Ninguém viu a Ressurreição de Jesus. Temos apenas testemunhos de pessoas às quais deixou-se ver. E há apenas sinais como o sepulcro vazio e suas vestes. Portanto, não é um fato histórico passível de ser detectado por uma máquina fotográfica ou pela televisão. É um fato que aconteceu em Jesus, acessível pela fé dos testemunhos… Poderíamos dizer que a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer… Quando digo, seguindo Jürgen Moltmann, que Ressurreição é uma revolução na evolução, quero dizer que Ressurreição é uma pequena antecipação do fim bom da criação, como se o termo da evolução se antecipasse e nos mostrasse em pequeno o que nos está preparado. Isso é uma revolução dentro da evolução que ainda continua e segue seu curso.
Ressurreição é uma revolução na evolução
Entrevista com o teólogo Leonardo Boff
(Por: João Vitor Santos | 02 Abril 2018)
1. Em que medida a Modernidade inebria o entendimento pleno do conceito de Ressurreição?
R.: Não vejo que a Modernidade tenha interesse no tema da Ressurreição, não nos autores que conheço. Preocupam-se sim pelo tema da morte. Por outro lado, se tivermos um conceito mais aprofundado do ser humano, aí sim aponta o tema da Ressurreição. Se concedermos que o ser humano é um projeto infinito e devorado por um desejo que não conhece limites, como Aristóteles e Freud reconheceram, aí se coloca a questão: qual é o objeto adequado ao seu impulso infinito e ao obscuro objeto de seu desejo infinito?
Só um infinito sacia nossa sede de infinito, só uma vida que seja eterna faz descansar o desejo. É a famosa experiência agostiniana do “cor inquietum” que somente repousa quando encontra Deus. O sentido da vida é mais vida, é a plenitude da vida. É aquilo que nós cristãos chamamos de Ressurreição.
2. No que consiste o “ressuscitar” segundo a Teologia e a Antropologia?
R.: Ressurreição não pode ser identificada com a reanimação de um cadáver como o de Lázaro que, por fim, acabou morrendo. Ressurreição é a irrupção do “novissimus Adam” de São Paulo (1Cor 15,45). Vale dizer, é a completa realização de todas as virtualidades incontáveis presentes no ser humano. Se ele é um projeto infinito, a Ressurreição representa o momeem em que estas virtualidades chegam a sua plena floração.
3. Quais o limites de se buscar a Ressurreição como um dado histórico? E de que forma a leitura mítica pode ampliar o entendimento acerca da Ressurreição?
R.: Ninguém viu a Ressurreição de Jesus. Temos apenas testemunhos de pessoas às quais deixou-se ver. E há apenas sinais como o sepulcro vazio e suas vestes. Portanto, não é um fato histórico passível de ser detectado por uma máquina fotográfica ou pela televisão. É um fato que aconteceu em Jesus, acessível pela fé dos testemunhos.
Esse evento não pertence ao mundo do bios, da vida biológica que sempre termina na morte. Por isso os textos judiciosamente falam em Zoé, que significa uma vida eterna. Também não dizem: nós vimos o Senhor, mas Ele deixou-se ver (óphte em grego, que é o medial de oráo). A iniciativa parte de Jesus e não dos apóstolos, aos quais permite vê-lo. Poderíamos dizer que a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer. Não sem razão que Orígenes, um dos mais geniais teólogos cristãos do norte do Egito no século III, denomina a ressurreição como a autobasileia tou Chritou. Traduzindo: a autorrealização do Reino em Cristo.
Quando as realidades são grandes demais, faltam-nos conceitos e palavras. O melhor caminho é elaborar narrativas e projetar mitos que no sentido moderno do termo (em C.G. Jung e nos antropólogos) é um meio de expressar o indizível. O mito não inventa o fato, dá-lhe uma forma que possamos compreendê-lo. Nessa linha dever-se-ia pensar a Ressurreição de Jesus. Antropologicamente ela é fecunda, pois vem ao encontro daquilo que de utópico e infinito discernimos no ser humano.
4. Muitos estudiosos defendem que a Ressurreição do Cristo é a vitória da vida sobre a morte. Como podemos compreender tal perspectiva?
