As origens do CIMI, inspiração para a conversão da estrutura paroquial e a concretização da “Igreja em saída” de Francisco

Em que medida a estrutura paroquial predominante no contexto atual já não responde aos apelos do Evangelho? A experiência de conversão da presença e atuação da Igreja junto aos povos indígenas, com a criação do CIMI, inspira a necessária conversão da centralizadora estrutura paroquial? Que significa a proposta do papa Francisco de uma Igreja em saída quando se tem presente a história do CIMI? Para refletir sobre estas e outras questões, sugerimos a leitura do artigo de Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário, no qual revela que as origens do CIMI e da CPT encontram-se na busca criativa de receber o Concílio Vaticano II no contexto da América Latina. Confira:

 

A Paróquia e o Concílio Vaticano II

 

Egydio Schwade

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Edydio Schwade em aldeia indígena Waimiri-Atroari, indígenas cujas terras foram invadidas e, praticamente, dizimados durante a ditadura militar.

A paroquia é uma instituição que ainda não conseguiu rever a sua história e avançar com o Concílio Vaticano II. Ficou atolada no Concílio de Nicéia. Aqui e ali aparece até em retrocesso: discurso de poder e anti-ecumênico, cálices de ouro, trajes romano-bizantinos cobrindo o padre e avançando sobre os fiéis, construções e mais construções consumindo a esmola dos fiéis.

As Igrejas Cristãs tem uma história original linda e edificante, onde se podem inspirar a cada momento para as transformações necessárias. Começa com Jesus e impregna os três primeiros séculos, vivida, atualizada e enriquecida por aquelas “coisas escondidas aos sábios e entendidos”, presentes junto aos pobres, aos pagãos, à gente do campo, das catacumbas, das periferias e das prisões arbitrárias. Foram 313 anos de encarnação na realidade dos humildes, dos excluídos e dos perseguidos pelo poder dos imperadores.

Já a história do poder de Estado não tem essa fonte de inspiração. Deixou atrás de si tristeza, calamidades, violência e luta por privilégios para ricos e poderosos. Em 313, Constantino “faz as pazes” com os cristãos. Doze anos depois, em 325, já íntimo de seus lideres, os convidou para um Concílio em um dos seus palácios em Nicéia, com certeza, construído por escravos. Ali os integrou ao poder. Ele mesmo fez o discurso de abertura do Concílio. Começa uma mudança radical na história do Cristianismo.

Para além das discussões e resoluções, é preciso reconhecer que neste Concílio o que de mais importante ocorreu foi a conversão das autoridades da Igreja ao poder do Império e o seu distanciamento das “periferias”, dos pobres e injustiçados. A Igreja virou uma instituição apêndice do Império Romano.

Não foi por acaso que a partir do ano seguinte, 326 – ao celebrar o aniversário de seus 20 anos de imperador – inspirado pela sua mãe, santa Helena, Constantino ergueu as primeiras 3 basílicas: Belém, São Pedro, em Roma, e Treveris, (hoje Trier) na Alemanha, então segunda maior cidade do Império. Mais do que presença cristã, estes monumentos e os que se seguiram, até em nosso contexto o de Aparecida e o imponente Templo de Salomão, em São Paulo, são símbolos do poder de Estado que daí por diante permeia as preocupações dos cristãos, distanciando-os dos “templos vivos”, do povo de Deus.

Da Península Ibérica ao Oriente Médio, do Norte da África ao Reno e seus afluentes e até a Irlanda, as comunidades cristãs espalhadas pelo império e baseadas na mensagem de Jesus, vivida, em boa parte segundo o modelo dos povos originários, foram visitadas por missionários que os incentivavam a aceitar as “benesses” e as leis do Império. E os povos que ainda resistiam em seu “paganismo”, em seu território, como os Celtas e Germanos na Europa Central, continuaram sendo esmagados por Constantino, seu feroz inimigo.

Foi este o “cristianismo” levado pelas Cruzadas ao Oriente Médio e que veio às Américas, com as autoridades eclesiásticas concordadas e integradas ao poder reinante na Europa e que orientou e pressionou a vida e as vocações cristãs e massacrou o povo de Deus das Américas que “vivia em comunidade e tinha tudo em comum”.

