Em carta ao Cardeal Peter K. A. Turkson, por ocasião da Conferência Internacional sobre o Trabalho com o tema: “Da Populorum progressio à Laudato si'”, em 23 de novembro de 2017, papa Francisco explicita sua concepção de dignidade do trabalho e do trabalhador.
A carta adquire urgência ética epocal e densidade de clamor a todas as pessoas de boa vontade, um forte apelo de volta à doutrina social da Igreja. Isto porque inúmeros filhos e filhas de Deus encontram-se, no contexto atual, esmagados diante de crescente ameaça ao desemprego e a seguridade social, de perda de direitos sociais durante conquistados, de volta do trabalho escravo e, sobretudo, de ampliação perversa da pecaminosa concentração do capital nas mãos de tão poucos. Nesse contexto, denominado pelo prof. Ladislau Dowbor de “Era do capital improdutivo”, as relações trabalhistas e o próprio trabalho se deterioram e com isso se banaliza o preceito ético do cuidado e do respeito à dignidade da vida humana.
Vale a pena ler, na íntegra, a carta do papa Francisco. Os grifos são nossos.
MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO POR OCASIÃO DA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE O TRABALHO COM O TEMA: “DA POPULORUM PROGRESSIO À LAUDATO SI'”
Venerado Irmão Senhor Cardeal Peter K. A. Turkson Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral
Nestes dias, convocados pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, os representantes de várias organizações sindicais e movimentos de trabalhadores reuniram-se em Roma para refletir e se confrontar sobre o tema «Da Populorum progressio à Laudato si’. O trabalho e o movimento dos trabalhadores no centro do desenvolvimento humano integral, sustentável e solidário». Agradeço a Vossa Eminência e aos colaboradores, e dirijo a minha cordial saudação a todos.
Na sua Encíclica Populorum progressio, o beato Paulo VI afirma que «o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento econômico. Para ser autêntico, deve ser integral», ou seja, promover integralmente cada indivíduo e também todas as pessoas e todos os povos.[1] E dado que «a pessoa floresce no trabalho»,[2] a doutrina social da Igreja pôs em evidência, em diversas ocasiões, que esta não é uma questão entre muitas outras, mas sobretudo a «chave essencial» de toda a questão social.[3] Com efeito, o trabalho «condiciona o desenvolvimento não só econômico, mas também cultural e moral das pessoas, da família, da sociedade».[4]
Como base do florescimento humano, o trabalho constitui uma chave para o desenvolvimento espiritual. Segundo a tradição cristã, ele é mais do que um simples agir; é, sobretudo, uma missão. Colaboramos com a obra criadora de Deus quando, através do nosso trabalho, cultivamos e conservamos a criação (cf. Gn 2, 15);[5] no Espírito de Jesus, participamos na sua missão redentora quando, mediante a nossa atividade, damos sustento às nossas famílias e respondemos às necessidades do nosso próximo. Jesus, que «passou a maior parte dos anos da vida sobre a terra, junto de um banco de carpinteiro, dedicando-se ao trabalho manual,»[6] e consagrou o seu ministério público para libertar as pessoas de doenças, de sofrimentos e da própria morte,[7] convida-nos a seguir os seus passos através do trabalho. Deste modo, «cada trabalhador é a mão de Cristo que continua a criar e a praticar o bem».[8]
Além de ser essencial para o florescimento da pessoa, o trabalho é também uma chave do desenvolvimento social. «Trabalhar com os outros é trabalhar para os outros»,[9] e o fruto deste agir oferece uma «ocasião de intercâmbios, de relações e de encontro».[10] Todos os dias, milhões de pessoas cooperam para o desenvolvimento mediante as suas atividades manuais ou intelectuais, nas grandes cidades ou nas áreas rurais, desempenhando cargos complexos ou simples. Todas elas constituem a expressão de um amor concreto pela promoção do bem comum, de um amor civil.[11]
O trabalho não pode ser considerado uma mercadoria, nem sequer um mero instrumento na cadeia produtiva de bens e serviços,[12] mas, dado que é essencial para o desenvolvimento, tem a prioridade em relação a qualquer outro fator de produção, inclusive o capital.[13] Daqui deriva o imperativo ético de «defender os postos de trabalho»,[14] de criar outros novos em proporção ao aumento da rentabilidade econômica,[15] e é necessário também garantir a dignidade do trabalho.[16]
No entanto, como observava Paulo VI, não se deve exagerar a “mística” do trabalho. A pessoa «não é apenas trabalho»; existem outras necessidades humanas que devemos cultivar e ter em consideração, como a família, os amigos e o descanso.[17] Por conseguinte, é importante recordar que qualquer trabalho deve estar ao serviço da pessoa, e não a pessoa ao serviço do trabalho,[18] e isto comporta que devemos pôr em questão as estruturas que prejudicam ou exploram as pessoas, as famílias, as sociedades e a nossa mãe terra.
