
João XXIII afirmou que o método da doutrina social da Igreja consiste em “ver, julgar, agir” (Mater et magistra 236), cuja formulação com essas palavras se deve à Juventude Operária Católica, então liderada pelo canônico, depois cardeal belga, Joseph Cardijn. No documento de Aparecida 19 – cujo comitê de redação foi presidido por Bergoglio – diz-se que “ver” é um “ver” de fé, com ritmo trinitário, embora – acrescento – use mediações fornecidas pela experiência, pela filosofia e pelas ciências humanas e sociais. Esse é o “modo de proceder” do papa Francisco para governar a Igreja e acompanhar a humanidade, discernindo a Vontade de Deus nos sinais dos tempos, como o Vaticano II exige da Igreja. Um exemplo claro desse método é oferecido pela sua encíclica Laudato si’.
Mas o Concílio usa a expressão “sinais dos tempos” em dois sentidos complementares. Em GS 4 e 44, ele a emprega de acordo com um significado histórico-pastoral, a saber, como as características significativas da época atual. Mas em GS 11 ele o faz em um sentido teologal, já que afirma:
O Povo de Deus, movido pela fé com que acredita ser conduzido pelo Espírito do Senhor, o qual enche o universo, esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus. Porque a fé ilumina todas as coisas com uma luz nova e faz conhecer o desígnio divino acerca da vocação integral do homem e, dessa forma, orienta o espírito para soluções plenamente humanas.
Por conseguinte, trata-se de um discernimento de fé, cujo sujeito sinodal é a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, para buscar e encontrar a presença atuante e convocante de Deus e seu desígnio concreto aqui e agora para ela e para a humanidade a que serve, e conduzi-la para o humano pleno. Ela discerne esse desígnio não apenas nos fatos que objetivamente acontecem, mas também nas exigências e desejos subjetivos que eles nos provocam, que são compartilhados ao mesmo tempo por crentes e não crentes. De modo que o sentido histórico-pastoral de tais sinais não se perde, mas também nos indicam a vontade salvífica concreta de Deus para um determinado tempo e, eventualmente, para um determinado lugar.
Na minha opinião, Francisco não só governa a Igreja e conduz sua missão evangelizadora da humanidade, discernindo os sinais dos tempos, mas também o faz inspirado pela sua vivência do discernimento inaciano de espíritos ou, melhor, da ação histórica do Espírito, escrito no singular com maiúscula. Por isso, para compreender seu “modo de proceder” como Pontífice, nos ajudará a conhecer tanto aquilo que ele refletiu sobre tal discernimento existencialmente vivido, quanto a transferência que ele mesmo faz de seu exercício, a partir do âmbito pessoal ao social.
4.1. O discernimento em sua dimensão existencial
Nas notas sobre Romano Guardini que Bergoglio redigia para seu doutorado em teologia, (9) ele indica que, para o teólogo alemão, cada pessoa recebe de Deus um lema [consigna] primordial, uma palavra-passe ou “senha” (Passwort) que o identifica, à qual o doutorando denomina como kérigma existencial – prévio ao evangélico, assim como a criação é pressuposto para a redenção – que é assumido e elevado pelo anúncio evangélico. De acordo com Guardini, toda a nossa existência é resposta positiva ou negativa a tal chamado básico, e seremos julgados de acordo e como o tivermos respondido de fato. Bergoglio, então, comenta que a nossa vida é uma aventura composta de encontros, desacordos e reencontros com tal chamado ou vocação constituinte.
Pois bem, quando alguém faz os exercícios de Santo Inácio e contempla a vida de Cristo, revive esse chamado à luz da Palavra de Deus. Esta o convoca a sentir e praticar o que Cristo sente e realiza, e a compartilhar seu estado de ânimo fundamental: “sentite in vobis quod in Christo Jesu”. Então, o exercitante experimenta consonâncias e dissonâncias afetivas de determinados propósitos ou ações reais ou possíveis suas com tal palavra primordial. Em suas notas de doutorado, Bergoglio vincula explicitamente as consonâncias com as consolações teologais, e as dissonâncias, com as desolações, como Inácio as descreve, de modo que, no decorrer do tempo, vai-se delineando uma interpretação do que Deus quer do exercitante, em concordância com o chamado primeiro que o constitui. Pois se discernem os chamados cotidianos do Senhor (no plural e escritos com minúscula) de acordo com sua concordância ou não, com o Chamado primordial, no singular e com maiúscula. Ao coincidir com este, coincidimos com o Senhor e com nós mesmos, de modo que conseguimos gozar dos frutos gratuitos do Espírito Santo.
