“A pós-modernidade, que é caracterizada pela mentalidade individualista e sensitiva, condicionou as convicções da convivência presbiteral aos interesses subjetivistas. Há uma tribalização da vida comunitária dentro dos presbitérios”, afirma Matias Soares. “As possibilidades de convivência estão mais tendenciosas ao que é foco de interesses particulares, ou de pequenos grupos.”
Sua reflexão se alicerça sobre o documento Presbyterorum Ordinis: “O problema que percebemos é que existe uma indiferença acerca da importância da necessidade de pensar com a Igreja; mas, muito mais de ser Igreja” pondera esse sacerdote ao retomar um documento com mais de 50 anos, mas sobre o qual afirma ser atualíssimo. “Muitos presbíteros estão perdidos e confusos; outros, iludidos e pensando que a Igreja começou com eles e terminará com eles. A preocupação é personalíssima. Não é comum; não é o bem comum.” E continua: “Não podemos esquecer a categoria Povo de Deus do Concílio. Ou seja, são todos os fiéis batizados que compõem esta Igreja e que são o fim da missão do ministério dos presbíteros, pois estes são ministros; são servidores.”
Nada exatamente novo. Por isso mesmo, importa refletir… Por que segue sendo atual?
O PRESBITÉRIO: SERVIÇO E COOPERAÇÃO
Por Pe. Matias Soares
Uma das preocupações mais recorrentes da eclesiologia pós-conciliar é a da identidade e da missão dos presbíteros. Não há como pensar a vida cotidiana da Igreja, sem pensar a existência presbiteral. O Concílio situa a sua condição e ministério, a partir das seguintes missões: a) presbíteros e ministério da palavra; b) presbíteros e ministros dos sacramentos; e c) presbíteros e o ministério pastoral (Presbyterorum Ordinis, Cap. II). Devemos revisitar o magistério conciliar com mais frequência. As discussões sobre identidade e múnus presbiterais precisam partir, na construção da teologia sobre o presbítero no mundo de hoje, das concepções do Concílio.
Para corroborar minha reflexão, terei como referência o decreto acima citado (PO), em seu n. 8, que possui algumas afirmações lapidares: Já de inicio é ensinado que “os presbíteros, elevados ao presbiterado pela ordenação, estão unidos entre si numa íntima fraternidade sacramental”. Vejamos que há uma questão teológica fundante da fraternidade sacerdotal. Não é questão de simples simpatia. O que está em jogo é uma experiência de fé e espiritualidade eclesial. A pós-modernidade, que é caracterizada pela mentalidade individualista e sensitiva, condicionou as convicções da convivência presbiteral aos interesses subjetivistas. Há uma tribalização da vida comunitária dentro dos presbitérios. As possibilidades de convivência estão mais tendenciosas ao que é foco de interesses particulares, ou de pequenos grupos. Essa postura tem consequências também no modo de acolher a própria vida diocesana. Existe uma dispersão causada pela desvinculação dos elementos fundantes da comunhão eclesial. Esta questão pode ser enfrentada pedagogicamente através da formação permanente. O problema que percebemos é que existe uma indiferença acerca da importância da necessidade de pensar com a Igreja; mas, muito mais de ser Igreja. Muitos presbíteros estão perdidos e confusos; outros, iludidos e pensando que a Igreja começou com eles e terminará com eles. A preocupação é personalíssima. Não é comum; não é o bem comum. Não podemos esquecer a categoria Povo de Deus do Concílio. Ou seja, são todos os fiéis batizados que compõem esta Igreja e que são o fim da missão do ministério dos presbíteros, pois estes são ministros; são servidores. Uma leitura que me tem fornecido um substrato teológico e histórico acerca desta questão é um texto de Ives Congar (Per una Chiesa serva e povera, pág. 25-40). É uma leitura que me traz elementos sintéticos e claros acerca da nossa missão, como ministros ordenados, em comunhão com o ministério dos bispos, pensando que o que sempre foi tradicional e deve continuar a ser comum da vida de todos os presbíteros e demais ministros ordenados é a dimensão do serviço. O Padre Congar apresenta algumas referências evangélicas para delinear essa dimensão essencial, a saber: Mt 16,24-28; Mc 8,32-38; Mc 10,42-45; Mt 20,25-28; Fl 2,6-11; Jo 13,12-17. São vários elementos postos; contudo, a preocupação está em afirmar desde o início, que os seguidores de Jesus, todos, são chamados ao serviço constante aos irmãos (diáĸonos-servidor e doulos-escravo, homem que se cansa, cf. pág. 29). A análise é densa. Aqui está o ponto transversal do que é não só missão dos presbíteros, mas de todos os discípulos de Jesus Cristo.