Quando o modelo de desenvolvimento econômico se baseia unicamente no aspecto material da pessoa, ou quando beneficia apenas alguns, ou quando danifica o meio ambiente, provoca um grito, tanto dos pobres como da terra, que «reclama de nós outro rumo».[19] Para ser sustentável, este rumo deve colocar no centro do desenvolvimento a pessoa e o trabalho, mas integrando a problemática do trabalho com a do meio ambiente. Tudo está interligado, e devemos responder de maneira integral.[20]
Uma contribuição válida para tal resposta integral por parte dos trabalhadores é mostrar ao mundo aquilo que conheceis bem: o vínculo entre os três “T”: terra, teto e trabalho.[21] Não queremos um sistema de desenvolvimento econômico que aumente o número de desempregados, nem de pessoas desabrigadas ou sem terra. Os frutos da terra e do trabalho são para todos,[22] e «devem ser distribuídos equitativamente a todos».[23] Este tema adquire relevância especial em relação à propriedade da terra, quer nas áreas rurais quer nas urbanas, e às normas jurídicas que garantem o acesso à mesma.[24] E a este respeito, o critério de justiça por excelência é o destino universal dos bens, cujo «direito universal ao seu uso» constitui o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social».[25]
É pertinente recordar isto hoje, quando nos preparamos para celebrar o 70° aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e também num momento em que os direitos econômicos, sociais e culturais devem ser tidos em maior consideração. Mas a promoção e a defesa de tais direitos não se pode realizar em detrimento da terra e das gerações vindouras. A interdependência entre trabalho e meio ambiente obriga-nos a redefinir os tipos de ocupação que queremos promover no futuro e aqueles que devem ser substituídos ou recolocados, como podem ser, por exemplo, as atividades da indústria de combustíveis fósseis poluentes. A fim de proteger a nossa mãe terra, é iniludível uma passagem da indústria energética atual para uma mais renovável. Mas é injusto que esta transição seja paga com o trabalho e com a casa dos mais necessitados. Isto é, o preço da extração da energia da terra, bem comum universal, não pode recair sobre os trabalhadores e as suas famílias. A este propósito, os sindicatos e os movimentos que conhecem a ligação entre trabalho, casa e terra têm uma grande contribuição a dar, e devem oferecê-la.
Outro contributo importante dos trabalhadores para o desenvolvimento sustentável consiste em evidenciar uma tríplice conexão, um segundo jogo de três “T”: desta vez, entre trabalho, tempo e tecnologia. No respeitante ao tempo, sabemos que
a «contínua aceleração das mudanças» e «a intensificação dos ritmos de vida e de trabalho», que alguns denominam «rapidación», não favorecem o desenvolvimento sustentável, nem sequer a sua qualidade.[26]
Sabemos também que
a tecnologia, da qual recebemos muitos benefícios e tantas oportunidades, pode impedir o desenvolvimento sustentável, quando é associada a um paradigma de poder, domínio e manipulação.[27]
No contexto atual, conhecido como a quarta revolução industrial, caraterizado por esta “rapidação” e pela sofisticada tecnologia digital, pela robótica e pela inteligência artificial,[28] o mundo tem necessidade de vozes como a vossa. São os trabalhadores que, na sua luta pela justa jornada de trabalho, aprenderam a enfrentar uma mentalidade utilitarista, de breve alcance e manipuladora. Para esta mentalidade, não importa se existe degradação social e ambiental; não importa o que se usa e o que se descarta; não importa se há trabalho forçado de crianças ou se o rio de uma cidade é poluído. A única coisa que importa é o lucro imediato. Tudo se justifica em função do deus dinheiro.[29] Dado que muitos de vós contribuístes no passado para combater esta patologia, hoje ocupais uma boa posição para a poder corrigir no futuro. Peço-vos que enfrenteis esta difícil temática e que nos mostreis, segundo a vossa missão profética e criativa,[30] que é possível uma cultura do encontro e do cuidado. Hoje já não está em jogo apenas a dignidade de quem tem uma ocupação, mas a dignidade do trabalho de todos, e da casa de todos, a nossa mãe terra.
Por isso, e como afirmei na Encíclica Laudato si’, temos a necessidade de um diálogo sincero e profundo para voltar a definir a ideia de trabalho e o rumo do desenvolvimento.[31] Mas
não podemos ser ingénuos e pensar que o diálogo acontecerá naturalmente e sem conflitos. São necessárias pessoas que trabalhem sem parar para dar vida a processos de diálogo a todos os níveis: no plano da empresa, do sindicato, do movimento; a nível de bairro e de cidade, regional, nacional e global. Neste diálogo sobre o desenvolvimento, todas as vozes e visões são necessárias, mas especialmente as vozes menos ouvidas, as das periferias.
Conheço o esforço de muitas pessoas para fazer sobressair estas vozes nas sedes onde se tomam decisões sobre o trabalho. Peço-vos que assumais este nobre compromisso.
