O QUE É
7. CELEBRA é uma rede formada de pessoas e núcleos, comprometida com uma liturgia cristã enraizada na vida pessoal e comunitária, fonte de espiritualidade, inculturada na caminhada solidária dos pobres, na perspectiva da ecologia integral. A Rede coloca-se a serviço da animação litúrgica nas comunidades, aberta ao ecumenismo e em diálogo com o mundo.
NOSSOS PONTOS DE PARTIDA
8. Boa parte da vida das comunidades cristãs, sobretudo as de tradição católica, consiste em reunir-se para celebrar. São exemplos disso, não só os presbíteros, que se desdobram em presidir a Eucaristia e ser presença nos demais sacramentos e sacramentais, como também, no meio do povo, a multiplicação de Celebrações da Palavra, louvores, vigílias, novenas, bênçãos, procissões, romarias, missões populares, terços, vias-sacras etc. Dessa forma, investe-se muito em recursos humanos e materiais, tempo, talento e energia no celebrar, o que é mais do que suficiente para justificar nosso cuidado com as celebrações.
9. Uma leitura das Sagradas Escrituras, especialmente dos Evangelhos, mostra que, para Jesus e para as comunidades cristãs primitivas, a experiência essencial da relação com Deus, da religião, da adoração verdadeira, acontece na vida, no dia a dia das pessoas. A liturgia de Cristo e dos cristãos consiste, antes de tudo, na experiência do Deus libertador e, como consequência, num serviço a este Deus, passando, necessária e prioritariamente, pelo serviço ao próximo, pela solidariedade com os excluídos, pela entrega da vida aos irmãos (Lc 10,25-37; Mt 25,31-46). Esse culto existencial é a adoração que o Pai espera de nós, que é fruto do Espírito (Jo 4) e que se realiza plenamente no mistério pascal de Cristo e dos cristãos (Hb 10,5-10; 1Jo 3,14-18; Rm 12,1-2; 1Pd 2,4- 10).
10. Por isso, ao nos ocuparmos com a celebração, nosso olhar se volta, antes de tudo, para a vida das pessoas e para a casa da humanidade. Isso nos torna capazes de perceber o mistério pascal de Cristo acontecendo na vida, seja nos gestos mais simples e cotidianos de amor fraterno, seja nas práticas mais abrangentes da solidariedade e do exercício da cidadania.
E é desse olhar de fé, provocado pelo anúncio e acolhida do Evangelho, que brota a celebração autêntica da nossa vida em Cristo, do seu mistério pascal em nós. Somente uma celebração a partir da realidade existencial se tornará uma fonte de renovada energia, capaz de dar novo impulso ao nosso viver para Deus, em Cristo, na força do Espírito, comprometendo-nos sempre mais com o bem dos irmãos e das irmãs, com a causa da vida. Só assim a liturgia celebrada será verdadeiramente cume e fonte da vida da Igreja (SC n.10).
Há, portanto, uma necessidade urgente de se superar um certo idealismo litúrgico, característico de tantas de nossas celebrações, vistosas e pomposas, mas sem raiz na vida real das pessoas e das comunidades e que, por isso mesmo, se tornam ilusórias e alienantes. Precisamos cultivar um sadio realismo que, antes de qualquer outra preocupação, nos coloque frente à nossa existência à luz do mistério de Cristo, o qual, para ser reconhecido na celebração, precisa ser reconhecido na realidade da vida.
11. É uma alegria constatar que um número expressivo de comunidades, tanto no meio rural quanto no urbano, se reúne no Dia do Senhor em celebrações animadas e criativas, enraizadas numa caminhada de fé e de luta. Causa preocupação, no entanto, a abundância das celebrações, sobretudo da Eucaristia, lá onde pouco ou nada se investe num trabalho de evangelização que permita às pessoas despertarem para a fé ao revisarem seriamente suas vidas à luz do Evangelho. Essa inflação de celebrações ilude as pessoas e desvaloriza os sacramentos, os quais, para serem válidos, têm de ser, antes de tudo, sacramentos da fé. Nunca é demais lembrar o que ocorreu na comunidade de Corinto, em que a falta do espírito de partilha e solidariedade levou Paulo a questionar a validade da ceia por ela celebrada (1Cor 11,17-34).