Quando em 1949 entrei no seminário dos padres jesuítas, foi com o desejo de ser missionário numa das regiões mais necessitadas do mundo. No meu imaginário foi crescendo a vontade de ir para a África. Este desejo estava ligado a minha consciência cristã, cultivada em casa. Mas no período do seminário fui orientado pelos superiores religiosos no rumo de suas necessidades provinciais já estruturadas. O ano de 1962 foi, para mim, um ano cruciante, pois com o fim do curso de Filosofia, se definiam de fato os rumos de vida dos jesuítas. E eu sentia o conflito armado vivencialmente dentro de mim.

O Concilio Vaticano II, então em curso, inquietava as consciências e reforçava o meu chamado interior originário. Mas todos na província alimentavam em mim o desejo de preencher um dia a vaga de professor em algum colégio ou universidade, longe da minha vocação original. Passei o ano de 1962 remoendo, discernindo, no método inaciano, a minha situação. Como não consegui compreensão no ambiente provincial, decidi expor o conflito interior ao geral da Ordem, conforme neste caso, permitido aos jesuítas desde Inácio de Loyola. E o Geral me apoiou, sugerindo, porém, que considerasse a ida aos índios do Mato Grosso. Senti-me aliviado. E no mês seguinte estava a caminho da Missão Anchieta-MIA de Diamantino/MT, tachada de “absurdo” pelo provincial da época.

Ali fiquei 3 anos trabalhando em dois internatos. O objetivo dos internatos não era diferente dos colégios e universidades, integrados ao modelo constantiniano de educar os índios para o “centro”, para o “Império”. Um esquema que conduzia ao fim da vida de aldeia, da sua cultura, da sua terra, da sua autonomia, preparando-os para se integrarem como páreas nas periferias de Cuiabá. Fiquei com um vazio na alma ante o rumo que os documentos do Concílio Vaticano II apontavam: “Busquem os missionários colher as sementes do Verbo ocultas nos povos” (Ad Gentes 11). Nos internatos não se colhem sementes de Deus de povo nenhum. Isto só podia acontecer nas aldeias, onde eles dominam a situação e milenarmente buscam seguir, a sua maneira, a voz de Deus.

Foi assim que nasceu em mim e em outros colegas da MIA que passaram pela mesma experiência, o empenho de lutar por novos rumos para os trabalhos da Prelazia. A Missão Anchieta, as paróquias, a ação jesuítica e a Prelazia deviam mudar.

De volta a São Leopoldo/RS para o curso de Teologia, me reuni com o grupo de companheiros que também haviam trabalhado na Missão Anchieta e discutimos as nossas preocupações. E no dia 18/03/1966, enviamos uma carta a todos os membros da Prelazia, expondo-lhes as nossas preocupações e sugerindo um plano de ação. O plano tinha dois pontos básicos:

  1. Parar os trabalhos da Prelazia e nos dedicarmos prioritariamente ao reconhecimento do território da Prelazia que na época tinha 354.000 km2 e ao contato dos índios isolados.
  2. Levantamento sócio-econômico e religioso total. Vivíamos uma vontade forte de colocar em prática o Vaticano II e esmiuçamos as razões do plano na perspectiva deste. A proposta: apontava para a necessidade de “sabermos ser arrojados na realização de planos globais da Missão, orientados à luz dos ensinamentos de Jesus e do Vaticano II; planos que atinjam o homem nos seus problemas da vida cotidiana”. Esta será a “principal fonte de vocações sobre as quais toda a Igreja está tão preocupada. Estabelecer um planejamento concreto, de longo alcance para a Missão, no qual possamos engajar as vocações que se apresentarem; não devemos temer de nos aventurar a grandes novas empresas – mesmo que estas não agradem aos daqui (Província). O que devemos temer é nos cimentarmos em belos colégios, desajustados às condições do povo que evangelizamos.” Obtivemos poucas respostas. E as poucas que chegaram, foram lacônicas ou contra.

