Na obra de Lucas, o Evangelho apresenta o caminho de Jesus. O livro dos Atos – veja que são atos, não apenas palavras – trata do caminho da Igreja. Mostra o caminho da comunidade de fé que se formava a partir dos apóstolos e dos primeiros homens e mulheres que se colocaram no seguimento a Jesus.
“O que vem a ser isto?”
O livro dos Atos começa destacando a ação do Espírito que escolhe, instrui e dá força. Logo em seguida, o Espírito desce sobre a comunidade de fé. Ele vem como vento forte e como línguas de fogo, sobre cada membro da comunidade ali reunida. Com o vento, Ele varre o medo que os aprisionava; com fogo, ilumina os acontecimentos e aquece o coração. Infunde um novo ânimo, um novo ardor missionário, através do qual pessoas simples se transformam em ousados anunciadores de Jesus, proclamando o Evangelho na linguagem universal do amor, que todos compreendiam.
A ação do Espírito não é algo apenas pontual, Ele age constantemente na nossa vida, na vida da Igreja e na história. Mas em determinados momentos, devido a circunstâncias específicas, sua presença se torna mais visível, até mais “palpável”, como podemos ver em Atos 2, 1-46. Inspirados neste acontecimento originário, podemos vislumbrar outros pentecostes. Momentos históricos em que identificamos uma presença mais sensível de Deus apontando novos rumos, vencendo o medo e dando um novo vigor aos seguidores de Jesus.
O Concílio Vaticano II (1963 – 1965) foi um grande pentecostes na vida da Igreja.Num momento em que dominava o medo diante do mundo e das ciências modernas, um sucessor de Pedro é escolhido, já com idade avançada, para ser um Papa “de” transição. No entanto, movido pelo Espírito, ele conduz a Igreja a um novo tempo, propicia oportunidade para a Igreja vencer o medo, abrir-se ao diálogo com o mundo, com as outras religiões e com e as outras igrejas. A Igreja volta às suas fontes primeiras, para a Sagrada Escritura e para o ensinamento dos Santos Padres. Ela recupera a sua própria identidade. A Igreja se redescobre como povo de Deus, como sinal da presença do Reino de Deus no mundo, continuadora da missão de anunciar a boa nova aos pobres e sofredores (cf. Lc 4,18-19). Mais uma vez o Espírito fez vencer o medo e trouxe à Igreja um novo vigor, abrindo-se mais à sua missão de amor no mundo.
“Isto é o que vedes e ouvis”
Outro pentecostes na vida da Igreja foi a Conferência de Medellín (1968). Ela foi organizada para realizar a recepção do Concílio Vaticano II na América Latina. O contexto era também de medo. A ditadura militar comandava vários países latino-americanos. Não só a liberdade, mas também a dignidade de vida, estava sendo tirada das pessoas, sobretudo dos mais pobres. Mais uma vez podemos reconhecer a ação do Espírito Santo que vem para tirar o medo e faz a Igreja levantar a sua voz profética em defesa da vida e da justiça e da paz, que foram os eixos desta Conferência. Foi e continua sendo um acontecimento marcante na história da Igreja e de toda a América Latina. O que foi o Vaticano II para a vida da Igreja, foi Medellín para a América Latina.
A teologia dos “Sinais dos Tempos” da Constituição Pastoral Gaudiun et Spes do Vaticano II foi o fio condutor de todos os trabalhos em Medellín, de tal forma que veio a configurar não apenas os textos de Medellín, mas toda a dinâmica de trabalho da Conferência que se tornou o acontecimento mais importante e estimulador no Séc. XX na Igreja Latino-americana. Nas palavras de Agenor Brighenti, Medellín representa uma “ousadia eclesial”, ousadia esta que marca, na verdade o nascimento da “Igreja da Libertação”. Medellín concretiza o sonho irrealizado do papa João XXIII no Vaticano II de que a Igreja fosse realmente a Igreja dos pobres, além de falar dessa opção, Medellín denuncia as estruturas injustas de pecado que oprimem o povo.
Para José Comblin, Medellín era uma aplicação do “Pacto das Catacumbas”, encabeçado por Dom Helder Câmara e assinando por 40 bispos em Roma no final do Concílio, que sinaliza o compromisso dos bispos, portanto, o compromisso da Igreja, “com uma vida pobre e a serviço dos pobres”; Foi a partir deste pacto que vários bispos deixaram seus palácios e foram viver uma vida mais simples e mais próxima do povo e dos pobres. Um caminho de conversão na Igreja.