12. A comunidade de fé é o lugar mesmo da presença real de Cristo (Mt 18,19-20). Pela tradição eclesial, recebe o mandato de repetir seus gestos e palavras “em sua memória” (Lc 22,19). O Espírito suscita nelas carismas e ministérios necessários à plenitude da vida cristã e ao pleno exercício de sua missão. Não é possível que se mantenha a multiplicação de celebrações sacramentais desvinculadas da vida. É inadmissível que, devido à disciplina do celibato e ao patriarcalismo injustificável, muitas comunidades sejam privadas do direito de terem ministros e ministras capazes de reuni-las para participarem plenamente da Páscoa do Senhor, especialmente na Santa Ceia. Essa defasagem ministerial, ou encontrará uma solução coerente e rápida por parte da hierarquia, ou levará o povo cristão a buscar suas soluções emergenciais. Para celebrar a libertação em Cristo, é preciso libertar a liturgia de todo tipo de dominação e afirmar o caráter sacerdotal do povo de Deus.
13. A maioria das pessoas que animam as celebrações nas comunidades são mulheres. É uma graça de Deus para seu povo, um dom do Espírito que vem enriquecer as comunidades. As mulheres têm um jeito diferente de ser e celebrar: dão mais importância ao corpo (gestos, movimentos, procissões, danças, vestes); preocupam-se, naturalmente, com a qualidade do acolhimento e com a participação das pessoas, principalmente dos mais fracos; têm a tendência de assumir os ministérios colegialmente, em equipe, repartindo serviços. O tempo é sentido por elas como cíclico, favorecendo o amadurecer lento de semana em semana, de ano para ano, como uma gestação. Esse jeito próprio das mulheres vem completar, equilibrar, “casar” com o jeito dos companheiros, para que a imagem de Deus, que se manifesta na comunidade e na liturgia, seja experienciada por inteiro, com sua dimensão feminina e masculina.
14. A partir da encarnação do Verbo, o Reino de Deus, o mistério pascal de Cristo, acontece na vida das pessoas e dos grupos em contextos culturais bem diversificados, o que, necessariamente, vai refletir na maneira de celebrar. Por isso, é necessário cultivar uma prática celebrativa na qual a pluralidade cultural seja levada em conta e na qual, também, toda língua celebre, a seu modo, sua fé no Autor da vida, Jesus Cristo.
15. É a pessoa toda que celebra, com seu corpo e sua mente, com seu coração. A mente acompanha o que o corpo faz, e o coração sente. Uma liturgia fria, sem envolvimento afetivo, sem coração, não satisfaz nem a pessoa humana nem as exigências da aliança com o Deus dos nossos pais, que se apresenta como um Deus amoroso, compassivo, que se une a nós num amor eterno e exclusivo. As comunidades estão sedentas de celebrações proféticas, enraizadas nas realidades duras da vida e, ao mesmo tempo, orantes e cheias da ternura do nosso Deus, o que favorece o encontro e o diálogo entre as pessoas, bem como a relação pessoal e comunitária com Deus.