Assim como o Filho e o Espírito são “as duas mãos do Pai” (Santo Irineu), assim também a Vontade deste para as pessoas e para a sociedade se manifesta na coincidência entre o Espírito e Cristo, isto é, do Espírito operando interiormente nos corações com a figura de Cristo no Evangelho e na história. Trata-se, então, da consonância entre as moções subjetivas positivas do Espírito (seus frutos: amor, alegria, paz…) – e, por contraste, de suas dissonâncias negativas – sentidas e “experienciadas” na contemplação objetiva dos mistérios de Cristo, seja diretamente lendo as Escrituras, seja na leitura dos sinais dos tempos, isto é, da história e da ação histórica atuais interpretadas como um texto(10) à luz das próprias Escrituras. Essa leitura é feita, especialmente, à luz do mistério pascal da Cruz e da Ressurreição do Senhor, no qual a novidade e a vida brotam da morte e da entrega por amor até o extremo. Conforme explicitarei na seção seguinte, Francisco, na Laudato si’, lê à luz desse mistério situações sociais dos pobres nas quais se esperaria morte, desespero e violência, e, em vez disso, graças ao amor que “pode mais” (LS 149), se dá gratuitamente superabundância de vida, quietude e esperança, como sinais da presença comunitariamente salvadora de Deus. A conformação desse acontecimento é pascal (excesso de vida que surge da morte), e seus frutos são a paz e a alegria da Ressurreição.
Mas, para que o discernimento seja acertado, antes de pô-lo em prática, o exercitante deve purificar seu coração dos afetos desordenados, que distorcem sua visão e perturbam seu juízo. Aristóteles já afirmava que, em questões práticas, isto é, de ética e política, a pessoa se equivoca se seu apetite, a saber, seu afeto, não é reto (cf. Ética a Nicômaco, VI, cap. 7). E, na contemporaneidade, Paul Ricoeur recorda isso, seguindo aqueles que ele chama de “mestres da suspeita” (Marx, Freud e Nietzsche); pois caímos em ilusão, se não nos libertamos dos interesses e desejos espúrios e da vontade de poder.(11) Na terminologia de Inácio, se dirá: se não nos despojamos do “próprio amor, querer e interesse”. Precisamente o santo nos oferece regras de discernimento (as da segunda semana dos Exercícios) para distinguir as consolações autenticamente teologais (amor, alegria, paz, crescimento na fé…) e, por outro lado, os enganos “sob a espécie de bem”. A estes, hoje, nós denominamos: ilusões – distintas da mentira e do erro –, ideologizações ou racionalizações. O filósofo jesuíta chileno Arturo Gaete os chamava de “autoenganos”.
4.2. Translação do existencial ao social
O que Inácio ensina sobre o discernimento no âmbito pessoal pode ser analogicamente compreendido no social, como mostram, por exemplo, os fenômenos da ideologia – já mencionado acima – e da utopia, próprios do imaginário (e da afetividade) social(is). Pois, em ambos os planos, dão-se ilusões, isto é, falsas “consolações sob a espécie de bem”, que podem ser discernidas porque – em vez de levarem do anti-humano ao humano e mais humano –, sub-repticiamente, acabam levando a “alguma coisa má ou distrativa ou menos boa” (Exercícios, 5ª regra da 2ª semana), deterioração que “inquieta e perturba”, “tirando [a] paz, tranquilidade e quietude que antes se tinha” (ibid.). Mas não se trata apenas da harmonia interior, mas também da falta de paz social, da sociedade familiar à global.
Como já disse, para Ricoeur, a história e a ação humanas – tanto pessoais quanto sociais – podem ser interpretadas como um texto, no qual sua dimensão pragmática (isto é, como o leitor é afetado pelo texto, o vive e o sente) tem um valor semântico, isto é, expressa um significado. Tal consideração filosófica nos ajuda a compreender como o discernimento dos sinais de Deus na nossa história e ação pessoais, interceptadas como os Exercícios o fazem, à luz da Palavra de Deus, sobretudo, à luz dos mistérios da vida de Cristo, em especial do mistério pascal, pode ser transferida para a leitura dos sinais dos tempos no nível histórico-social. Pois os afetos da fé (amor, alegria, paz, harmonia…) e seus contrários (ódio, tristeza, frustração, discórdia…) são, de fato, vividos não só por cada um, mas também comunitária e coletivamente.
