Para superar a compreensão rasa de que leigos e leigas são aqueles e aquelas que fazem parte do conjunto dos cidadãos eclesiais de segunda categoria. Ou seja, são aqueles que não têm a dignidade eclesial plena por não terem recebido o precioso sacerdócio de Melquisedec… e que por isso não são membros do clero ou da hierarquia eclesiástica.
Aqui, lembramos que Jesus, a pedra fundamental e o alicerce do cristianismo, foi leigo e não sacerdote.
Além disso, o Sacerdócio Comum dos Fiéis, celebrado no batismo e afirmado no Concílio Vaticano II, funda-se no ser membro do povo de Deus, vocacionado, portanto, a ser membro do corpo de Cristo e a dar continuidade à prática libertadora do profeta da Galiléia em vista da concretização do Reino de Deus.
Para entender as origens do clericalismo e promover a sua superação, pela conquista da autonomia evangélica e pelo cultivo da centralidade do batismo que nos irmana e responsabiliza, o texto do historiador da Igreja Eduardo Hoornaert revela-se profundamente esclarecedor, confira:
A ‘Cortina eclesiástica’
Eduardo Hoornarert
Escrevo este texto para dar uma modesta colaboração, como sempre de cunho histórico, ao ‘Ano do Laicato’, atualmente em curso no seio da Igreja Católica. Faço-o com prazer, pois cresceu em mim, ao longo dos anos, a convicção que só uma movimentação leiga é capaz de dar nova vida à Igreja católica. Parafraseando o conhecido ditado ‘fora da igreja não há salvação’, eu diria que ‘fora do leigo não há salvação’. Chegou a hora da autonomia dos movimentos leigos.
O sociólogo italiano Gramsci escreve que movimentos novos, quando aparecem numa sociedade estabelecida, costumam passar por três fases: a da afirmação, do confronto com o que existe e, finalmente, da autonomia. Ora, o movimento leigo, dentro da Igreja católica, já tem alguns séculos e passou por duas fases: a da autoafirmação de uma consciência eclesial leiga e a do confronto com o sistema clerical vigente (a fase do anticlericalismo). Agora, com as Comunidades Eclesiais de Base (no sentido largo desse termo), entramos numa terceira fase, a da autonomia. Autonomia diante do sistema clerical.
Não se trata mais de disputar espaço com o clero, mas de caminhar em frente e deixar o clero para trás, ‘correndo atrás do benefício’. Não se trata tampouco em menosprezar, por um enraizado anticlericalismo, os trabalhos, por vezes excelentes e mesmo imprescindíveis, de determinados sacerdotes, bispos e do próprio papa. Trata-se de conquistar a autonomia, o que só será possível se os movimentos leigos tiverem clareza em seus objetivos e segurança em afirmar, sem rodeios: ‘nós somos igreja’.
Para tanto, a tomada de consciência da fraqueza congênita do sistema clerical é fundamental. E precisamente no sentido de uma tomada de consciência dessa segurança que ofereço aqui um subsídio que espero ser de alguma utilidade.
1. A fraqueza congênita do sistema clerical
A fraqueza congênita do sistema clerical, ou melhor, seu defeito congênito, é um tema raramente verbalizado. Trata-se de externar em palavras o que muita gente sente intuitivamente, mas de que pouco se fala. Além disso, a compreensão desse defeito pressupõe uma tomada de consciência acerca de uma ‘história de longa duração’, segundo a expressão do historiador francês Fernand Braudel. Com isso, ele quis designar…
movimentos históricos que se tornam praticamente incontestes e podem mesmo dar a impressão de serem eternos, exatamente porque vigoram durante longos séculos. Suas inovações são tão largamente integradas na cultura que não são mais sentidas como inovações. Quando uma mesma narrativa se repete por séculos por meio dos mesmos gestos, das mesmas palavras e das mesmas imagens, a mente humana esquece que esses gestos, essas palavras e essas imagens são criações históricas passageiras (como tudo que é histórico). Elas foram construídas num determinado momento da história e, portanto, podem ser desconstruídas.
As pessoas passam então a considerar essas criações como sendo evidentes e normais. Assim não estranhamos mais quando vemos um papa falando do evangelho dentre de um dos espaços mais portentosos do mundo, só comparável ao Kremlin em Moscou ou à Praça da Paz Celestial em Pequim. Não estranhamos quando lemos as imensas letras ‘sobre esta pedra edificarei minha igreja’ (um anacronismo flagrante!) na cúpula da Basílica de São Pedro em Roma. Estamos acostumados a essas e outras narrativas desde a infância e passamos a considerá-las normais. Mesmo assim, no íntimo sentimos que algo está errado. É do íntimo do coração que brota a consciência leiga.