R.: A vida é chamada para a vida e não para a morte, mesmo quando sabemos que vamos morrer um dia. Esse é o anseio fundamental do ser humano, não apenas viver muito, mas, como notava Nietzsche, viver eternamente. Nesse sentido, a Ressurreição representa um tipo de vida tão plena que nela não penetra a morte.
Mas para isso ela precisa se transfigurar, vale dizer, realizar totalmente o ser humano em suas infindáveis possibilidades. Não vivemos para morrer, como diriam os existencialistas. Morremos para ressuscitar. Dom Pedro Casaldáliga o formulou bem: a alternativa crista é: ou vida ou ressurreição.
5. É possível afirmar que o Deus vivo no Cristo só se revela plenamente na Ressurreição? Por quê?
R.: Enquanto estava entre nós, Jesus participava de todo tipo de limitações e até achaques da existência humana. É o que está implícito da encarnação. O autor da Epístola aos Hebreus é bem concreto: “entre súplicas, clamores e lágrimas se dirigiu àquele que o podia salvar da morte… e aprendeu a obedecer por meio dos sofrimentos que teve” (Hbr 5,7-8). Mais adiante diz que ele “é o general da fé” (12,2). A Ressurreição é a ultrapassagem desta situação carnal e passa à situação “espiritual” (do Espírito de vida). Aqui Deus se revela como o Deus que faz de um morto vivo e de um vivo o “novíssimo Adão”. Dá-se a plena revelação do Deus vivo que quer a vida e que no livro da Sabedoria se revela como “o apaixonado amante da vida” (Sb 11,24).
6. No que consiste a ideia de “ressurreição da carne” e de que forma se articula com a perspectiva do túmulo vazio, tão detalhadamente descrito na narrativa de Marcos?
R.: “Carne”, biblicamente, significa a situação humana frágil, doentia, mortal. Essa situação pela Ressurreição foi totalmente transmutada. Paulo o diz claramente: “semeia-se um corpo vital e ressuscita-se um corpo espiritual” (1 Cor 15,44.). Eu sustento a tese, aceita por muitos, de que as aparições no final do evangelho de Marcos seriam um acréscimo posterior, um pequeno resumo das aparições. O Marcos original não teria nada disso. Termina Jesus dizendo “aos discípulos e a Pedro que Ele (Jesus) os precederá na Galileia. Lá me vereis como vos disse” (Mc 16,7).
Com isso quero dizer: Jesus não se manifestou ainda de forma plena. Todos nós estamos a caminho da Galileia (o termo da história) para então vê-lo face a face. Assim me parece se entende melhor a história humana que apesar da Ressurreição de Cristo na verdade nada mudou, pois campeia a morte e a violência no mundo. Na esperança caminhamos para a Galileia da ressurreição. O próprio Jesus está em processo de ressurreição, pois seus irmãos e irmãs, que somos nós, ainda não ressuscitaram nem o universo que lhe pertence alcançou a sua plenitude. Ele está ainda em fase de cosmogênese. Quando tudo se completar, então, Jesus e sua comunidade terão finalmente ressuscitado [Ver um aprofundamento no meu “Cristianismo: o mínimo do mínimo, Petrópolis: Vozes 2015.]. Aqui cabem as palavras de Ernst Bloch: “o gênesis está no fim e não no começo”.
7. O senhor diz que a Ressurreição representa “uma revolução na evolução”. Gostaria que detalhasse essa perspectiva.
R.: A moderna cosmologia unanimemente afirma que o estado do universo não é a estabilidade, mas a mobilidade. Tudo está se expandindo, se complexificando e se autocriando. A evolução permite que as virtualidades latentes dentro do universo conheçam emergências, possam irromper sob as formas mais diferentes. Neste sentido, o universo não está ainda pronto. Ao invés de falar em cosmologia, deveríamos falar em cosmogênese, a lenta e progressiva gênese de todas as coisas.
Quando digo, seguindo Jürgen Moltmann, que Ressurreição é uma revolução na evolução, quero dizer que Ressurreição é uma pequena antecipação do fim bom da criação, como se o termo da evolução se antecipasse e nos mostrasse em pequeno o que nos está preparado. Isso é uma revolução dentro da evolução que ainda continua e segue seu curso.