Em ambas as dimensões, individual e social, segue-se a mesma “lógica existencial” que as regras de discernimento de espíritos e as meditações estruturais dos exercícios inacianos traduzem. No primeiro caso, pode-se tratar da escolha de vida ou de futuro de um exercitante, ou – como o próprio Pontífice aconselha na Amoris laetitia para situações irregulares – do discernimento pessoal e eclesial, para que aqueles que as vivem, encontrem para si e sua família a vontade atual de Deus, não redutível a uma norma canônica geral (cf. AL 300), dados os condicionamentos e as circunstâncias singulares. No outro caso, trata-se das situações características de toda uma época ou de circunstâncias gerais de um determinado tempo e lugar, que será preciso ver (interpretar) e julgar (discernir) à luz do próprio Evangelho, para escolher e agir de acordo com os planos misericordiosos de Deus.
Pois “o amor pode mais” (LS 149) do que o pecado (pessoal ou estrutural), tanto em situações pessoais quanto histórico-sociais, e precisamente assim se significa a presença atuante de Deus, quando surgem, de repente, como que “de cima” e em excesso, novidade e abundância de concórdia e de vida, onde a discórdia e a morte pareceriam óbvias.
Anteriormente, assinalei isso no caso dos movimentos populares com seu caráter criativo de “poetas sociais”. Na Laudato si’, o próprio Francisco, provavelmente lembrando sua própria experiência nas “villas miserias” de sua arquidiocese, faz implicitamente essa transposição analógica quando, ao se referir a situações sociais, afirma:
Para os habitantes de bairros periféricos muito precários, a experiência diária de passar da superlotação ao anonimato social, que se vive nas grandes cidades, pode provocar uma sensação de desenraizamento que favorece comportamentos antissociais e violência (LS, n. 149).
Mas, imediatamente depois de invocar o “pode mais” do amor, ele acrescenta:
Muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária, onde se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo. Esta experiência de salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reações criativas para melhorar um edifício ou um bairro (ibid.).
Notemos que se trata de experiências comunitárias e de salvação comunitária.
Um sinal da ação de Deus na história, por conseguinte, está na novidade de vida – principalmente se emerge ou irrompe inexplicavelmente –, na autossuperação do factual como se, a partir disso, surgisse algo que o excede e que não encontra sua razão suficiente em seus antecedentes – em um “mais” que está se dando como um dom, com uma superabundância inesperada que não é dedutível do anterior, nem sequer dialeticamente. Dá-se, acontece – de acordo com a terminologia de Jean-Luc Marion – como fenômeno saturado: saturado de ser, sentido e valor.(12) Isso acontece principalmente se essa vida nova em excesso surge fecunda e criativa a partir de realidades de morte, entre pobres, excluídos e vítimas.
Por outro lado, a desolação, não poucas vezes, mostra que o movimento existencial do nosso espírito não coincide com o do Espírito de Deus, razão pela qual nos encontramos perturbados, na escuridão, sem paz e tranquilidade interior, como que em contradição com o nosso chamado mais profundo.(13) De modo que se pode dizer que – também no social –, onde há deterioração de vida, convivência e dignidade humanas – principalmente dos pobres –, sofrimentos desnecessários, contradições sociais aparentemente insolúveis, aquilo que Bernard Lonergan denomina de “absurdo social”,(14) aí não está o Espírito de Cristo Vivo e Ressuscitado, mas, pelo contrário, dá-se a presença do pecado pessoal, social e estrutural na história, fonte de morte.
O que o papa diz em AL 296 em relação às “duas lógicas [que] percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar”, referindo-se a situações irregulares individuais e familiares, pode ser transferido à atitude eclesial de grupos da Igreja com relação a outros grupos eclesiais ou sociais, sendo, assim, que a lógica evangélica é a do amor compassivo de Deus que busca não separar, mas voltar a integrar. É a atitude de misericórdia que o Pontífice mostra em suas relações ecumênicas, inter-religiosas e com não crentes, sem deixar de condenar severamente os pecados contra o bem comum, mas não os pecadores. Daí que, de acordo com essa mesma lógica da misericórdia, ele desmascara como tentações “sob a espécie de bem” – tanto no nível individual quanto no da história global – o “mundanismo espiritual” (EG 93-97), “os eticismos sem bondade” (EG 231) e “os intelectualismos sem sabedoria” (ibid.), pois, sob a aparência do cumprimento de normas abstratamente universais, deixam transparecer uma dureza de coração que pisoteia o Evangelho da misericórdia. Pelo contrário, o espiritual não é mundano, a bondade avalia os condicionamentos que exculpam, e a sabedoria leva em conta as singularidades diferenciadoras.