Medellín sinaliza uma Igreja na qual os bispos (e posteriormente os padres) querem agir com a liberdade do Evangelho: denunciando a opressão sobre os pobres e criando maneiras de ajudar na sua promoção e libertação. Nas palavras de Comblin: “Medellín é o documento pelo qual os bispos afirmam a sua liberdade frente aos dominadores de sempre”. Medellín não tem medo da palavra “Liberdade”. Mais uma vez o medo foi vencido pela força e presença do Espírito na vida da Igreja.
Medellín expressa a superação do medo em relação aos leigos. Vence o autoritarismo e a distância do clero em relação aos leigos. Os bispos vão ao encontro dos pobres, onde eles moram e se reúnem. A “opção pelos pobres” não se resume a palavras, mas se transformam em atos que incluem a restituição da sua dignidade, o que implica apoio aos movimentos sociais e a reconquista dos direitos humanos. Medellín explicita o importante papel da Igreja em termos de conscientização: uma “Educação libertadora”, que transforma a pessoa em sujeito de seu próprio desenvolvimento. Em resumo, em Medellín, o Espírito aquece o coração da Igreja que, iluminada pela Palavra de Deus se torna uma Igreja mais visível, mais presente e atuante na história, de forma profética e libertadora.
Se a Igreja nasce em Pentecostes, quando a comunidade de fé, assume a sua missão na força do Espírito, em Medellín nasce a Igreja dos pobres. A Igreja que na força do Espírito assume a missão de Jesus de ser boa nova para todos, mas a começar dos mais empobrecidos. Paulo VI alertava que para conhecer a Deus, era preciso conhecer o homem, em Medellín o homem é situado, identificado. O pobre é caminho para conhecer a Deus. Na solicitude aos pobres e guiados pelo Espírito, nascem as Comunidades Eclesiais de Base que se alimentam da leitura popular da Bíblia e buscam se organizar para defender a vida e recuperar a esperança num continente de profundas injustiças sociais. Um sinal de que o Espírito continua a agir nas pessoas, na Igreja e na história, e Ele age sempre “a partir de baixo”, como fez em Pentecostes.
Medellín e Francisco
E agora, aos cinquenta anos de Medellín, completam-se cinco anos do Pontificado de Francisco, o primeiro Papa latino-americano. Um novo ardor começa a tomar conta da Igreja que nas palavras, gestos, atitudes e opções do papa Francisco opera uma volta à simplicidade de Jesus no Evangelho. Uma nova alegria, um novo pentecostes que conclama a Igreja para redescobrir a alegria da fé, colocar-se em saída missionária para as periferias sociais e existenciais, como um “hospital de campanha”, uma Igreja misericordiosa que vence o medo para buscar uma ecologia integral na defesa da vida do planeta e da vida do ser humano acolhendo os sofredores, os empobrecidos, os migrantes…
Francisco faz uma retomada do dinamismo eclesial do Vaticano II e de sua acolhida em Medellín. Ousa resistir a um processo de involução eclesial indiferente aos grandes problemas eclesiais e sociais. De modo próprio e segundo sua experiência de vida, de fé e de pastoral, Francisco retoma e atualiza as grandes linhas inspiradoras do Vaticano II e de Medellín. Ele se inspira no caminho de Jesus que parte das periferias. Ele se deixa guiar pela alegria do Espírito e n´Ele encontra forças para seguir, colocando em prática o Evangelho, apesar das oposições. Infelizmente, são ainda poucos os que levam a sério as propostas de Francisco, justo quando elas mais se aproximam das propostas de Jesus como nos mostram os Evangelhos.
Quando afofamos a terra em um canteiro ou em jarro de flor, além de tirar as ervas daninhas, tornamos a terra mais receptiva, a planta se alimenta melhor, se revigora e produz mais. Revisitar a história da Igreja, na busca de compreender a ação do Espírito é afofar o terreno no qual ela cresce. É criar condições para arrancar o que a prejudica, é tornar a Igreja mais aberta à graça de Deus e mais alegre e acolhedora, mais misericordiosa, mais profética e engajada na defesa da vida. E assim, efetivar sua ação sinal do Reino na história, produzindo mais frutos de paz e de justiça. Sim, o Espírito continua a agir na história, continua a agir na Igreja, e sempre a partir de baixo. “Ouçamos o que Espírito diz à Igreja” (Ap 2,17).
(os grifos são nossos)
Denilson Mariano é capixaba de Iúna. É doutorando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Nesta instituição, fez a graduação em Filosofia e Teologia e o mestrado em Teologia. É religioso do Instituto dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora. É o atual diretor executivo da Revista O Lutador. É membro da equipe missionária de assessores do Movimento da Boa Nova – MOBON.
Fonte:
Revista O Lutador – Ed 3901 – Junho 2018