8. De que forma o panenteísmo pode contribuir para o entendimento da Ressurreição no nosso tempo?
R.: A expressão “panenteísmo” foi criada no século XIX por um teólogo protestante de nome Krause. Ele quer dizer aquilo que a teologia antiga e clássica ensinava e ainda ensina com a expressão “pericórese” (a intro e retro relação de tudo com tudo) ou “circumincesio”. Primeiramente era aplicada na relação da criação com o Criador: ambos estão de tal maneira imbricados que um não pode ser entendido sem o outro. Depois, aplicou-se à cristologia e à doutrina trinitária. As três divinas Pessoas estão tão intimamente relacionadas que uma sempre implica a outra e assim eternamente.
Panenteísmo significa, então, que Deus está em tudo e tudo está em Deus, resguardadas as diferenças entre criatura e Criador. Não se trata de panteísmo segundo o qual tudo é indistintamente Deus. O próprio Voltaire mostrou o absurdo filosófico que tal afirmação comporta. O panenteísmo guarda as diferenças, mas revela como ambos estão presentes um no outro e que não podem ser pensados separadamente. Esta compreensão pode gerar uma mística como aquela de Pierre Teilhard de Chardin ou de São Francisco de Assis, que conseguiam ver Deus em todas e em qualquer realidade.
O Cristo cósmico das epístolas de São Paulo e da introdução do evangelho de São João dão-nos a perspectiva do “pleroma”, vale dizer, da universalidade da presença do Ressuscitado em todas as coisas. Célebre é o dito 33 do evangelho apócrifo de São Tomé que grandes nomes da exegese como Joaquim Jeremias e outros lhe conferem grande autoridade, pois parece ter saído da boca do Ressuscitado: “Eu sou a Luz do mundo. Tudo saiu de mim e tudo volta a mim. Rache a lenha e estou dentro dela, levante a pedra e estou debaixo dela. Porque estarei convosco todos os dias até o final dos tempos”. Levantar uma pedra é oneroso e rachar lenha é penoso. Mesmo esses afazeres comuns contêm a presença do Ressuscitado.
9. Como a volta à experiência da Ressurreição do Cristo pode inspirar a humanidade do nosso tempo a superar seus dilemas?
R.: Talvez este pequeno conto da área da ecologia pode responder a esta pergunta e que se encontra no meu livro Ecologia: grito da Terra – grito dos pobres (p. 307):
Certa feita um velho e santo monge foi visitado em sonho pelo Ressuscitado. Este, o Ressuscitado, o convidou para passearem pelo jardim. O monge acedeu com entusiasmo e cheio de curiosidade. Depois de andarem longo tempo, para frente e para trás pelo caminho do jardim como fazem os monges depois do almoço, ainda hoje, o santo e velho religioso ousou perguntar: ‘Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina, dissestes, certa feita, que voltarias um dia com toda a pompa e glória. Está demorando tanto esta sua volta!’ Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Ressuscitado respondeu: ‘meu irmãozinho querido: quando minha presença no universo e na natureza for evidente; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando esta consciência se tornar corpo e sangue em ti a ponto de não mais pensares nisso; quando estiveres tão imbuído desta verdade que não mais precisas perguntar com curiosidade, então, meu querido irmão, eu terei retornado com toda a minha pompa e glória.
E mais não se precisa dizer: o Ressuscitado está entre nós apenas nas fímbrias do mistério; quem crer e for sensível perceberá sua presença.
Leonardo Boff é doutor em Teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e, depois, professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É assessor de movimentos populares, reconhecido pelo seu trabalho com a Teologia da Libertação e nas áreas de filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Publicou diversos livros acerca desses temas, dos quais destacamos: Nossa ressurreição na morte (Petrópolis: Vozes, 2012), Jesus Cristo libertador (Petrópolis: Vozes, 2011), Cristianismo: o mínimo do mínimo(Petrópolis: Vozes, 2011) e Imitação de Cristo de Tomás de Kempis e Seguimento de Jesus (Livro V) (Petrópolis: Vozes, 2016). Ecologia – Grito da terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da mãe terra (Petrópolis: Vozes, 2015).
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