Tudo isso confirma que o fio de ouro da misericórdia tece a ética social do papa Francisco, em relação a colocar os pobres no centro do caminho tanto da Igreja quanto da humanidade global, e ao seu modo de proceder para discernir a ação salvadora de Cristo e do Espírito – as duas mãos do Pai – na história e na ação histórica.
Notas:
5. Sobre esse tema e suas fontes, ver meu artigo: “La realidad se comprende mejor desde las periferias. Pobres y sociedad en la Evangelii Gaudium”, Stromata 73 (2017), pp. 19-29.
6. Sobre essas temáticas (pobreza da Igreja; agenda inacabada do Concílio), consultar, respectivamente, meus trabalhos: “Encarnación, kénosis, inculturación y pobreza”, in: A. Spadaro-C. M. Galli (eds.), La reforma y las reformas en la Iglesia, Santander: Sal Terrae, 2016, pp. 497-521; e La teología del pueblo. Raíces teológicas del papa Francisco, Santander: Sal Terrae, 2017, cap. 7.
7. Refiro-me ao artigo de Trigo: “Una Iglesia pobre para los pobres. ¿A dónde nos lleva el sueño del papa Francisco?”, Revista Latinoamericana de Teología, 30 (2013), pp. 247-262.
8. Cf. Papa Francisco, “Discurso aos participantes no Encontro Mundial de Movimentos Populares”, Roma, 28 de outubro de 2014.
9. Sobre essas notas de doutorado, cf. Diego Fares, “Prefazione. L’arte di guardare il mondo”, in: Romano Guardini, L’opposizione polare. Saggio per una filosofía del concreto vivente (tradução italiana de: Der Gegensatz. Versuche zu einer Philosophie des Lebendigkonkreten), Roma: La Civiltà Cattolica-Corriere della Sera, 2014, p. VIII ss.
10. Sobre a ação histórica interpretada como um texto, cf. P. Ricoeur, Du texte à l’action, Paris, Seuil, 1986, e meu livro Discernimiento filosófico de la acción y pasión históricas, Barcelona-México: Anthropos–Univ. Iberoamericana, 2009.
11. Cf. P. Ricoeur, “La critique de la religion et le langage de la foi”, Bulletin du Centre Protestant d’Études 16 (1964), pp. 5-16.
12. Entre outras obras, cf. J.-L. Marion, Étant donné. Essai d’une phénoménologie de la donation, Paris, PUF, 1997; e id., De surcroît. Études sur les phénomènes saturés, Paris: PUF, 2001; ver meu artigo: “Los fenómenos saturados según Jean-Luc Marion y la fenomenología de la religión”, Stromata 61 (2005), pp. 1-15, assim como: J. C. Scannone-R. Walton-J. P. Esperón (orgs.), Trascendencia y sobreabundancia. Fenomenología de la religión y filosofía primera, Buenos Aires: Biblos, 2015: o título do livro alude ao fato de que a superabundância é sinal de transcendência.
13. No primeiro livro citado na nota anterior, capítulos 28 e 29, Marion trata do chamado primordial e da resposta; como disse mais acima, Jorge Mario Bergoglio, citando Romano Guardini (Berichte über mein Leben, Düsseldorf: Patmos, 1985), fala de um “kérigma existencial” ou chamado primeiro de cada ser humano, que pode lhe servir como critério de discernimento.
14. Cf. Bernard Lonergan, Insight. A Study of Human Understanding, London-New York-Toronto: Longmans-Green, 1957, pp. 229-232.
Sobre o autor:
Juan Carlos Scannone. Jesuíta, foi professor de diversas universidades latino-americanas e europeias, incluindo a Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. É ex-reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San Miguel, da Universidade del Salvador. Ingressou na Companhia de Jesus em 1948 e foi ordenado sacerdote em 1962. Obteve licenciatura em filosofia pela Faculdade de San Miguel (Argentina), e em teologia pela Universidade de Innsbruck (Áustria). Obteve doutorado em filosofia pela Universidade de Munique (Alemanha). A partir de 1969 foi professor de filosofia e de teologia na Universidad del Salvador (em Buenos Aires). Foi diretor da revista Stromata. Entre 1988 e 1998 foi um dos vice-presidentes da União Mundial de As- sociações Católicas de Filosofia. Foi integrante da Academia Europeia “Scientiarum et Artium” e vice-presidente da Sociedade Argentina de Teologia.
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