16. As comunidades estão redescobrindo que não se faz celebração só com palavras. Liturgia é encontro, festa, ação, movimento, gestos, música e dança. O Batismo, a Santa Ceia, a Celebração da Palavra, o Ofício Divino, as vias-sacras, as procissões, as romarias são ações simbólicas, que nos permitem expressar, em linguagem humana, a presença escondida do Deus que se fez ‘carne’, humano com os humanos (1Jo 1,1-4). Esses gestos são a linguagem da nossa adoração e da nossa comunhão com ele na intimidade do seu amor. O fruto que colhemos na liturgia, a graça de Deus que dela nos vem para o nosso crescimento na fé, passa pela expressividade da ação litúrgica. Por isso, é incoerente continuar com gestos mal feitos, com orações recitadas às pressas, com textos bíblicos lidos sem eloquência, com ações sacramentais inexpressivas. Conhecemos os exemplos: banho batismal reduzido a minguadas gotas d’água, pão eucarístico impossível de ser reconhecido como pão, bênçãos feitas mecanicamente, celebrações com muitos textos e discursos, espaço celebrativo inadequado, uso do folheto, excessos de ministérios em detrimento da participação da assembleia.
17. Urge corresponder ao apelo insistente que nos chega do Senhor, em sua oração sacerdotal (Jo 17), e do apóstolo Paulo, em sua Carta aos Efésios (4,4-6): a unidade na fé entre os cristãos exige unidade na oração e na celebração. Cabe cultivar o espírito de abertura, de acolhida, de diálogo ecumênico, como testemunhas do amor de Deus por toda a humanidade. Nosso olhar será um olhar amoroso, de respeito e acolhimento para com as várias tradições litúrgicas, capaz de nos fazer vibrar com tudo quanto de bom e de belo se encontre nos demais, procurando superar qualquer tentação de sectarismo, na esperança do dia em que não precisaremos mais celebrar na divisão o sacramento da unidade: a Eucaristia.
18. Nossa comunicação com o Deus da vida, expressa na liturgia, passa necessariamente pela relação respeitosa, cuidadosa e comprometida com todo o cosmos. Liturgia tem a ver também com ecologia.
NOSSAS PROPOSTAS
Partindo dessas convicções, queremos criar espaços para:
19. Observar a prática celebrativa das comunidades e estabelecer critérios comuns para analisá-la e avaliá-la à luz das tradições litúrgicas, das culturas e das lutas pela vida.
20. Apoiar as iniciativas de reapropriação da liturgia feitas pelas comunidades como povo sacerdotal.
21. Libertar, progressivamente, a prática celebrativa dos esquemas de dominação, para chegarmos a um jeito de celebrar que manifeste o caráter igualitário e participativo da comunidade eclesial.
22. Contribuir com a formação litúrgica das equipes de liturgia.
23. Promover o florescimento dos ministérios necessários à caminhada do povo de Deus, com especial atenção à formação adequada dos ministros e ministras, a serviço da comunidade.
24. Desenvolver uma metodologia coerente de formação litúrgica com as seguintes características:
a) organizar os momentos de formação combinando reflexão e experiência celebrativa;
b) usar técnicas adequadas, como “laboratórios litúrgicos” e outras;
c) explicitar as expressões litúrgicas em uso nas comunidades e aprofundar seu sentido bíblico-teológico;
d) conhecer as tradições litúrgicas;
e) conhecer as propostas oficiais das várias igrejas;
f) compreender as formas rituais e os sentidos teológicos das várias tradições religiosas populares.
25. Enraizar a prática celebrativa na vida das pessoas e grupos humanos, na sua existência concreta, nos seus sonhos e nas suas lutas, contemplados à luz do mistério pascal, com a ajuda do Espírito, de modo a termos celebrações cheias de vida e impulsionadoras do compromisso cristão.
26. Integrar a prática celebrativa num processo de evangelização, de forma que as celebrações venham acompanhadas de uma prática constante de revisão de vida.
27. Buscar uma forma de celebrar que reflita as peculiaridades culturais de cada região, de cada grupo humano, de tal maneira que as pessoas encontrem a sua identidade na celebração e celebrem com prazer e criatividade sua vida em Cristo.
28. Valorizar a capacidade de acolhimento litúrgico das comunidades populares. Ao mesmo tempo, manter-nos abertos ao diálogo interconfessional e inter-religioso, inclusive aproveitando as oportunidades de celebrarmos juntos.
(Os grifos são nossos)
Fonte:
www.redecelebra.com.br