A experiência ensina que, para que um diálogo seja frutuoso, é preciso começar a partir daquilo que temos em comum. Para dialogar sobre o desenvolvimento é conveniente recordar o que nos irmana como seres humanos: a nossa origem, a pertença e o destino.[32] Sobre esta base, poderemos renovar a solidariedade universal de todos os povos,[33] incluindo a solidariedade com os povos do futuro. Além disso,
poderemos encontrar o modo de sair de uma economia de mercado e financeira que não confere ao trabalho o valor que merece, e orientá-la para outra, na qual a atividade humana é o centro.[34]
Os sindicatos e os movimentos de trabalhadores devem ser por vocação peritos em solidariedade. Mas a fim de contribuir para o desenvolvimento solidário, peço-vos que eviteis três tentações.
- A primeira, do individualismo coletivista, ou seja, proteger unicamente os interesses daqueles que representais, ignorando os outros pobres, marginalizados e excluídos do sistema. É necessário investir numa solidariedade que vá mais além das muralhas das vossas associações, que tutele os direitos dos trabalhadores, mas sobretudo daqueles cujos direitos nem sequer são reconhecidos. Sindicato é uma palavra bonita, que deriva do grego dikein (fazer justiça) e syn (juntos).[35] Por favor, fazer justiça juntos, mas em solidariedade com todos os marginalizados.
- O meu segundo pedido é que eviteis o câncer social da corrupção.[36] Assim como, em certas ocasiões, «a política é responsável pelo próprio descrédito por causa da corrupção»,[37]também acontece o mesmo com os sindicatos. É terrível a corrupção daqueles que se dizem “sindicalistas”, que se põem de acordo com os empresários e não se interessam pelos trabalhadores, deixando milhares de colegas sem trabalho; este é um flagelo que mina as relações, destruindo muitas vidas e tantas famílias. Não deixeis que os interesses ilícitos arruínem a vossa missão, tão necessária na época em que vivemos. O mundo e a criação inteira aspiram com esperança a ser libertados da corrupção (cf. Rm 8, 18-22). Sede promotores de solidariedade e de esperança para todos. Não vos deixeis corromper!
- O terceiro pedido é que não vos esqueçais do vosso papel de educar as consciências para a solidariedade, o respeito e o cuidado. A consciência da crise do trabalho e da ecologia deve traduzir-se em novos estilos de vida e políticas públicas. Para dar vida a estes estilos de vida e leis, temos necessidade que as instituições como as vossas cultivem virtudes sociais que favoreçam o florescimento de uma nova solidariedade global, que nos permita evitar o individualismo e o consumismo, e que nos motivem a pôr em questão os mitos de um progresso material indefinido e de um mercado desprovido de regras justas.[38]
Espero que este Congresso produza uma sinergia capaz de propor linhas de ação concretas a partir do ponto de vista dos trabalhadores, caminhos que nos levem a um desenvolvimento humano integral, sustentável e solidário.
Agradeço-lhe novamente, Senhor Cardeal, assim como àqueles que participaram e ofereceram a própria contribuição, e a todos envio a minha Bênção.
Vaticano, 23 de novembro de 2017
Francisco
Notas:
[1] N. 14.
[2] Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL), 28 de junho de 2017.
[3] João Paulo II, Carta Enc. Laborem exercens (1981), 3.
[4] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja (2005), n. 269.
[5] Cf. Concílio Ecum. Vaticano II, Constituição Past. Gaudium et spes, 34; João Paulo II, Carta Enc. Laborem exercens (1981), 25.
[6] Carta Enc. Laborem exercens, 6.
[7] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 261.
[8] Ambrósio, De obitu Valentiniani consolatio, 62, cit. in Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 265.
[9] João Paulo II, Carta Enc. Centesimus annus (1991), 31.
[10] Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 273; cf. Carta Enc. Laudato si’, 125.
[11] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL); Carta Enc.Laudato si’, 231.
[12] Cf. João Paulo II, Carta Enc. Laborem exercens, 7.
[13] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 276.
[14] Exortação Apost. Evangelii gaudium, 203.
[15] Cf. ibid., 204.
[16] Cf. ibid., 205.
[17] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL).
[18] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 272.
[19] Carta Enc. Laudato si’, 53.
[20] Cf. ibid., 16, 91, 117, 138 e 240.
[21] Cf. Discurso aos participantes no encontro mundial dos movimentos populares, 5 de novembro de 2016.
[22] Cf. Carta Enc. Laudato si’, 93.
[23] Concílio Ecum. Vaticano II, Constituição Past. Gaudium et spes, 69.
[24] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 283.
[25] Carta Enc. Laudato si’, 93.
[28] Cf. J. Manyika, Technology, jobs, and the future of work. McKinsey Global Institute. Nota informativa preparada pelo Fórum Mundial “Fortune” — Time, dezembro de 2016 (atualizada em fevereiro de 2017).
[29] Trata-se de um perigoso «relativismo prático»: cf. Carta Enc. Laudato si’, 122.
[30] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL).
[31] Cf. nn. 3 e 14.
[32] Cf. Carta Enc. Laudato si’, 202.
[33] Cf. ibid., 14, 58, 159, 172 e 227.
[34] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL).
[36] Cf. Exortação Apost. Evangelii gaudium, 60.
[37] Carta Enc. Laudato si’, 197.