Vendo o nosso plano rejeitado pelos companheiros em campo, Thomaz Lisboa (que se tornara meu inseparável companheiro de sonhos e ação) e eu, partimos noutro rumo. Vimos que seria difícil mudar algo com o quadro missionário da Prelazia e pensamos na entrada de leigos, não como tapa-buracos, como costumava acontecer, mas organizados e como companheiros que pudessem pensar e realizar conosco as mudanças. Nos fins de semana dávamos palestras a jovens católicos e evangélicos (dentro dos princípios do ecumenismo proposto pelo Vaticano II) no Vale do Rio dos Sinos e arredores, expondo a situação da igreja missionária e o nosso plano de ação. Obtivemos acolhidas entusiásticas, mas não conseguimos concretizar a organização desejada.

Em 1969, Thomaz Lisboa, com a Teologia já completa e já ordenado padre, voltou à MIA, onde ficou diretor de Utiariti e logo acabou com o internato, incentivando índios, religiosos e religiosas a se integrarem nas aldeias. Simultaneamente o nosso plano de criação de uma organização de leigos teve acolhimento nas Congregações Marianas de Santa Catarina, onde criei a Operação Anchieta-OPAN. A organização ampliou logo seu âmbito para além da visão das Congregações Marianas e, em janeiro de 1970, já enviou 10 jovens católic@s e evangélic@s para as prelazias de Diamantino/MT e Guajará-mirim/RO. Os membros da OPAN eram iniciados em curso no Sul e outro na Missão, junto com os companheiros(as) religiosos(as). Voluntários e com visão sem fronteiras, chegavam às aldeias na simplicidade, expressa no traje, nas atitudes e no envolvimento com a vida e os problemas diários: saúde, terra, cultura e autonomia. A catequese foi abolida. A palavra de ordem era: encarnação.

Assim conquistavam a aceitação dos índios e mantinham um bom entrosamento com os demais missionários, animando o novo caminho da Igreja Missionária Indigenista. De 1969 a 1989 (ano em que se desvinculou da Igreja e optou passar à ONG indigenista), enviou dezenas de jovens às comunidades mais carentes e abandonadas das prelazias de Diamantino, Ji-Paraná, Guajará-Mirim, Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Lábrea, Humaitá, Tefé, Alto Solimões, Itacoatiara, Roraima e Dourados/MS. A sua sede, em Cuiabá, foi um dos centros de irradiação dos novos rumos da Igreja missionária.

Ali, em encontros informais, leigos(as), índios, padres, bispos e políticos de frente, igualados, discutiam a política indigenista e os rumos da Igreja Povo de Deus. Foi um dos locais, onde surgiram as raízes do Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Este foi criado em 1972 em Brasília. Sua sede ali se tornou outro centro de irradiação, assim como as assembleias indígenas e os encontros de pastoral indigenista, já dentro do programa do CIMI. Neste ambiente, surgiram as raízes da Comissão Pastoral da Terra – CPT, criada em 1975 e que se tornou uma força em expansão no meio dos pequenos agricultores injustiçados e perseguidos pelo latifúndio.

As assembleias indígenas, por sua vez, mudaram o rumo da caminhada indígena. Organizados, começaram a reviver a sua cultura e a defender e reconquistar seu território. E atrás dos encontros de pastoral indigenista, dioceses e prelazias da Amazônia, deixaram de ser “ilhas culturais”, como foram qualificadas em 1970 em relatório do então secretario nacional de Atividade Missionaria da CNBB, Pe. Iasi. Livres dos internatos, animados pelo Concílio Vaticano II e com o CIMI e a OPAN, trazendo vocações, puderam organizar um plano conjunto de pastoral indigenista e se expandir pela Igreja Povo de Deus.

As paroquiais com suas estruturas de cimento e os colégios e as universidades cristãs, necessitam de uma revisão transformadora rumo às periferias, como incentiva o papa Francisco, para superarem a estagnação e a amarração das vocações às estruturas estatais romano-bizantinas. Tem-se a impressão hoje que há um retrocesso: colégios e universidades preparando as elites para governarem as iniquas estruturas de Estado. Nas paróquias, a liturgia, longe das tradições dos povos da região, longe da vida de Jesus e da vivencia dos primeiros cristãos, fortalecem a visão nicena. Discurso anti-ecumênico, autoridades e ricos e dizimistas garantindo continuidade ao culto a monumentos, símbolos de poder… Sem estas estruturas, quantas vocações se liberariam para anunciar a Boa Nova aos que sofrem de variados males na paroquia e mundo fora!