2. A reviravolta constantiniana
Consideremos por uns minutos uma história de 17 séculos atrás. Você decerto já ouviu falar da ‘reviravolta constantiniana’. Imagine: no ano 325, o Imperador Constantino convida os bispos cristãos a se reunir em sua Residência de Verão, situada num subúrbio de Bizâncio chamado Niceia. Uma surpresa total, pois seu antecessor Diocleciano havia deflagrado a mais cruel perseguição contra as comunidades cristãs. O novo Imperador, pelo contrário, se dispõe a ajudar os bispos a resolver determinados problemas de desunião existentes entre igrejas (naquele tempo, esse termo indicava comunidades locais). Os bispos mal percebem que, por detrás de suas palavras e de sua gentileza, Constantino pretende se valer das energias vigentes no movimento cristão para enfrentar problemas de desunião a serem resolvidos na administração do Império. Esses bispos vêm do interior, do mundo rural analfabeta, e agora são recebidos com ‘honras senatoriais’. Ficam muito impressionados e um dos presentes, ao ver o Imperador conversando com seus colegas, exclama: ‘é o Cristo, o próprio Cristo está entre nós’. Constantino se faz de super-bispo e manda logo construir, na cidade capital Bizâncio, doravante chamada Constantinopla, uma basílica tão imensa que até hoje permanece uma das maiores construções do mundo cristão, a ‘Hagia Sofia’ (Santa Sabedoria). No final do século IV já funciona ali uma corporação de clérigos cristãos, nos moldes das corporações sacerdotais da religião romana da época, que se esmera em moldar uma nova liturgia cristã, que convenha a uma Basílica tão portentosa: introitos e procissões, mitras e estolas, capas e casulas, invocações solenes, preces codificadas, cortesias e a indefectível hipocrisia. Essas novidades impressionam líderes cristãos do campo rural, que passam a seguir a moda bizantina. Assim se formam paulatinamente corporações clericais em grandes centros populacionais do Império como Antioquia e Alexandria, até alcançar a longínqua Roma. Inicia-se, ao mesmo tempo, um processo administrativo eclesiástico nos moldes do sistema administrativo romano, forma-se uma hierarquia e uma divisão do universo cristão em torno de centros urbanos (as dioceses). Tudo copiado ou pelo menos inspirado pela administração do Império Romano. Forma-se um novo tipo de bispo, que sabe falar em público segundo as regras da retórica e passa a cultivar modos corteses. Mas…
a mudança mais importante consiste na divulgação do princípio corporativo. Forma-se um corpo sacerdotal unificado, que passa a controlar a multiplicidade de igrejas, ou seja, de comunidades locais.
Ao acolher essas novidades do organograma clerical, os bispos praticam o que os alemães chamam de ‘Realpolitik’, ou, como se diz entre nós, assumem uma postura ‘politicamente certa’. Eles reconhecem e confirmam um fato consumado: doravante, o clero controla a Igreja.
3. A colocação de uma pesada cortina
Com esses procedimentos se interpõe uma pesada cortina entre a Igreja ‘católica’ (no sentido original de ‘espalhada por toda a terra’) e a tradição cristã anterior. Não um simples biombo de fácil remoção, nem um cortinado leve que voe ao vento, mas uma cortina que vai do teto até o chão, como aquele que em palácios e auditórios serve para separar grandes espaços. Ou como aquela cortina que, num teatro, separa o palco da plateia. Não é um muro, pois pode ser removido. Enfim, trata-se de uma instituição que, se não fecha totalmente o horizonte evangélico, pelo menos dificulta a visão.
Essa ‘cortina’ consiste numa remodelação e ressignificação da estrutura eclesial anterior. Aqui chegamos ao âmago da questão. Para que a nova ordem eclesiástica surta efeitos, é preciso reler os textos evangélicos de modo que confirmem ou pelo menos abram espaço para o novo modelo. Ou seja, fica difícil escapar a uma leitura fundamentalista dos evangelhos.
A melhor definição de leitura fundamentalista que conheço foi dada por um professor meu, nos idos de 1950, que, ao terminar sua explanação numa determinada disciplina de nosso curso teológico, deu um suspiro e disse: ‘mais uma vez conseguimos provar que a Bíblia está de acordo conosco’.
A intenção da leitura fundamentalista, confessa ou não, consciente ou não, é fazer com que o texto sagrado esteja de acordo com o que efetivamente está em curso ou se planeja. É uma leitura a posteriori. A rigor, não é leitura nem escuta, é a confirmação do que já se sabe. Uma perversão do pensamento.
4. O fundamentalismo católico vive da falta de aprofundamento histórico
Penso que o discurso da teologia, na medida em que se dispõe de animar o movimento leigo, não pode deixar de abordar esse fundamentalismo católico.
