Medellín: história e símbolo

Por João Batista Libanio

Há dois Medellíns. O histórico, com data e lugar definidos, produziu documentos e traz a marca de suas circustâncias, limites e novidades. O Medellín simbólico, que se alimenta do primeiro, já pertence ao imaginário social e religioso de amplos setores e incentiva a caminhada do povo.

 

Há vinte anos do término da 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano reunido em Me­dellín, perguntamo-nos ainda por seu sig­nificado político e eclesial. O ano de 1968 foi, sem dúvida, marcado por even­tos expressivos, começando pelas ruido­sas manifestações juvenis nos Estados Unidos e na Europa, passando pela Con­ferência de Medellín, para terminar no silêncio tenebroso do Ato institucional nº 5, que fechou os canais políticos do Brasil e reforçou o período de repressão.

Há dois Medellíns. O Medellín históri­co, com data e lugar definidos, que pro­duziu uma série de documentos. Como todo evento da história carrega a marca de suas circunstâncias, os limites de seu momento e o sentido de sua novidade. Há também o Medellín simbólico, que arranca do primeiro, se alimenta dele, o projeta para o imaginário social coletivo, mas que também consegue autono­mia de vôo. Uma análise-memória de tal realidade-Medellín deve levar ambos em consideração.

O Medellín-evento foi pensado e con­vocado dentro de uma perspectiva intra-eciesiástica definida por Paulo VI como aplicação do Concílio Vaticano II à América Latina. Tanto mais importante parecia tal propósito quanto o episcopa­do da América Latina se tinha mostra­do durante o Concílio como um dos mais tradicionais e conservadores. Enquan­to os bispos europeus, assessorados pelos grandes teólogos, que de fato alicerçavam os documentos do Concílio, se mos­travam sensíveis aos problemas da mo­dernidade centro-européia, os nossos bis­pos, pastores de um povo religioso tradicional, longe das fontes teológicas mo­dernas e sem vagar para estudos teóricos, vinham com uma teologia e concepção eclesiológica extremamente conservado­ras e tradicionais.

 

Tempo Medellín

Os acontecimentos históricos adquirem algumas dinâmicas que superam as inten­ções de seus principais protagonistas. As­sim Medellín iniciou com a proposta de conduzir uma Igreja pré-Vaticano II aos umbrais da era Vaticano II e terminou ultrapassando tal limite, inaugurando o “tempo Medellín”. Abriu-se no horizon­te do “desenvolvimento integral” (Pau­lo VI, Populorum Progressio) e encerrou-se na perspectiva da libertação, iniciou-se com bispos simplesmente inquietos pela problemática social e desejosos de mu­dança e saiu-se com a firme determina­ção da opção pela libertação dos pobres.

O Medellín histórico, o Medellín-documentos tratou da justiça, da paz, da família, da educação libertadora, da pasto­ral de elites e das massas, da vida inter­na da Igreja – catequese, liturgia, leigos, sacerdotes, religiosos, seminaristas, pastoral de conjunto – e meios de comunica­ção. Problemas, hoje candentes, ou ain­da não estavam em seu horizonte temáti­co ou não tinham o atual relevo, tais co­mo índios, negros, luta pela terra e a re­forma agrária, maior participação popular nas estruturas de poder da sociedade e da Igreja. Lá as comunidades eclesiais de base apenas estavam aflorando e vis­tas mais na perspectiva da “vivência da comunhão” sobretudo nas comunidades locais ou ambientais, “do trato pessoal fraterno entre seus membros” enquanto hoje elas são um continente de esperan­ça eclesial e de libertação.

 