Essa preocupação tem que ser presbiteral, já que especialmente “na diocese a cujo serviço, sob o Bispo respectivo, estão consagrados, formam um só presbitério”, pois assim assevera o decreto, o qual continua afirmando que, “embora ocupados em diferentes obras, exercem o mesmo ministério sacerdotal a favor dos homens. Todos são enviados para cooperarem na obra comum, quer exerçam o ministério paroquial ou supra-paroquial, quer se dediquem à investigação científica ou ao ensino, quer se ocupem em trabalhos manuais compartilhando a sorte dos operários, onde isso pareça conveniente e a competente autoridade o aprove, quer realizem qualquer outra obra apostólica ou orientada ao apostolado”. Eis uma colocação categórica que deve ser levada em consideração com muita seriedade e abertura de espírito ao interno das dioceses e congregações religiosas. Não existem trabalhos e missões mais, ou menos, importantes no exercício do ministério presbiteral. O relevante é o bem dos fiéis e da comunidade. Onde quer que esteja, o presbítero tem que ter consciência da sua condição presbiteral. Em todos os campos de atuação, o que está em jogo é o seu ser que precede o agir. A questão é sacramental, e se realiza historicamente, através da sua ação e testemunho. Os modos são diferenciados, mas quem age e testemunha a sua opção de vida é sempre o presbítero, em todos os momentos e espaços.
Segundo o decreto, “todos têm uma só finalidade, isto é, a edificação do corpo de Cristo que, especialmente em nossos dias, requer múltiplas atividades e novas adaptações. Por isso, é da máxima importância que todos os presbíteros, diocesanos ou religiosos, se ajudem mutuamente, para que sejam sempre cooperadores da verdade”. Aqui, há um ponto que deve ser lido e retomado nas dioceses nas quais há presbíteros religiosos. Nalguns casos, há uma dificuldade de inserção dos religiosos na caminhada conjunta da diocese. Essa atitude fere a orientação do Concílio e o espírito eclesial. Essas posturas não ajudam no amadurecimento e caminhada sinodal do único presbitério nas dioceses. A comunhão é o que fortalece a caminhada presbiteral, tanto para os diocesanos, quanto para os religiosos, numa Igreja Particular, em unidade com o Bispo diocesano. De acordo com o texto, “cada membro do colégio presbiteral está unido aos outros por laços especiais de caridade apostólica, de ministério e de fraternidade. Isto mesmo, desde tempos remotos é significado liturgicamente quando os presbíteros presentes são convidados a impor as mãos, juntamente com o Bispo ordenante, sobre o novo eleito, e bem como quando concelebram, num só coração, a sagrada Eucaristia”.
Penso na vida presbiteral como algo que deva ser fortalecido com a educação que a Igreja propõe, tendo em vista o que lhe é próprio. Por exemplo, tenho muita dificuldade de entender quando há ‘resistência’ da parte de presbíteros em rezar com os irmãos, em ter momentos de espiritualidade, além do que é ordinário, o gosto pelos estudos e atenção à cultura, para melhor servir ao Povo de Deus, a vida fraterna e momentos de alegria, a preocupação com o outro em seus momentos de crise etc. Se não há atenção ao que é fonte de gradual aprimoramento da existência presbiteral, como pode ser amadurecida toda a estrutura pessoal do presbítero? Como a pessoa do presbítero pode ser integrada, se não há busca pelo que é virtuoso e que favorece a capacidade de contemplar a realidade, para interpretá-la, à luz da fé e da razão? Penso que muitas questões precisam ser apresentadas e, a partir de respostas sérias e que visem o bem de um presbitério, sejam via de renovação constante do serviço e existência presbiteral.
Segue o texto conciliar asseverando que “cada presbítero se une, pois, com seus irmãos por vínculo de caridade, oração e omnímoda cooperação, e assim, se manifesta aquela unidade na qual Cristo quis que os seus fossem consumados, para que o mundo conheça que o Filho foi enviado pelo Pai”.