A nossa paroquia aqui em Presidente Figueiredo, é um exemplo dessa caminhada marcha ré. Localiza-se sobre terras do povo Waimiri-Atroari, povo que sofreu durante a Ditadura Militar um verdadeiro genocídio. Na construção da BR-174 foi reduzido de aproximadamente 3.000 pessoas para 332, o que fez dom Jorge, bispo de Itacoatiara assumir a região e chamar uma equipe do CIMI-OPAN, para marcar presença junto aos remanescentes. Criou a Paroquia dos Santos Mártires e Nossa Senhora Aparecida. Alguns paroquianos ilustraram a parede da igreja, ao lado da mesa de celebração da eucarística, com uma arte lembrando os mártires inocentes que tombaram na construção da estrada.

Durante 4 anos a equipe do CIMI-OPAN foi impedida pela Ditadura Militar de entrar nas aldeias indígenas visitando-as apenas clandestinamente. Só no final da Ditadura pode marcar presença em aldeia, onde fez a alfabetização do povo na sua língua materna, até ser expulsa pelos interesses da exploração do território desse povo.

Dom Jorge morreu. E os remanescentes desses mártires ficaram esquecidos, empurrados para a periferia da Paróquia. E mais recentemente o vigário mandou até retirar da igreja a arte que marcava a sua presença e a Paróquia se chama hoje apenas: Paróquia de Nossa Senhora Aparecida, para tristeza da mãe do mártir Jesus e consoladora das famílias que perderam seus entes queridos, massacrados pelos imperadores romanos.

O irmão jesuíta, Jose Korta, solitário sem incentivo da Província, organizou na Venezuela a Kiwxi-Universidade Indígena da Venezuela que merecia uma atenção, pois pode servir de inspiração, apontando saídas para as escolas cristãs. Universidade sem cimento, sem asfalto e dirigida pelos indígenas da região.

Quando o papa Francisco pede a mobilização da Igreja rumo à periferia, creio que não é apenas para visitar a periferia, buscando levá-la ao “centro”, (des)envolvendo-a, europeizando-a, como o fazíamos com as aldeias indígenas antes do Concílio Vaticano II, mas sim, conviver com os depositários das riquezas reveladas por Deus, conhecer os seus valores e enriquecer com eles a humanidade. Levar a Igreja para as periferias é mudar de lugar, deixar as estruturas para trás  talvez para alguém que precise de um abrigo e investir na Igreja de carne e osso, a Igreja Povo de Deus.

Na atual situação da Igreja, incentivar o cristão a rezar por vocações é tentar a Deus, é agredir a vontade de Deus, ao invés de cumpri-la como se reza no Pai-Nosso. Fala-se muito nas Igrejas cristãs em “carismáticos”, “pentecostais”, em “Espírito Santo”, mas está-se de fato incentivando o cristão a rezar com verdade, com a jogada de sua vida: “Vem Espírito Santo enchei os corações dos vossos fieis e acendei neles o fogo do vosso amor. Enviai, Senhor, o vosso Espírito e tudo será criado e transformareis a face da Terra”, para que ao término de sua vida possa rezar aquela outra: “Minha alma engrandece o meu Senhor e o meu espírito exulta em Deus meu Salvador”?

 

planet-e-indios-bild-6-100~768x432-2Egydio Schwade, de boné, é um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Foi o primeiro secretário executivo da entidade, em 1972. Este artigo aqui republicado foi publicado por Casa da Cultura do Urubuí e pelo IHU.

 

 

Fonte:

IHU

1 Comentário

  1. “A Vida é Deus e, amar a vida é amar a Deus” (Leon Tolstoi). “Deus é Amor 1 João 4,8 ). Toda expressão de vida deve ser amada: indígenas, negros, pobres e outras. O Papa Francisco como latino-americano , tem a sensibilidade afinada a estas necessidades.

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