Ruptura teórica

Medellín significou a ruptura clara com o esquema desenvolvimentista até en­tão dominante no mundo político-econômico e na mentalidade eclesiástica, despo­sando a recém elaborada “teoria da de­pendência”, com a consequente conclusão da necessidade de uma libertação de tal dependência para alcançar verdadei­ro desenvolvimento. Tal atitude teórica lança suas raízes numa perspectiva teológica, senão iniciada, pelo menos desperta­da e reforçada pelo ensinamento social de João XXIII, de interpretação dos sinais dos tempos. Medellín volta-se para os “si­nais dos tempos” de nosso Continente. Lê dois grandes sinais de valência contra­ditória: o terrível estigma da opressão ca­da vez mais organizada pelo sistema, a ponto de tornar-se “pecado social”, “violência institucionalizada”, e o surdo clamor por libertação vindo dos pobres, do povo cada vez mais consciente e orga­nizado. Medellín capta a “irrupção do povo pobre e de fé” para dentro da so­ciedade e da Igreja, num anseio de libertação, cercado por oceano de opressões. Nesse sentido, Medellín consolida a to­mada de consciência dos bispos da América Latina em relação aos compromis­sos com a luta pela justiça, aprofunda­mento da análise social da realidade do Continente com a consequente atitude de denúncia a partir da fé e com o peso moral da Igreja, assimilação do quadro doutrinal no campo social dos últimos papas — João XXIII e Paulo VI — e da Galdium et Spes do Concílio Vaticano II, temática da libertação do homem de toda escravidão com a necessária opção e exigência de transformações globais, au­dazes, urgentes e profundamente renova­doras do Continente. Numa palavra, os bispos descobriram que comprometer-se com a realidade social não é marxismo, mas decorrência intrínseca do processo evangelizador. Abre-se, então, amplo es­paço para novas forças libertárias nasce­rem e medrarem no seio da Igreja.

 

Novas práticas

De Medellín nasceu para os colégios católicos uma visão libertadora da educa­ção, que vinha sendo trabalhada por Pau­lo Freire. Mas os sólidos muros de nos­sos edifícios educativos não se deixariam penetrar facilmente por prática e teoria libertadoras se não houvesse o aval do episcopado do Continente.

De Medellín brotou uma renovação profunda da vida religiosa, ao encaminhar-se esta para uma maior inserção nos meios pobres, abandonando a sun­tuosidade de suas casas. Processo que continua até hoje, protagonizado pela Conferência Latino-Americana de Reli­giosos (CLAR) e pela Conferência dos Reli­giosos do Brasil (CRB).

Medellín pode ser também considera­do berço eclesial da Teologia da Liberta­ção (TdL), seja porque confirmou o mé­todo ver-julgar-agir, ao trabalhar com ele todos os seus documentos, seja por ter assumido a teoria da dependência, uma das matrizes semânticas da TdL, seja por ter feito a opção preferencial pelo po­vo, pelo pobre, a inspiração fundamen­tal de tal teologia.

 

Medellín simbólico

O Medellín histórico tornou-se bandei­ra, símbolo. Nasce o Medellín simbóli­co, que pertence já ao imaginário social e religioso não só da Igreja Católica, mas de cristãos e cidadãos do Continen­te, que se sintonizam com ele. O Medellín simbólico constrói-se a partir dos ele­mentos mais significativos do Medellín histórico e começa a fazer caminhada lu­minosa já há duas décadas. Por ocasião de Puebla, travou-se verdadeiro duelo sim­bólico a fim de configurar a imagem do­minante de Medellín. Apesar do ardor da refrega, firmou-se o Medellín simbóli­co da opção pelos pobres, do compromis­so de libertação.

Ele atravessa a Igreja em todos os seg­mentos e estamentos. No universo institu­cional hierárquico, é apelo à contínua conversão de lugares geográficos e sociais ricos para o povo pobre e a claro posicio­namento nas lutas populares. No nível dos agentes intermédios, Medellín simbó­lico incentiva uma pedagogia de escuta, de caminhada com o povo, em oposição a autoritarismos de direita e de esquer­da. No nível popular, Medellín significa esperança de que a libertação está mais próxima, ao ser anunciado por uma Igre­ja que se empenha em sua concretização e que mobiliza outros setores da socieda­de nesta direção.

Enfim, Medellín simbólico continua sendo verdadeiro divisor de águas entre uma Igreja que nasce do povo pela for­ça do Espírito, que se deixa construir mi­nisterialmente por esse povo pobre, que lhe privilegia os interesses, que busca uma presença popular no nível de delibe­ração e decisão, e uma Igreja ainda pre­sa a estruturas verticais, pouco sensível aos reclamos populares, preocupada em demasia com seus interesses corporativos.

É tanto mais importante recordar – colocar no coração – reviver o Me­dellín histórico e reforçar o Medellín sim­bólico, quanto maiores são os riscos e as tentativas atuais de uma “volta à gran­de disciplina”. O Medellín simbólico ne­cessita ser continuamente refontizado pe­lo Medellín histórico, para que não se perca sua força crítica libertadora.

 

Fonte:

Revista Tempo e Presença, 233 (1988), pp. 22-23.