Costuma-se, entre teólogos, recorrer diretamente ao evangelho. Falta um aprofundamento histórico, uma apresentação mais explícita da ruptura entre o sistema eclesial anterior ao século IV (o sistema de comunidades leigas) e o sistema baseado na corporação clerical e no sacerdócio.
Trabalhei esse tema em meu livro ‘Origens do Cristianismo’ (Paulus, São Paulo, 2016). Para voltar à imagem da cortina: falta demonstrar que essa cortina é um dado histórico, é história vivida, não é ideologia.Se não incluir esse dado histórico, o discurso da teologia corre o perigo de soar algo irreal e não resolver a insegurança existente no mundo leigo. Num dia, a pessoa ouve o discurso de um teólogo e num outro dia o discurso do vigário de sua paróquia. Ela percebe a dissonância, fica insegura e pensa que se trata de pensamentos ideológicos diferentes, o que não é verdade. Trata-se aqui de história vivida, não de ideologia.
5. A Carta aos Hebreus e a fundamentação do sacerdócio cristão
Falta credenciar as afirmações acima por meio da leitura concreta de um texto bíblico. Como aqui abordei o tema da corporação sacerdotal, me proponho, dentro dos limites deste texto, apresentar uma leitura muito resumida da Carta aos Hebreus. A razão da escolha dessa Carta está no fato que, nos cursos de formação clerical, ela costuma servir de fundamentação bíblica do sacerdócio cristão.
Ensina-se, na base de uma leitura da Carta aos Hebreus, que há um só sacerdote verdadeiro e eterno, Cristo, e que os que receberam a ordenação sacerdotal são seus ministros. O ministério sacerdotal é uma participação ao sacerdócio eterno de Cristo. Para tanto, imprime-se na alma do sacerdote cristão um ‘caráter indelével’, um sinal de pertença definitiva ao sacerdócio de Cristo. Ele é ‘sacerdote para sempre’.
Serei breve. Só digo, para iniciar, que a Carta aos Hebreus deve ter sido redigida por volta do ano 65, portanto numa época em que ainda funcionaram no Templo de Jerusalém os serviços sacerdotais. Provavelmente, foi escrita em função de sacerdotes judeus (‘hebreus’, como reza o título da Carta) que se aproximavam do movimento de Jesus e se sentiam inseguros quanto ao posicionamento do movimento em relação ao sacerdócio. Ao abordar a leitura do texto, ficamos estranhando a frequência de citações bíblicas. São mais de cem. Isso se deve ao fato que Hebreus argumenta por meio da citação de textos bíblicos e da apresentação de figuras bíblicas conhecidas. Nisso segue um método de argumentação corrente nas sinagogas, que se verifica inclusive nos evangelhos, o método ‘midrash’ (‘busca’, em hebraico). Presume-se que os ouvintes ou leitores tenham suficiente intimidade com textos bíblicos para ‘buscar’, guiados pelo escritor anônimo, citações bíblicas e figuras emblemáticas que expressem o que ele quer dizer. Assim, em Hebreus, Abel é o injustiçado, Abraão o homem de fé, Moisés o legislador, Josué o conquistador de Canaã, Ra’ab a prostituta que colabora com o exército de Josué e Esaú o irmão de Jacó, que desperdiça a bênção paterna por preferir uma sopa de lentilhas. É dentro desse contexto que aparece a figura de Melquisedec.
6. Melquisedec é a senha de acesso à compreensão da Carta aos Hebreus.
Captar o significado de Melquisedec leva a compreender a Carta aos Hebreus. Vamos, pois, à procura de Melquisedec. No Salmo 110 (um salmo da série ‘tseva´ot’, destinada a exaltar os que lutam por Israel), Ihwh fica tão alegre por encontrar alguém disposto a lutar com ele a favor de Israel, que ele se expande em palavras elogiosas:
No esplendor santo, na luz da aurora, no orvalho da manhã, você será sacerdote para sempre como Melquisedec (Sl 110, 2-4, citado em Hb 7, 17 e 21).
Ihwh fica ‘eternamente grato’ ao colaborador e diz que ele é, como Melquisedec, ‘sacerdote para sempre’. O que significa isso? O Salmo 40 (que Hebreus cita no capítulo 10) tem a resposta. Melquisedec (que aqui já funciona como símbolo de Jesus) se coloca frente a Ihwh e diz:
Você, Ihwh, não gosta de sacrifícios. Nada de ofertas, nada de fogo nem fumaça. Então eu disse: Estou aqui (Sl 40, 7-10, citado em Hb 10, 5-7).
