Se pudéssemos contemplar Jesus anunciando as bem aventuranças, naturalmente encontraríamos a fisionomia de uma pessoa alegre, entusiasta e ousada. Não há como proclamar a felicidade com rosto triste, com semblante carregado e de forma apagada. E, precisamente as bem aventuranças estão no eixo da nova Encíclica do papa Francisco que reforça o convite à santidade. Um texto contagiante que merece ser lido com aquela atenção de discípulos de que nos fala o profeta Isaías, internalizado nas profundezas do coração e do qual podemos de tirar provocantes consequências práticas para a vivência cristã no mundo de hoje.
Assim como as bem aventuranças sinalizam esperança em meio às situações difíceis como pobreza, aflição, fome, perseguição… o apelo à vivência da santidade não significa fuga do mundo ou distanciamento das realidades que nos envolvem. Santidade é busca de colocar em prática o Evangelho. Traduzir em gestos o que cremos com a mente e com o coração.
Nesta Carta sobre o Chamado à Santidade, Francisco resume cada uma das bem aventuranças em um apelo simples e direto para a nossa vivência cotidiana, para nosso esforço constante de busca da santidade. Assim, ser santo é: “ser pobre no coração”, “reagir com humilde mansidão”, “saber chorar com os outros”, “buscar a justiça com fome e sede”, “olhar e agir com misericórdia”, “manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor”, “semear a paz ao nosso redor”, “abraçar diariamente o caminho do Evangelho, mesmo que nos acarrete problemas”. Santidade é buscar coisas grandiosas, não isolar-se do mundo e da realidade que nos cerca. Santidade é a vida guiada pelo Espírito de Deus que se desdobra em atitudes de serviço à vida e que se cultiva com os pequenos gestos do cotidiano. Em síntese: “Não é que a vida tenha uma missão, a vida é uma missão”. (27)
Desta forma, o culto, as celebrações, os atos litúrgicos e de devoção só cumprem o seu papel em nós, se nos tornam mais misericordiosos e acolhedores, se nos abrem à necessidade dos nossos irmãos mais sofredores. Não é sem motivo, que desde o início da Carta o papa Francisco quer ajudar a superar duas antigas heresias que retornaram com força aos nossos dias.
Uma delas é o gnosticismo que reduz a fé a conhecimentos e raciocínios e que pensa ter resposta para tudo, com isso, anula a simplicidade do Evangelho, esvazia a doutrina de seu mistério e usa a religião em benefício próprio. No fundo é uma busca de dominar a Deus. É querer um Deus sem Cristo, sem Igreja e sem Povo. (37) A santidade segue um caminho oposto, é abandonar-se em Deus, pedir ao Senhor que nos mostre os Seus caminhos e neles, humildemente, caminhar.
Outra tentação é o novo pelagianismo que confia tudo à vontade humana dificultando a abertura para ação da graça de Deus. “Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial.” (57) A santidade passa por outro caminho, é aprender a contemplar Deus no rosto do irmão. (61)
Assim, neste ano do laicato, faz-se muito oportuna esta Carta do papa Francisco. O exercício da santidade não resume à vivência interior, nem mesmo à presença assídua nos atos litúrgicos e devocionais em nossas igrejas. Tudo isso é importante na medida em que nos ajuda a vivenciar o Evangelho no dia a dia de nossa vida. Santidade é o Evangelho transformado em ação no exercício de nossa profissão. É o Evangelho direcionando nossas relações pessoais, familiares e sociais: em casa, no trabalho, no trânsito, no comércio, no lazer etc. Se nossa vivência cristã não se resumisse aos momentos de culto, viveríamos num país mais humano, mais fraterno, mais cheio de vida e de esperança para todos. E não estaríamos tão cercados pelas ondas de corrupção…
Ser santo é colocar o Evangelho na vida, é ser fiel a Deus, sendo misericordioso com os irmãos. Afinal, a “misericórdia é a chave do céu” (105). E isso é pra começo de conversa!
(os grifos são nossos)
Denilson Mariano é capixaba de Iúna. É doutorando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Nesta instituição fez a graduação em Filosofia e Teologia, e o mestrado em Teologia. É religioso do Instituto dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora. É o atual diretor executivo da Revista O Lutador. É membro da equipe missionária de assessores do Movimento da Boa Nova – MOBON.
Fonte:
Revista O Lutador – Ed. 3900 – Maio 2018