Um dos pontos de extrema atualidade abordado nesse texto deve nos remeter ao futuro de muitos. Segundo o que continua sendo tratado, “os mais idosos recebam os mais novos como irmãos e os ajudem nos seus primeiros empreendimentos e encargos do ministério; esforcem-se por compreender a sua mentalidade, embora diferente, e ajudem com benevolência as suas iniciativas. Do mesmo modo, os jovens reverenciem a idade e experiência dos mais velhos, aconselhem-se com eles nas questões referentes à cura de almas, e colaborem de bom grado”. Sobre esta questão relacional, como é importante o acolhimento entre os mais jovens e idosos de um presbitério! Essa parceria e reconhecimento da importância de cada um são tão importantes quanto necessários nas atuais circunstâncias! Como os padres mais jovens precisam da orientação dos mais velhos e, como estes, necessitam da vivacidade dos mais jovens! A postura deveria ser de complementação e solidariedade, jamais de disputa e rejeição.
O documento continua, ensinando que “animados de espírito fraterno, os presbíteros não esqueçam a hospitalidade, cultivem a beneficência e comunhão de bens, tendo particular solicitude com os doentes, os atribulados, os que estão sobrecarregados de trabalho, os que vivem sós, os que vivem longe da Pátria, bem como com os que sofrem perseguição.” Neste ponto, gostaria de ressaltar a importância da comunhão dos bens. Em muitas dioceses há muitos sinais de injustiça social dentro do presbitério. Não há partilha. Isso é escandaloso e fere gravemente o rosto de um presbitério. Por isso, quando alguns não têm uma vocação genuína e fazem da vida sacerdotal uma profissão, sobretudo no caso de alguns que se tornam mercenários e funcionários das coisas sagradas, é muito triste. Há muitos que têm estilos burgueses e de muito consumismo. Para estes, a Igreja é uma via de promoção pessoal e material. Não são pastores. São lobos que exploram a generosidade do povo santo de Deus. Aqui, me recordo dos sermões de Santo Agostinho sobre os maus pastores. Estes não dão a vida pelas ovelhas. As usam para o seu próprio benefício.
O documento conciliar orienta que os presbíteros precisam “reunir-se também espontaneamente e com alegria, para descanso do espírito, lembrados das palavras com que o Senhor convidou os Apóstolos fatigados: vinde, vamos para um lugar deserto para descansar um pouco (Mc 6,31). Sobretudo para que os presbíteros encontrem auxílio mútuo na vida espiritual e intelectual, para que mais facilmente possam cooperar no ministério e para se defenderem dos perigos da solidão que possam surgir, promova-se entre eles algum modo de vida comum, ou alguma convivência, que podem revestir diversas formas, conforme as necessidades pessoais ou pastorais, por exemplo, habitar juntos, onde isso seja possível, ou tomar as refeições em comum, ou pelo menos ter reuniões frequentes e periódicas. Devem ter-se em especial apreço e promover diligentemente as associações, que com estatutos aprovados pela competente autoridade eclesiástica promovem a santidade dos sacerdotes no exercício do ministério, por uma apropriada regra de vida e ajuda fraterna, e assim estão ao serviço de toda a Ordem dos presbíteros”. Nessa passagem, encontrei as respostas para as preocupações que me parecem tão relevantes para a vida e o ministério dos presbíteros. Uma mudança de mentalidade se faz urgente sobre estes pontos.
Finalmente, neste número 8 (PO), ainda se admoesta a “em razão da mesma comunhão no sacerdócio, sintam-se os presbíteros especialmente obrigados para com os [demais] que se vêem em dificuldades; dêem-lhes o auxílio oportuno, mesmo que seja necessário adverti-los discretamente. Ajudem com caridade fraterna e com magnanimidade aqueles que em alguma coisa se apartaram do reto caminho, façam por eles instantes preces a Deus e procedam sempre para com eles como verdadeiros irmãos e amigos”. Eis, algumas atualíssimas orientações para que os presbíteros possam ter clareza da sua missão na Igreja e no Mundo. Assim o seja!
Pe. Matias Soares / Arquidiocese de Natal-RN