Que sacerdote é esse, que rejeita sacrifícios, fogo, fumaça, sangue de bodes e novilhos, enfim, as celebrações sacerdotais? Fica claro que, em Hebreus, o termo ‘sacerdote’ é uma metáfora. Hebreus fala em sacerdote para dizer outra coisa. Que ‘outra coisa’? O capítulo 7 tem a explicação. No versículo 14, para que ninguém entenda mal o raciocínio do escritor, ele afirma categoricamente que Jesus nunca foi sacerdote: ninguém ignora que Nosso Senhor provém de Judá, tribo sobre a qual Moisés ficou calado quando falava de sacerdotes (Hb 7, 14). Em que sentido se pode falar, então, de Jesus sacerdote? Hebreus 7, 15-17 tem a resposta:
À semelhança de Melquisedec se levanta um sacerdote novo, que não se tornou sacerdote em virtude de uma fugaz ordenação legal, mas pelo poder de uma vida indestrutível (akatalutos).
O sacerdote novo se tornou sacerdote pelo poder de uma vida indestrutível. Não há como dizer de modo mais claro que o sacerdócio de Jesus é símbolo de vida, ou seja, que o escritor usa a expressão ‘sacerdote’ para negar a vigência de um sacerdócio ‘ordenado’ no movimento de Jesus e afirmar categoricamente que Jesus se tornou ‘sacerdote’ por seu modo de viver. E, nos versículos 23 a 24, a Carta conclui: esse sacerdócio, por ser expressão de vida, é intransmissível:
Acrescentemos que os primeiros (os sacerdotes levíticos) foram numerosos a se tornar sacerdotes, porque a morte os impedia a continuar cumprindo seu ofício, enquanto ele, já que fica para sempre, possui um sacerdócio intransmissível (‘aparabaton’ em grego): Hb 7, 23-24.
Aqui nos defrontamos, nas traduções correntes do texto grego, com um erro grosseiro. O adjetivo grego ‘aparabatos’ significa ‘intransmissível’, não ‘verdadeiro’ (Tomás de Aquino), nem ‘eterno’ (Concílio de Trento), nem ‘o que não passa’ (tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Hebreus afirma que a atividade de Jesus é passageira: Tudo isso ele realiza uma só vez (‘efapaks; hapaks’) (Hb 7, 27). As realizações de Jesus são passageiras, submetidas às leis de tempo e espaço, provisoriedade e incompletude, como tudo que se passa na história. Não se ‘transmitem’ por meio de algum rito. São intransmissíveis. Rito se transmite, se repete. Ato não se repete, não se ‘transmite’ (a não ser em forma de exemplo).
7. Jesus é sacerdote ‘a exemplo de Melquisedec’ e não ‘a exemplo de Aarão ou Levi’
Podemos concluir. Não se pode alegar que a Carta aos Hebreus, por ser de leitura difícil, não seja um texto claro. É de uma clareza cristalina: Jesus é sacerdote ‘a exemplo de Melquisedec’, não ‘a exemplo de Aarão ou Levi’. Sacerdote por seu modo de viver, não por alguma ordenação que porventura teria recebido. O ‘sacerdócio’ de Cristo, na Carta aos Hebreus, funciona como metáfora da vida de Jesus, de seu modo de viver. Indestrutível, intransmissível. Dizer que o sacerdócio de Jesus está na origem do sacerdócio cristão é cometer um erro flagrante de leitura bíblica. Falta de atenção às palavras, de leitura apropriada.
Eis uma consideração de cunho histórico que, imagino, pode servir na formação de leigos e leigas desejosos de seguir o evangelho, conscientes de sua autonomia e desejosos de se livrar da tutela clerical. Livres para ler e interpretar textos bíblicos com critério e honestidade intelectual, sem ceder a tendências fundamentalistas.
Sobre o autor: Eduardo Hoornaert nasceu em Bruges, Bélgica. É formado em Línguas Clássicas e História Antiga pela Universidade de Lovaina. Trabalhou dois anos na África como professor. Desde 1958 vive no Brasil. Por mais de 30 anos foi professor de História do cristinianismo em diversos institutos teológicos. Atualmente reside em Salvador. É membro fundador da CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina). Autor de inúmeros artigos e livros, entre os quais podemos citar: Formação do catolicismo brasileiro, 1550-1800 (1974); História da Igreja no Brasil: primeiro período (1977); A Igreja no Brasil Colônia (1978); Padre Ibiapina e a igreja dos pobres (1984); Voz do Padre Cícero (1985); A memória do povo cristão (1986); O cristianismo moreno do Brasil (1987); Essa terra tinha dono (1990); História da igreja na Amazônia (1992); O movimento de Jesus (1994); História do cristianismo na América Latina e no Caribe (1994); História da Igreja na América Latina e no Caribe (1995); Cristãos da terceira geração (1997); Os anjos de Canudos (1997); Brasil indígena: 500 anos de resistência (2000); Hermas no topo do mundo (2002); Origens do cristianismo: uma leitura crítica (2006).